Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Outra pequena vergonha

Eu estive mal. Fui depravado e duvidoso. Ninguém me confiava seus segredos. Disputavam comigo sua paz e me imaginavam um calculista infiltrado em suas vidas. Eu fui o culpado por estar ali e fazer dos outros degrau e capacho. Nasci e virei a praga. Estive muito mal. Seguidos anos, carreguei esse mundo nas costas e o levei para o caminho errado. Perdi um tempo que nunca calculei ter. Senti do espelho a descrença na minha mais sagrada cicatriz. Até eu mesmo refletido nunca mais fui um bom companheiro. Cadê minha importância? Os votos que recebi vi serem rasgados à revelia das leis, contratos, papéis. Inimigos se esqueceram de me trair. Nunca mais me foram infames, vis, brutais. Tentei com eles uma briga, e o único que consegui foi fracassar do lado de fora da sala onde tudo, absolutamente tudo, acontecia sem mim. E pra mim o maior pecado foi que as portas se fecharam numa madrugada comum, escura, sem lua, postes de luz ou insetos, só o brilho vermelho e constante das horas tranqüilas pulando no rádio-relógio. É, e as horas pularam tanto que nem janelas, buracos de chumbo e pólvora, tocas de rato e cobra eu alcancei a tempo. Fiquei para fora e estive mal por isso: me rejeitaram porque era praga, era dúbio, quadrado como uma bola, perigoso, imbecil. Merecedor.

Eu comi suas mulheres, pisquei meus olhos para seus filhos ainda crianças e, quando cresceram, eu os lembrei e lhes pedi pagamento. Fiz os empréstimos que os deixaram pobres, exigi dos credores os juros mais absurdos que me foram permitidos exigir, derrubei então as casas dos inadimplentes e guardei apenas os lençóis azuis e cor de rosa e calcinhas e cuecas de algodão sujas de secreções infantis. Eu as cheirava pensando em dinheiro. E fazia do terreno vazio futuras memórias da minha vida, jogando para o ferro-velho as velhas memórias e resgatando assim pequenas quantias por cada quilo de lembranças familiares, com as quais eu compraria futilidades e me presentearia com notícias em inglês e mobília clássica, de mogno e ouro. Com o que me deram –ou lhes tomei– fiquei tão rico que perdi as contas do desespero, me tornando um desconhecido para as preocupações desse mundo e de qualquer outro. Eu era grande demais para isso. Quando agiotava sua paz não aceitava abstrações como recompensa. Tinha um grande poder, indiscutível influência. Meu objetivo era ser justo: usou, tem que pagar. Me pagar. E eu estava ali sempre, encostado em suas vidas, telefonando, mandando cartas e bilhetes. Treinava a onipresença enquanto eles dormiam e se fosse surpreendido por alguém no exercício da vigília, da investigação, eu os chantageava, com ódio e razão. Meu nome criou um brasão respeitado e eterno dentro e fora desse reino de pessoas comuns e suas crianças de mesmo rumo. Se meus passos emitiam um som de cavalaria, minhas salas eram trincheiras cercadas de minas e pó químico. Meus súditos, os fiéis, estavam a minha volta para servirem de escudo e seus corpos me protegiam do mal e da vileza ao meu redor. Meu alimento era por eles provado para garantir que o veneno não me fosse a causa da morte. Antes que esse mundo ruísse sem previsão, era todo ele certo para mim, para que eu o dominasse e fizesse dele o curral e cortiço que depois descobri ser minha própria cabeça. Antes, era assim. Agora, fui despejado e nem sei como vou sobreviver aqui fora.

As pessoas têm seus desejos e estão correndo atrás deles à minha revelia. Eu, que dependia delas para ignorá-las, agora as desejo de volta, e as quero amáveis, delicadas, gentis. Prometê-las-ei respeito à suas crianças e reprimirei minhas lascívias intenções quando puder tocá-las e sentir seus odores artificiais de higiene. Eu serei bom porque estive mal, é certo, mas serei então o cristão perdoado, porque sei que eles se importam com isso. E doarei o pouco que ainda tenho à caridade, serei benemerente e envelhecerei no mecenato. Sozinho, organizarei empresas do bem, ecológicas e sem fins lucrativos, com os selos governamentais que eu criei quando estive sozinho no trono de mogno e ouro encomendados na mata selvagem de celulose que emperra os departamentos e faz do povo um barro gentil. Apesar de paria, eu sei os caminhos porque os criei quando fui deus, quando fui construtor e incorporador de cimento e cal e engenheiro de edificações. Vou me redimir sendo o bom homem que todos imaginam os receberá em seu leito de morte, com os olhos embargados e emanando sangue, suor e as naturais lágrimas do redentor. Eu pedirei seu perdão para poder perdoá-los. Pois, estive mal, mas ainda estou aqui.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Depois e antes

Note as feridas características da doença.

Revolucionário, tratamento pode dar certo.

terça-feira, novembro 28, 2006

Cinza

Como o produto dos antigos
Da pureza pre-fabricada.

Em guerra com o colorido
Por hora mais nada.

Depois da Festa

Nascido sob sol quente em dia de Natal
Pra dormir em breve e longa cama

Morto sete horas depois de acordar
Deixa o legado de muita fe e pouca fama.

sexta-feira, outubro 13, 2006

Imagem x-x

Num canto da cidade, sob chuva fina, luzes estourando sem muita lógica, sombras cambaleantes, ronronares cadenciados e nervosos de gente simplesmente indo, enormes pés inchados dentro de sapatos gastos, sob um burburinho – uma camada - de homens de chapéus engraçados reclamando do passado e de mulheres apertadas em tendências meeiras, risos rarefeitos ecoando crianças que não vão aparecer tão cedo, sob a incapacidade de olhar além da reta e daquela coisa que vai sem vir e que continua raspando a garganta nos momentos mais impróprios (tão comum quanto própria ou inconsolável), sob aquela outra coisa que passa pelo canto da órbita, que impregna nosso dia e que só vai embora quando enfim aparece de novo, uma mancha perfeitamente construída de mobilidade não mensurável, de peso cálido nos pescoços com bordas preenchidas de gordura antiga que sujam apenas travesseiros tecidos manualmente e sem muito vigor por alguma preta velha – pobre, preta; sob o anonimato que qualquer canto da cidade oferece, quatro baratas se aglomeram, descompromissadas com a formalidade que a reunião prescinde e, por um tipo de inter-percepção, nada se cobram.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Texto velho

Trabalho em casa. Minha casa na verdade é um apartamento. Um apartamento bem pequeno, que tem um quarto, uma cozinha, um banheiro e um corredor. Esse corredor teve os tacos descolados algum dia antes deste apartamento ser meu. Meus pés são marcados pelas pequenas e duras colinas da cola que antes grudava os tacos de madeira. Os tacos de madeira ainda resistem no quarto, no qual se entra pela porta que fica no corredor, à esquerda. Esta porta é simetricamente oposta à da direita, onde fica o banheiro. No banheiro, o chão é feito unicamente de azulejos. Azulejos também fazem o piso da cozinha, mas não são como os do banheiro. No banheiro são azuis, na cozinha amarelos. Um amarelo apenas um pouco mais vivo do que o que impregnou a porta de entrada. A entrada do meu apartamento se dá através de um extenso hall. Este haal nunca me pareceu muito diferente dos outros que já conheci : é escuro durante todo o dia, tem um extintor coberto de poeira e o piso um pouco grudento. Grudento não a ponto de fazer barulho quando se anda por ele, mas o suficiente para crer que alguma bebida doce caiu ali a mais ou menos um dia. Um dia tem, como se sabe, vinte quatro horas, mas basta trinta segundos para se chegar no meu andar, desde que se pegue o elevador. O elevador é antigo como o prédio mas suficientemente moderno e decorado para que meus clientes não achem que estão entrando em algum tipo de submundo. O submundo é o início meus negócios. Meus negócios começaram em um ano ruim. Ruim como levantar-se pela última vez da cama de quem se ama, ruim como o vazio, ruim como nada sentir sempre que se vê o reflexo do próprio rosto.
Se crê que o próprio rosto é o reflexo corporal do tempo, e se sabe que o tempo não entra pela porta amarelada deste apartamento, logo entende que aquele ano ruim não morreu. Morreu a paixão, enterraram-se os ponteiros do relógio, procriou-se o que sobrou. E se crê que o que sobrou é o que há de mais fiel e essencial, e se sabe que esta sobra compreende o trânsito constante de rostos e vozes pela porta amarelada deste apartamento, logo entende que é na passagem onde me encontro. Encontrei-me sempre talvez fosse a expressão mais acabada para o que quero dizer, mas não creio que tempos verbais façam tanta diferença aqui. Aqui, deste apartamento herméticamente vazio de onde quase nunca saio. Saio do quarto todas as manhãs com os olhos bem abertos pois devo dizer que minhas janelas foram lacradas. Lacradas de forma a não deixar mais do que lâminas de luz entrarem pelas frestras entre os madeirites. Madeirites que desconheço a origem. A origem de quase tudo neste apartamento é para mim misteriosa. Misteriosa como o rosto dos porteiros e moradores, com quem nunca troquei mais do que monossílabos, cujos nomes nunca precisei me esforçar para esquecer. Esquecer o ano ruim, foi por isso que não me arrisquei a comprar novos móveis. Os móveis - uma cama de estrado maleável,um sofá de tema jovem, uma estante vazia, 2 panelas e um conjunto de talheres e pratos - vieram junto com a chave. A chave entra pela fechadura apenas após um pequeno tranco. Tranco-me todos os dias e só abro a porta quando sei quem vem. Vem gente, vem muita gente. Gente cinza, gente que não aprendeu a se vestir, gente que é paga por mim para que venha. Venham, toquem a campainha duas vezes e meia, me mostrem seus rostos, me digam o que viram lá fora, me passem o dinheiro molhado por mãos molhadas - que eu te passo o que querem. Querem tudo, mas sabem, como eu também sei, que são por demais otimistas. Otimismo que não se lê nos rostos e olhos, nas mãos amareladas, nas bocas quentes. Quentes como o sangue, como as palavras que me dizem - quentes e rápidas. Rapidamente percebo que o otimismo é para eles tão etéreo como endógeno - sendo esta segunda qualidade preponderante sobre a primeira. Primeiro me dizem rapidamente sobre os outros como eles, depois sobre os outros como eles que já se foram e então sobre o tempo, sobre as mulheres, sobre tudo que lhes possibilite acharem que estão conversando. Conversar nunca foi do meu gosto, mas talvez um dia eu tenha conversado muito. Muito provavelmente por que devia. Devendo falar, nunca dizia o que queria. Queria mesmo me calar. Calar as bocas dos outros. Os outros, esses seres
imaginários. E imaginava como calaria cada boca. Bocas pequenas e feias, como anus, bocas pequenas feias e peludas, como anus peludos, bocas carnudas e bonitas, como anus inchados por uso devido, bocas carnudas e feias, como anus inchados por desuso, bocas carnudas, pequenas, feias, bonitas, essas bocas todas. Todas pedindo para ser caladas, como cicatrizes abertas esperando pela sutura. Suturadas de todas as maneiras possíveis. Possivelmente nunca conversei muito, mas meu medo de bocas interpõe um talvez. Talvez a memória não valha a pena ser rememorada. Pois se rememorar é lembrar de novo, e se o ato de lembrar por si já uma forma de falsear os fatos, rememorar não passa de uma dupla falsificação. Falsificar, alguém poderia dizer, não me pode ser alheio - pois é das alegrias falsas que sobrevivo. Mas de
uma sobrevivência ao menos espera-se algum tipo de vida, e as memórias nada me trazem mais do que morte, incômodo. Incomodo-me então com aqueles que insistem em me cobrar vidas já passadas, memórias. Pois se a memória é também verbo, e se não me cansam de dizer que no início era o verbo, logo minha origem perdeu-se em alguma boca-anus odioso. Odeio quem
insiste em me lembrar que não sei de onde venho. "Venho por meio deste...". Destas cartas exalava o bolor vivo do ano ruim, que insistiam em me lembrar de onde vinha,que me encontravam sabe-se lá de que maneira, e por tudo isso também as odiava. Odiava assim a idéia de ser obrigado a pensar sobre o passado, ainda que fosse sua negação. Não passava assim de suas quartas palavras, as deixava no chão sem ao menos me dar ao trabalho de amassá-las e jogá-las no lixo. Lixo que, sob diferentes formas, acumulava-se no piso do apartamento e que se não excitavam os bichos que vivem sob nós era por algum tipo irracional de desprezo ou de ignorância. Ignorava também os nomes dos que apresentavam seus rostos e corpos na minha porta. Porta que se tornava ainda mais amarelada a cada toque de mãos engorduradas,
a cada cigarro queimado na espera pela mercadoria já comprada, a cada perdigoto invisível lançado pelas bocas frenéticas em abrir-se e depois ficarem fechadas. Fechava a porta lentamente e só a trancava quando os passos no corredor cessavam e o barulho da porta do elevador terminava. Terminar o negócio é algo que só se realiza plenamente quando sei que não verei mais aquela pessoa. Pessoas que me diziam : volto amanha, quero mais, posso entrar, quem é você, de onde isso veio. Vinham com conselhos sobre clientelas fixas mas a eles respondia a verdade : eles viriam de qualquer maneira. De maneira que, perante a prova incontestável, apenas resmungavam. Resmungos que insistiam em não me sair da cabeça. Cabeças e rostos que não duravam mais do que alguns segundos na memória. Memória que insistia em lembrar apenas de resmungos inúteis. A inutilidade, às vezes penso, é a única constante de tudo. Mas todo esse realismo me deixava sempre alerta, como que esperando o dia que essas certezas sobre a inutlidade de tudo ruísse. Ruido oco, passos cambaleantes e toques incessantes na campainha na tarde de um dia terminaram por desmoronar toda aquela inutilidade, descrença e invisibilidade. Meus invisíveis olhos se abriram, meus pés magros pisaram a cola e minha boca lacrada resmungou involuntária - voluntário, queria quando
criança ser algum tipo de voluntário apaixonado. A paixão às vezes bate à porta, poderia muito bem ser o nome de um filme. Filme de final feliz, com ternos bem cortados, chapéus que nunca vi, falsas paixões, olhares mortiços e beijos em aeropostos vazios. Vazia e tímida, com seu sofá enjoativo, a sala, assim como eu, parecia ter sido pega de surpresa pela sombra que se pronunciava embaixo da porta. E mesmo a porta não estava muito a vontade com aquilo. Aquele seu amarelo habitual se escondia atrás da mancha quadrada toda branca que descoloria sua personalidade. Pessoa desconhecida, mas não apenas desconhecida, pavorosa e iluminada, cuja o dedo, imaginava, apertava forte a campainha e gritava o que não entendia. Entendia-se, ou ao menos devia se entender, como alguém desesperada, pronta a arrombar minha fortaleza e comer pelas beiradas meu exílio. Exilada no mundo de fora - todo o barulho e sombra que fazia em mim, em meus olhos despertos. Desperteram-se também as madeirites e as lâminas de luz, que vibravam desculpadas por um vento fraco lá fora, mas que respondiam mesmo ao que vinha do corredor. Corri os dedos por meu rosto frio e sem traços e perambulei até a origem como que levado pela lufada de estranheza e ódio momentâneo que aquilo lá fora soprava. Soprando e respirando como um lobo sem pêlos, era uma mulher que na porta se agarrava. Agarrava os cabelos bem pretos com uma das mãos e com a outra segurava o próprio ombro, que não permitia à alça do vestido vermelho se fundir ao chão sujo do haal. No haal, com a luz automática ligada, ninguém. Nenhum tipo de vizinho curioso e os elevadores pareciam ter sumido dali, por respeito á privacidade de nosso momento. Momentaneamente, por puro tédio, acreditei ela ser uma da outra semana, que tinho os olhos roxos e a boca como que rasgada tristemente, mas ela não tinha nada disso. Daquilo, apenas o vestido. Vestido com a roupa das tardes, com os olhos que há muito não vejo e com minha pele fosca, perguntei-lhe o que havia, que a noite era grossa e que não a conhecia. Conhecia um conhecido, disse, conhecia um conhecido que havia dito que eu teria o que precisava."Preciso" seus olhos quase fechados e entornados para a direita, algo se desfazendo dentro dela,as paredes internas aproximando-se, quase colando-se de sangue e vísceras - "demais, agora.". "Agora" - meus pés, observava, não passavam para o outro lado, e continuava a pensar que algo dentro dela se apagava, que murchava seu pulmão e que eu tinha certa dificudade de continuar a olhar as duas telas cinematográficas que seus olhos haviam se tornado, alguma obra sensasionalista sobre a decadência do humano, caricatural e entusiástica, duas telas de miçangas caseiras que perpassariam toda minha pele nua ao cruzá-las e que por
isso tinham como argumento principal que nada havia de mais reconfortante do que olhar nos olhos de alguém e dar-lhe o braço e torax inteiro como resposta à sua súplica - "não há". Há aqueles que tratam-me como empregado, cuja a única função é servi-los de alguma dose de realidade entorpecida. Entorpecer para apagar, para suplantar, para o além, para o aquém, para voltar a ser criança, para poder imaginar que o 'então' pudesse se aproximar de suas promessas. Mas,e prometo sinceridade no que disser sobre a mulher, aquilo ali não se tratava de criação. Criar uma personagem, enchê-la de indiferença, de igualdade e todos esses direitos básicos, tratá-la como se um dia tivesse se apercebido de que suas unhas ruídas até os tocos eram um sintoma de algo e tivesse tentado parar de fazê-lo, como se ela tivesse pensado seriamente
sobre os seios desnutridos - isto não podia fazê-lo. Pois fazia como se o encontro que durava então pouco mais do que alguns segundos não fosse real, eu sendo apenas uma voz melancólica vinda de um buraco na parede, espécie de última esperança de desejo derradeiro realizado - ela se comunicava comigo.

sábado, agosto 26, 2006

Quatro fotos e meia

1.

Suportando o viaduto, um pilar. Nele, um homem bate a bola laranja, movendo-se em forma de sombra colorida. Pula e dá um grito grave antes da bola voltar às suas mãos, vencendo um pequeno desafio, um pequeno desafio de cada vez – ele há de chegar lá, sendo ‘lá’ um lugar que não pode ser observado, apenas inquirido.

O pilar é um espelho de concreto, ele vê-se jogando a bola para si mesmo, ouve a si mesmo gritar. Joga com alguém que está ali, alguém que ecoa do preenchimento.

2.

O retângulo está suspenso sobre ele, forma construída que se alonga e se afina para trás e acima do homem, bifurcando-se em duas tiras, duas asas que terminam entre edifícios, na curva de um globo moldado.

Resistindo à eletricidade e à estática, à luz, pisadas e água, às idas e voltas de sua própria matéria, às atmosferas, ele flutua – com pequenas marcas que se anulam, fechadas por outros acidentes, protegido da mutabilidade pelo estrondo formal.

Quem dirá um dia que ele não foi um viaduto? Nunca foi nada senão ele, nunca se tornará nada senão ele. Sua matéria não lançará esporos. É estéril, alheio à reprodução, não pode compartilhar sequer dessa maneira monstruosa de transformação, não existem vestígios de sua construção.

É um dado, um dado jogado.

Jogado por quem? Para o homem com a bola laranja, está como um deus: camuflado, mudo, estático e, ainda assim, uma possibilidade confiável de ouvir o próprio pensamento. Um som que não pertence a ele, algo – essa é a palavra, ‘algo’ – que faz as vezes de resposta, a cada grito e baque da bola.

Poucos elementos cotidianos se aproximam tanto da verdade quanto as lâminas voadoras e os pés arvóreos de um viaduto.

3.

É preciso ouvir. Cada baque e cada grito. O homem ridículo, de bermuda e camiseta regata, inacreditavelmente vulgar, continua usando a bola laranja, sozinho, pulando e dando gritos graves. À sua esquerda, um bar. Uma figura de papelão com os olhos furados está colocada no balcão, escorregando a medidas improváveis, caindo lentamente. Ninguém da administração ali, ninguém para tomar conta. Uma mulher e um homem sentados nas cadeiras postas na calçada observam o viaduto.

4.

Aos olhos dos dois, as asas parecem ainda mais longas, mais finas ao final, duas pontas, duas agulhas, perfurando e rasgando. Sobre elas, vindo do horizonte vermelho-claro, como que partes desprendendo-se das bordas quadráticas negras, como que vidas recém descobertas, um grupo de animais. Os quatro cães, enormes e magros, andando juntos, formam uma sombra só. A sombra de um monstro mitológico sob a luz de mercúrio, de um amontoado de corpos com mais cabeças do que patas, com mais sombra do que corpo. De uma degeneração.

5.

Parecem pequenos cavalos traiçoeiros, com carne entre os dentes e cascos trincados. Dentro de um deles, 15 fetos. Suas formas - relevos incipientes esculpidos na carne - são quase visíveis sob o couro fino, mal recoberto de pêlos.

Ouvem as batidas. Ouvem como o homem não as ouve. E sonham, com o saber de uma matilha, terem encontrado caça.

terça-feira, maio 30, 2006

Dúvida

Sobre a bile dos revoltosos fez-se um corpo de fumaça. Aquela placa. A única coisa que se via em movimento na cena. Apenas um vulto sobrevivente no ruído cinza. Que dia. Foi ontem? Ano passado? Lembra do êxtase de ter segurado a placa que dizia: Nós morreremos por vocês. Eu já lembro. Tenho memória fotográfica e expressão poética. A bile. Corpo de fumaça. Mas é, toda a cena. Aquela ceninha toda. Quantos éramos? Mais de 40, né? Seguramente. Marcos, Hamilton, Luis, Robertos... O Roberto eu e o Roberto você. O Roberto todo mundo. Ah, esses Robertos. Cumpriram sua pena sem julgamento, juntos, no mesmo dia, na mesma cela. Tá todo mundo morto, eu pensei, pausadinho, como se falasse pra você de uma história que ouvi e pensei engraçada. Coisa de ator. Mas falei por falar, sem muita reflexão. Fui um ator de segunda, eu digo. É porque eu decorei o texto, não é? É por isso? Bom, que seja. Vamos dizer que não fui. Havia ao menos um cenário. Épico. Era um palco e no palco a morte cai bem. Como adorei ver a morte do palco. No palco. E eu sei que hoje todo mundo sente que é impuro pensar na morte. Uma chateação e uma obviedade. Mas digamos que é a primeira vez. Como se o primeiro hominídio fosse o próprio Ésquilo. E ele estivesse ali, naquele palco. E depois fosse escrever sobre o que viu para poder mostrar em todos os palcos do mundo a mesma coisa. Bom, eu sou esse Ésquilo arcaico e vou fazer isso, para a aeróbica do hipotético. Eu começo assim: Houve uma revolta. E os revoltosos, todos eles, foram massacrados. Mas, como nós estávamos lá, né Roberto, a gente se sente lesado por não ver uma motivação. O que era revoltante? Você sabe, melhor do que eu, e você foi o último a morrer. O mais forte, de certa forma. Como o mais forte e valente você pensa consigo que a razão da revolta era mais do que uma questão de vida ou morte. Era uma questão léxica. Do verbo. Então eu volto a Ésquilo e reformulo o meu início: Sobre a bile dos revoltosos fez-se um corpo de fumaça. Aquela placa. A única coisa que se via em movimento na cena. Apenas um vulto sobrevivente no ruído cinza. Segurando impávido os dizeres: Nós morreremos por vocês. Seguramente Marcos e Hamilton e Luis e os Robertos teriam concordado com cada linha desse novo começo. É uma suposição, mas eu sei, cá comigo eu sei, eles iam adorar. Como funciona, não? Eu te digo e você finge que não concorda. Eu tenho uma capacidade incrível de ser adequado. Eu fui adequado na hora da morte. Em cada momento da revolta eu fui adequado. Até como ator e lembrança. Vejo aquela fumaça ainda com textura e forma. Inexplicáveis buracos se formando e desaparecendo. Uma grande memória fotográfica. Pois então, eu não estou ignorando o fato de a morte ser um assunto gasto e chato e comovente e muito popular. Vende revistas. Vai vender meu livro. Só estou brincando de ser o descobridor do desconhecido de antigamente, evitando falar de como tudo o que já foi desconhecido tornou-se óbvio para alguns e almanaque para todos os outros que gostam de almanaques. E almanaques são estupidamente óbvios. Outra coisa: eu me lembro de tê-lo visto morrer. E me lembro de pensar com meus botões, como se falasse pra você de uma história que ouvi e pensei engraçada: tá todo mundo morto. E o mais engraçado é que ver alguém morrer, alguém que pode ser até você mesmo, como talvez seja o nosso caso, nunca é a mesma coisa do que ouvir falar da morte. Então há uma necessidade que eu não consigo evitar, pela qual me amotinei, que é a necessidade de falar para todo mundo como eu me senti e como eu acho importante falar da morte de uma maneira que não foi usada ainda. É tão complicado, porque pela primeira vez eu não sei se serei adequado, embora saiba que passei pelo caminho correto. A minha maior dúvida é se estou repetindo a coisa que me chateia nessa história de morte e de fim. Eu não queria ser escatológico, mas eu definitivamente não vou usar o sangue, então opto pela bile, que, sinceramente, nem sei se pode ou não aparecer nesse contexto. Então, há essa dúvida. Mas eu creio que é a dúvida certa, e não a dúvida errada. Antes da nossa revolta, eu lembro que era natural mimetizar as leituras e reproduzi-las e depois sentir aquele desconforto. Que era conseqüência e acabou sendo causa também, viu Roberto, foi causa da revolta, esse desconforto. Mas agora eu tenho essa teoria de que a morte só é compreensível depois da morte. Acha óbvio? Eu não sei. Essa teoria de que vamos entender a morte depois da morte e que aí vai ficar tudo mais claro e vamos conseguir vender mais livros e finalmente vamos nos livrar do desconforto. Acho eu, não posso ter aquela certeza, que você morreu por isso. Mas voltando ao que falávamos, eu, Roberto, preciso muito falar da morbidade como uma coisa nova. Porque foi isso que senti quando vi você morrer depois de ser tão heróico e valente. Foi aí que eu entendi como deveria me expressar. E notei que, desde quando adequadamente nasci eu sempre tive uma memória fotográfica absurda que eu simplesmente deixava de lado na hora de existir, mesmo quando existir era ter estórias para contar aos outros. Então você se viu naquela fumaça espessa e mesmo cego, com os olhos ardendo, não vá negar, mesmo cego ainda se lembra exatamente da minha pessoa dez passos adiante lhe observando como se você não precisasse de ajuda para viver, pois queria desesperadamente morrer com a ajuda que já havia recebido. Você se lembra como se tivesse acabado de chegar de lá. Foi agora há pouco. Minutos se passaram, você me viu e começamos a conversar. Não é isso? Claro que é, Roberto. Eu colocaria minha mão no fogo por você e tenho consciência de que a sua memória também é fotográfica. Sabe porque eu tenho certeza? Por que eu descobri que além de ter acionado minha memória fotográfica a revolta me mostrou como é fácil ter ouvido absoluto. Não é muito curioso que depois de tanto tempo com esse dom magnífico adormecido a gente descubra que basta ouvir? Ouvir você em silêncio, por exemplo. Eu preciso colocar isso no papel e preciso de sua ajuda, Roberto. Só você vai poder me dizer se estou certo ou errado em relação à minha abordagem nova da morte. Quando você se viu sozinho com aquela placa tão absurda por acaso você imaginou que ainda houvesse uma chance de continuar vivo mesmo já estando morto?

segunda-feira, maio 08, 2006

Uma cachorrinha e sua dona sozinhas em um domingo de sol

*Excerto auto-biográfico

A cachorrinha aproxima-se, lenta, andando no corredor curto de ardósia. Ela é pequena, tem passos cambaleantes, equilibrando um corpo roliço e negro sobre patas que parecem usar luvas de pêlo dourado, cujas garras fazem barulho solitário ao tocar a pedra. No chão do corredor do apartamento, estirada de bruços, com os braços abertos, está sua dona. A velha geme com dificuldade, longos suspiros sob roupas confortáveis de algodão. As persianas dos quartos filtram luz em faixas finas.


Cheira suas costelas e olha a sala vazia à frente. Em todo lugar, a marca da dedicação e do detalhe, cenário em cores frias. Dirige-se aos cabelos pintados de loiro, muito ralos, lambe-os, gruda poucos fios à pele arroxeada. Não há nada de diferente com a dona: ela está sozinha, deitada no corredor de seu apartamento. A cachorrinha anda até a cozinha, examina um canto do lugar, encosta em uma bolinha colorida, vira-se. Ouve o gemido da dona e toma um pouco de água. Vai até ela de novo, lambe um pouco do suor de seu pescoço e deita-se, encostando-se à carne ofegante. Ela quer dizer algo, a cachorrinha é toda ouvidos, mas apenas sussuros sem fôlego escorrem em solavancos.

Ninguém em lugar nenhum. A velha arfa ainda mais, bolhas de saliva formam-se em seus lábios. A cachorrinha olha para o corpo no chão e depois procura alguém pelos quartos, se estranha em espelhos, observa as camas altas e passa por baixo delas, procura algo no ar, faz uma rápida corrida até o banheiro, debruça-se sobre a privada, entra no box, procura. Encontra a enorme árvore vergando sob o vento, o movimento vegetal dezenas de metros abaixo. Ninguém em lugar nenhum, todos os cômodos esperando.

Aproxima-se, lenta, e deita-se de frente, no mesmo nível da dona. A cachorrinha, que nunca fora capaz de latir, começa a uivar, franzina, olhando as pálpebras para sempre pintadas de negro da velha, dando voz fina e irritante a seu apartamento impecavelmente morto, ao exílio sem história que ela condenou-se ao construir uma fortaleza de coisas - mobília recém tardia de memórias encenadas e encenadas e encenadas contra o esquecimento. Depois, deitado, estático, o animal urina.

domingo, abril 23, 2006

No hospital

Fatos: R. e G. são pacientes em um hospital, fechados em um quarto sem luz artificial, que é iluminado, de dia, apenas por uma janela basculante. Recebem com regularidade visitas de médicos, enfermeiros e outras pessoas. De dia, dormem. De noite, raramente falam entre si.

R. estava de pé ao lado de seu leito, imaginando o que veria se houvesse luz. O quarto de hospital era tão pequeno que nele mal cabiam as duas camas e os animais de pelúcia em miniatura dados de presente, de forma que, para entrarem, médicos ou enfermeiros ou outras pessoas deveriam encostar à parede com força e prender a respiração a fim de se locomover. Eram aparições muito barulhentas (rangiam, derrubavam colheres, esbarravam nos leitos, abriam as portas para sussurros do lado de fora), ouvidas em algum estágio híbrido do sono, o que lhe dava a sensação de que aquilo que se passava era incerto, descartável, um déjà vu dos intrusos e dos pacientes. Os que entravam eram tão despojados e despreocupados quanto às próprias maneiras ali dentro, tão livres de regras, que davam a impressão de que não estavam trabalhando, de que não havia doente algum a esperá-los. Estavam simplesmente fazendo uma visita insone - a invasão de uma propriedade perpetrada pelos próprios donos. Não que rissem, que se portassem como se estivessem no banheiro predileto, fazendo coisas sujas ou imorais. Tinha a ver com a maneira como eles mexiam com os corpos, a não rigidez dos quadris ao andar, os braços largados sobre as coisas, o atabalhoamento irresponsável, o esgar do sorriso idêntico ao de pessoas que falam sozinhas sem aperceberem-se de tanto.

Como as visitas ocorriam majoritariamente à noite, na mais completa escuridão, os visitantes traziam lanternas, que lançavam raios dançantes no quarto até pararem sobre o queixo do que entrava, criando sombras e fazendo seus olhos brilhar. Os pacientes, mesmo estando torporizados pelo sono, perguntavam no começo pela falta de luz, mas raramente tinhas respostas como tais: eram na maior parte das vezes resmungos, barulhos violentos feitos com a boca ou olhares sintéticos, sob a luz das lanternas. Quando R. e G., sozinhos, conversavam sobre alguma daquelas visitas, e isso era raro, dificilmente concordavam com datas e horários, confundiam-se e por vezes sentiam-se ainda mais doentes e cansados devido à tamanha inexatidão sobre fatos tão corriqueiros. Queriam ainda mais dormir, afundar-se nos lençóis, mas o temor que algum dos homens entrasse à noite, em um momento de fragilidade do sono, para lembra-lhes da confusão que aquilo traria no dia seguinte, tornava o descanso uma maneira estúpida de prontidão. Desde que chegara ao hospital, R. pensava, olhando para a mínima fresta de luz sob a porta, não sabia o que era perder a consciência.

Mesmo assim, mesmo estando tanto tempo ali, ele ainda não tinha certeza absoluta de qual era o cargo das pessoas que entravam: os que pareciam enfermeiros, envergando cavidades oculares esplêndidas, perdidos dentro de enormes camisetas, se assemelhavam a móveis de carne quente trazendo água, comida e a muda de roupa. Os que pareciam médicos de ar embriagado (por vezes soluçando ou virando os olhos, quase sempre os fechando longamente antes de começarem a próxima frase, nunca os dirigindo aos pacientes) repetiam os mesmos “bom dia”s e “até logos”s. Percebe-se que a confusão não se relacionava às atribuições dos personagens, mas à maneira como eles as cumpriam. Não havia simpatia ou arrogância, nenhum jogo social. Era um trabalho feito com alheamento. Além de que R. confessara a G. certa vez que desconfiava que o médico que os havia atendido naquela noite tinha um formato facial muito parecido com a de um enfermeiro que estivera ali há duas semanas, bordas de gordura lisa saindo pelos queixos e nariz espremido contra a face. Mas corrigiu-se, quase que de imediato, e com certa razão, que poderia muito bem ser o efeito do sono ou o fato de que não viam outras pessoas a tempo suficiente para terem esquecido mesmo como reconhecer os padrões de um rosto.

Não havia prescrição de remédio algum, nenhum exame: apenas conversas técnicas. R. e G. sempre ouviam calados e atentos, olhando os rostos alongados pela luz sob o queixo, os comentários sobre a doenças da qual sofriam. Eram como palestras iniciais ministradas no final da tarde para uma sala especial, de dois alunos apenas, falas que tinham o baço ou a bexiga ou a uretra como tema principal e invariável – e a friagem e o pé no chão como causas diretas de males fechados em si. Ficavam estupefatos com aquelas coisas saídas de livros, junções de letras criadas por redatores de almanaques médicos de palavras-cruzadas, uma piada interna para historiadores futuros desta ciência. As expressões chamadas de diagnósticos davam medo e faziam rir quando olhadas de perto, quando repetidas após a saída dos doutores; pareciam ocas e independentes, como se fossem pedras escriturais, infectadas e fosforescentes no deserto escuro, zanzando tipo balas nas cabeças dos dois, pedaços de um todo irreconhecível, mas existente: qual é a forma correta de se olhar esse som, essa vibração saída da boca destes homens que parecem médicos? Onde estão suas raízes, pais e mães?

R. e G. tinham dores nas têmporas durante as palestras, não lidavam bem com o fato de que poderiam entender o que havia com eles e que não o faziam pois o que havia com eles...o que havia com eles, os médicos deixavam claro através dos códigos, não tinha muito a ver com eles. O poder que aqueles jovens doutores tinham de falar sobre as únicas palavras que importavam aos dois e, ao invés de colocar todo aquele bolo gosmento e feio e orgânico (possivelmente vivo, mas arfante) em cima da mesa, ao invés de espetá-lo e fazê-lo supurar, de dá-lo em gominhos para os donos digerirem, desenhavam tudo com agulhas de eletrocardiograma. A cada dia R. e G. surpreendiam-se com a novidade do pensamento médico produzido ali, com a criatividade irresponsável criada como arte maior, a cada dia os médicos estacavam no meio dos leitos (lutando a todo momento com o problema do aperto, as pernas movendo-se de quando em quando, parecendo cavalos em baias) e explanavam tortuosamente sobre algo que sob nenhum aspecto assemelhava-se a um problema a ser combatido, e sim com uma recortada/colada velha poesia que tinha aquelas palavras, “baço” “uretra” e “bexiga”, sozinhas em alguma estrofe, piscando como fotos pessoais em calçadas públicas, como sereias.

Por fim, depois de darem pequenas pistas (algo sobre o clima, uma coçada nos olhos que poderia se uma piscadela intencional, um estalo de dedos do tipo “do que falávamos mesmo?”), desligavam as lanternas e terminavam, no escuro, com os mesmos dizeres sobre a eficácia médica de cobertores grossos e chinelos calçados. Eram então artistas arrependidos com o próprio cerebralismo, entediados, que voltavam a uma maneira maternal de dizer as coisas e criavam “a hora de serem reconfortantes e simples”, a volta que se pretendia necessária, depois de estarem a tanto tempo no campo articulado dos incontáveis silogismos profundos. Era agora “a realidade que de fato importava”. E R. e G. esqueciam aquele mundo de coisas duras e pontudas, sentavam-se sobre a relva, sentiam o sol criar imagens quentes sob as pálpebras e pensavam de maneira unívoca, repetindo sorridentes “é isso, então”. Toda a sensação de terem a cabeça recortada, os multiedros rolando pelas palmas das mãos, os vultos formados nos cantos das órbitas – tudo aquilo que a pouco estava no campo do inefável e da angústia, do sono e da incompreensão – desaparecia tal qual a fome depois de vinte cinco bolos de chocolate, soterrado pela iminência de uma solução que era, afinal, a única coisa que queriam enxergar, que podiam ter. Tudo o que precisavam para sair daquele hospital rapidinho era manter os pés aquecidos e as janelas fechadas.

Era só quando a porta se fechava que R. e G. lembravam que uma verdade só poderia ser tão certa quando fosse velha, uma revelação gasta. Tinham esquecido, como era possível?!, que tudo aquilo já havia sido dito, repetido em cada palestra. Lembravam-se da repetição tão fortemente que chegavam a duvidar que aquilo um dia tinha sido novidade. E palpitavam, tinham pequenos espasmos musculares, por um misto de indignação e ansiedade, por quererem que aqueles seres voltassem o quanto antes, por precisarem ser ludibriados mais uma vez com a possibilidade de uma explicação: indignados com a própria ingenuidade e fraqueza, ansiosos por conseguir esquecer esse desprezo posterior às visitas; indignados com a imperícia médica e com a ansiedade de ver tudo aquilo acabado, ansiosos para não precisarem mais sentir os próprios corpos moverem-se sem ordem nenhuma. Sensações causadas por pessoas de identidade fluida, vindas de local desconhecido para agirem de maneira duvidosa, cujas palavras que deveriam os identificar (médico médico médico) eram mais identificáveis do que eles mesmos, envoltos que estavam em outras palavras – as palavras criadas por eles.

As outras pessoas (meninas, não mais do que meninas, de hálito dourado, dentes luzidios) sentavam-se na beirada das camas e cantavam, “em nome de todos aqueles que querem vocês bem, neste e no outro lado, sim senhores”, pequenas músicas à capela, canções de ninar. Elas podiam ser ouvidas antes mesmo de chegarem. No corredor, um trio de felizes colegiais, cada qual com um vestido bucólico diferente, cabelos lisos, negros e curtos presos com óculos escuros quadrados, maquiagem leve na maçã dos rostos, pernas firmes de menina, andando de mãos dadas. Abriam a porta devagar, seis olhos pela fresta que vai aumentando, o facho de luz crescendo dentro do quarto. Não os cumprimentavam. Depositavam o abajur em forma de cogumelo que traziam no canto da sala e davam risadinhas finas e simultâneas, levantando os ombros no ritmo da movimentação da boca.

Lá dentro, com olhar envergonhado pelo aperto, arrumavam bem o tom de voz, faziam gargarejos com saliva. Eram sempre pessoas diferentes fantasiadas da mesma maneira, modelos de um mesmo manequim. Cantavam com a voz aguda, pronunciando muito bem cada sílaba, olhando para as o horizonte das infiltrações das paredes, para as costuras que seguravam os pedaços de cimento e tijolos. Uma vez, R. tentara tocar as pernas nuas de uma, em movimento parecido com o feito quando não se sabe se à frente encontra-se uma vidraça ou apenas ar – nada de pervertido ou velhaco; pura curiosidade. Antes de seus dedos chegarem à pele, ela levantou-se, deu uma pirueta sóbria e lenta para evitar a queda no quarto apertado e, sem parar de cantar – a voz apenas oscilando –, bateu com cuidado nas palmas das mãos das outras, como cheerleader. Por fim, puxou os braços contra o corpo, era o ápice da musiquinha de ninar, e apertou-os em X, amassando o vestido, que delineou seios parecidos com meios ovos de avestruz, enquanto falava sobre “o caminho que crianças sonolentas devem seguir / quando vêem a nuvem de mel se aproximar”. Sentou-se suando, alvo de olhares reprováveis das duas outras, as gotas de suor escorrendo pela lateral do rosto como sangue.
Antes de saírem (e saíam olhando as mesmas infiltrações da parede, pequenos passos para trás, nunca dando as costas para eles), deixavam nas camas, como lembrança, pelúcias pequenas, simulações de animaizinhos de espécie indefinida. Algo entre o urso e o gambá, com patas de crocodilos ou caudas de dinossauros, brinquedos de pelo endurecido pelo tempo que elas tiravam de trás das costas quando abriam a porta, a surpresinha da noite. G. nunca pareceu importar-se com nenhum deles (eram parte do cenário), mas R., em pé em frente ao seu leito, abraçava um deles, um de poliéster puro cheio de bolinhas de isopor, tentando imaginar como eram os olhinhos daquele leão bípede com dentes de algodão que segurava, tocando as bolas duras costuradas na carinha, falando com ele como desejava falar a um dos médicos: sobre sua estranha doença que não tinha sintomas muito claros, sobre o cansaço que tinha ao mesmo mover um braço para se alimentar e da incompreensível dificuldade de se desligar; de como se sentia cindido quanto às atitudes daquelas pessoas e de como nenhum deles parecia sentir que ele de fato estava lá.

R. estava de pé em frente ao seu leito, com os pés dentro de chinelos, e olhava para o que deveria ver pensando que todas aquelas lembranças eram um pouco abstratas demais para serem memórias. Dessem luz, papel e caneta a ele, não saberia desenhar o rosto de nenhum daqueles personagens. Não seria capaz, também, de identificar as vozes que tantas vezes ouvira. O que havia passado dentro do quarto de hospital até então parecia uma história contada a ele por um desconhecido em uma rua nunca visitada. Mas... como era uma rua mesmo? Do que eram feitas as ruas? Sentiu os pêlos do animalzinho sobre peito e falta de alguma canção para niná-lo, para devolvê-lo à posição que estivera por tanto tempo – deitado. Tinha a impressão, ao alisar o brinquedo, que uma das patinhas fofas também o alisava, uma pequena mamãe urso cuidando da prole agigantada e deformada, um ursinho que saiu um pouco diferente dos irmãos sendo reconfortado: esse era R. Os animaizinhos... parados como totens, nunca piscando os olhos, eternamente em alerta, tomando conta de R. Elementos só aparentemente acessórios e destoantes, deixados ali no canto para serem tocados, para que R. e G. pudessem pensar sobre eles, colocá-los em situações hipotéticas, temê-los e adorá-los e, assim, estabelecer uma relação momentaneamente verdadeira com o que os rodeava. Eles não eram memórias, eles não tergiversavam sobre nada, muito menos negligenciavam o poder que tinham. Apenas guardavam um carinho fofo em potencial, uma bomba de afeto sob pêlos sintéticos, à espera que os pacientes esticassem o braço e os trouxessem para si. Um carinho que era o que os funcionários do hospital queriam tanto dizer e demonstrar, mas não podiam por uma lei invisível camuflada de preguiça e descaso, determinação pronunciada há tanto tempo que já fora colocada fora de pauta de coisas a esquecer (se é que era uma questão de esquecer), R. pensava. Médicos e enfermeiros e as pobres meninas fantasiadas – eles tinham esquecido como fazer. Apenas as pelúcias lembravam: os homens estavam envoltos na luz mortiça, as peças de tecido com expressões humanas preferem as trevas, quando tudo é possível, quando não existe limite certo, quando andamos e podemos esbarrar em um cachorro sarnento, num prédio de sessenta andares ou no vazio de um abismo. Médicos e enfermeiros há muito tinham tomado o caminho da luz e da corrupção do esperado, o mundo das doenças necessariamente diagnosticáveis e tratáveis. Tornaram-se invisíveis, memórias repetitivas. Bichinhos poderosos acordavam de seu congelamento e iam, arrastando-se, cortar os fios da luz, acordavam e sugavam a luz que entrava no basculante, deixando apenas o fraco farol cinza sob o quarto. À noite, festejavam o sucesso, um olhando para o outro: estavam levando os pequenos, os doentes, para longe dali, imaginava R.

Foi um desses, o que ele carregava. Foi ele que soou o alarme, pedindo docemente para R. olhar à frente. Ninguém ainda chegara, mas algo interrompia a fresta de luz sob a porta. Quando aberta, surgiu a silhueta de uma mulher alta e troncuda, cabelos compridos, de jaleco. O único indício de feminilidade era o batom, que brilhava como feito de néon, dando a impressão que ela era um borrão carregando um desenho verossímil de boca, saindo de um portal de brancura completa, uma fumaça controlada por contornos humanos, de membros que agarravam a fechadura e fechavam a porta atrás de si, suave. Ficou a alguns centímetros dele, planando.

- Não sou sua salvadora, a boca luminosa disse. Não sou médica ou enfermeira, nem uma dessas putinhas que vêm cantar. É muito importante, antes que eu fale o que é preciso lhe dizer, que você entenda que eu não sou parte do que viu até agora nesse hospital - do que viu até agora. Não lhe será permitido nenhuma interrupção, tenho péssima fluidez verbal e qualquer tipo de pergunta quanto ao que eu já disse pode colocar meu trabalho (que muito lhe interessa, garanto) em risco. Portanto, não fale – nem enquanto explico-lhe essas cláusulas iniciais, entende? Você percebe, pelo meu tom de voz, que não sou ameaça nenhuma à você, isso deve ficar claro. Estou aqui trabalhando, faço isso dezenas de vezes todos os dias e, quanto mais rápido a coisa andar, mais pessoas poderão ser atendidas. Quanto à minha aparência, lembre-se que você mesmo seria incapaz de dizer a quanto tempo está dentro deste quarto, ou mesmo de responder a uma pergunta simples em relação à aparência de qualquer uma das pessoas que aqui entram. Ponha em dúvida seus critérios de julgamento quanto a isso, é o que quero dizer. Se lhe pareço estranha, pode imaginar o quanto seu tom de pele parece estranho para mim – um homem que não vê o sol há mais de... Sim, sou capaz de enxergá-lo e, sim, minha boca é especial, uma encomenda antiga. Foi importante para minha carreira, essa boca. Chamam de luminária corporal focada. Só mostra o que eu quero mostrar – pois vim aqui unicamente para falar. Meu corpo não é visível agora, está tudo escuro mesmo, mas não se assuste. Houvesse aqui uma lâmpada qualquer e entenderia que minhas formas não são dignas de quão assustado você está. Nada que você não tenha visto ou ouvido falar. Olhe para minha boca, se isso lhe tranqüiliza. Ela é bem humana, ao menos. De uma boa safra. Ei! Para onde olha? Onde estou sentada ou como pareço estar sentada sobre o que você imagina não existir não é de fato relevante. Repito: duvide de sua capacidade de julgamento. Seria mesmo certo dizer que esse quarto é do tamanho que você sempre achou que fosse? Que os únicos móveis daqui são essas duas camas? É, essa seria uma boa pergunta – essa e algumas outras. Mas vou poupar-lhe delas. De fato, você logo vai perceber, elas não fazem tanta diferença. Comecemos falando disso que você segura aí nas mãos, esse pequeno bichinho de pelúcia. Não posso dizer que tenha sido um erro do hospital, mas hoje temo que tenha sido um acerto apenas teórico escolhê-los como lembranças. O intuito inicial, ao menos até onde eu sei, era que eles fossem assustadores. Que eles trouxessem à tona aquilo que vocês, pacientes, tão habilmente escondem de nós. Quando pessoas se deparam com objetos dotados de aparência humana, coisas repletas de lembranças de fora do hospital (e cada um de vocês sabem que tipo de lembrança essas brinquedos trazem), os estudos dizem, as pessoas lembram de que existem afetos possíveis. Foi incrível quando se soube que algo tão barato e antigo, tão simples e primitivo, fosse capaz de suscitar algo que há muito eles buscavam, um verdadeiro milagre na contabilidade do hospital. Não tenho a mínima idéia de quem foi a idéia – e quem tem, certo? Acredito que ninguém. Bem, mas os bichinhos traziam esses sentimentos de fora para aqui dentro. Com isso, os pacientes voltavam a sentir a necessidade de querer que outras pessoas olhassem para elas, tocassem nelas, pensassem nelas quando não em contato direto, sentissem-se confusas em relação a quem era essa ou aquela pessoa. Ah, sempre me esqueço de dizer: é isso que entendemos como sentimentos aqui: transformação de identidades alheias. Exemplo didático: se, para você, certa pessoa é algo diferente do que é para, digamos, seu irmão, um dos dois tem sentimentos por essa pessoa. Você nunca teve irmão, claro, isso é uma situação hipotética. É uma coisa meio complicada, especialmente a fase dois do diagnóstico, aquele em que se tenta descobrir qual dos dois é que de fato tem o sentimento. Mas essa não é minha área, apenas recito o manual. O que tinham como certo é que os pacientes passavam a olhar esses bichinhos e ter sentimentos por eles, imaginá-los como coisas que eles não necessariamente eram. Por isso todo aquele teatrinho ridículo das meninas. O segundo momento desse processo era buscar algo, tentar tirar algo desses bichinhos, pegá-los pelas mãos, quem sabe uma lágrima, não é mesmo? Difícil acontecer, devo dizer. E como essas pelúcias não são mais do que objetos inertes, elas não respondiam. E daí deveria chegar o medo, a frustração, o medo de se frustrar com os bichinhos a cada vez que os pacientes os olhavam, a frustração por eles não carregarem nada mais do que...possibilidade, do que uma vontade não realizada, uma ilusão, uma mentira! Você sabia disso, do íntimo parentesco entre medo e mentira? O terror da promessa não cumprida, que é mais menos parecido com uma idéia antiga sobre o medo infantil: a mãe sai de perto e... Era um momento importante do tratamento, estavam todos muito ansiosos pelos resultados. Mas o que temos visto é que – e isso era algo novo – os sentimentos se acumulavam. Queriam medo puro, queriam que vocês tivessem pavor desses olhinhos de plástico. Mas vocês temiam e desejavam e sentiam-se íntimos e ansiavam por vê-los; detestavam a passividade de cada um desses brinquedos e sentiam-se imortais perto deles e tudo o mais. Tudo o mais, mesmo. A coisa se complicou, algumas pessoas da gerência tiveram que, he he, rever seus conceitos, vamos colocar assim, e outras estabeleceram planos de pequenos golpes, tudo em nome dos pacientes, claro, mas pequenos golpes para festejar sobre o fracasso alheio, um cargo acumulado a mais nunca faz mal, além do que ninguém é demitido nesse lugar mesmo - o que, você pode pensar, põe em dúvida esse tipo de artimanha: por que querer chegar a um lugar que você nunca vai perder, não é mesmo? Mas esse pensamento é tão típico de pacientes...Além do que essas picuinhas não lhe interessam. Tentavam, eu dizia, fazer com que vocês sentissem medo, e, com o medo, que tivessem ódio e o que vocês chamam de corpo respondesse a isso e, assim, todos os sintomas aparecessem, como que expurgando os segredos, desvendando os códigos, abrindo essa bendita caixa preta que é um maldito... Ah, mas como vocês, pacientes, são espertos. Como estão à frente de nós! Enquanto todos olham - exércitos de pessoas olhando para vocês em seus leitos, a dormir, fazendo seu trabalho da maneira mais minuciosa que é possível exigir deles, anotando cada sinal que vocês davam, gastando toneladas de lápis, enchendo salas de relatórios - vocês continuam selados, mudos, ignorantes de nosso sofrimento.

Neste momento, a boca, uma imagem fulgorante, bruxuleante, soltando vapor vermelho no quarto negro, como que puxa o bichinho para si. R. sente-se violentado sem seu leão bípede de pelúcia, tragado pela escuridão.

- Esse é o momento de eu intervir; da Boca, é como me chamam nessa ala do complexo, vir falar, uma papo bem simples sobre como as coisas andam pra você. Eles acreditam que você está prestes a sair do casulo, a desabrochar, a sentir que as coisas não são como elas poderiam ser - e a minha presença apenas agudifica esse processo. As anotações sobre você indicam uma variância considerável na idéia de necessidade do que assiste aqui. É algo que chama a atenção do pessoal. Alguns ficam contrariados com isso, tipos que seriam capazes de arrancar o rabo de um bicho só pelo prazer de vê-lo se esforçar para crescer de novo. Outros, em número menor, ficam até entusiasmados com isso, vêem nesse primeiro sintoma uma explosão de possibilidades, cargos a serem criados, o momento de propor novas hipóteses. Eu não represento nenhum grupo, certo? Você precisa saber disso, para que nossa relação, curta, seja realmente proveitosa. Eu simplesmente estou cumprindo o papel de dizer que, finalmente, alguns sintomas apareceram em você, o que é, por um lado, excelente - podemos enfim começar a tratá-lo. De outro, vai exigir uma série de decisões de você. Uma delas será imediata, outras não vão ser feitas agora, terão - tenha certeza disso - um longo tempo para serem tomadas. Outro fato, que não se relaciona com decisão nenhuma: você agora será um médico. Se pensa que isso é um convite, engana-se. É um dado. Nada comparado com uma promoção, nada disso. Isso não é uma carreira. É simplesmente um estágio necessário ao tratamento. Aliás, esqueça os médicos que viu até agora. Eram péssimos pacientes. Viciados, acredito, sem cura. Aí está outra polêmica - algo que nunca deve sair das conversas de corredor, ok?: alguns nunca se curam. Eles param no estágio que você está prestes a entrar, se deleitam com o que se abre a eles e... empacam. Esses que andaram visitando seu quarto, imagino que pôde perceber, não apresentavam o que chamamos de sinais de melhora. Ah, o que eu digo? Claro que você não saberia o que são esses sinais, até por que eles não são aparentes, muito menos para pacientes recém chegados. Mas é importante que saiba, agora que vai se tornar um deles, que aqueles não eram nenhum tipo de exemplo. Naturalmente, isso não é uma unanimidade - e isso, de novo, eu tenho o dever de lhe dizer. Para algumas pessoas, o tratamento seguido por aqueles que lhe atendiam era o mais confortável e eficaz, ainda que mais lento. Não entendo quase nada sobre essa teoria, por isso não vou à frente. Tomo apenas o cuidado de dizer, agora como um conselho: não siga o exemplo daqueles. Não que vocês venham a se encontrar, isso não é possível, mas algo parecido com "boatos" circula, sempre existe uma história que pode plantar-lhe minhocas.

A boca para de se mexer, finalmente. O ursinho faz um estrondo ao cair no chão. Um som fora, uma mesa de vidro estilhaçando-se. G. vira-se na cama, parece ter um pesadelo.

- Chega a hora de fazer meu trabalho. Antes, adianto que essa informação é uma pergunta, uma pergunta muito importante, mais importante do que pode conceber nesse momento, mas que será irreversível e terá efeitos imediatos. Ainda acho incrível que, mesmo hoje, precisemos de fatores duais para irmos em frente, mas vá lá: lanterna ou interruptor, ahn?

terça-feira, abril 18, 2006

Acusação

Vão tarde. Dois urubus. Chegaram com os aparelhos na mão e rodearam o cadáver por horas. Horas. Duas, cinco. Agora foram embora e restou o cadáver. Pra que vieram? Urubus. Já sem alma, aquilo, no chão. Não se podendo mais dizer que era um homem, ou uma mulher, apenas um cadáver. Enterrem-no logo, é só um resto de matéria sem o benefício da dúvida. Os olhos se arrependem de ver. Os olhos da gente. Os urubus, carniceiros desgraçados, filhos da puta que os pariu não são gente. Nem um pouco de gente. Eles tiraram fotos do cadáver. Eles tiraram foto de uma coisa sem memória, que, veja só, não é mais retratável. Como uma coisa sem memória pode ser retratada? Melhor, uma ex-pessoa. A imagem da pedra que já pensou. Pode? Até se puder, não há necessidade. Já pediram pra tirar fotos da Soledad. Veio um homem, baixinho e barrigudo, carequinha. Milhões iguais lá fora. Pouco surpreendente então que procurasse algum tipo de aproximação mais íntima com a criança. Sujeito descasado. Suspeitou-se de solidão e de traços suicidas. Disse que a menina era linda. Ela é, mas não pode tirar retrato. Não. Fazer um book, tá. Depois estuprá-la e sumir. Não. Mas pelo sujeito que era. Porque Soledad é retratável. Vai crescer e vai ver sua foto. Linda que é, vai sorrir. Imaginar-se na televisão e pensar no próximo retrato e na pose que deve fazer, se vai repetir o sorrisinho e correr para o espelho e treinar o rosto e ser feliz com isso. Crescer pela foto. É retratável. Tem uma lógica, porra. Mas os urubus ficaram quatro horas debruçados sobre um cadáver. De todos os ângulos. Aquela massa roxa e preta. IML. O doutor médico perito especialista criminoso. Assassinato é o caralho! Não é retratável, está na lógica. Máquinas fotográficas não existem para retratar um cadáver, em respeito aos vivos, sim. Amanhã está na capa do Agora. Vai fazer o que? Pedir desculpa? De qualquer forma, não se podia ter feito isso. À nossa imagem devemos nossa contemplação, nosso respeito. É o que Deus nos deu. Nossa foto é mais uma fonte de crescimento íntimo, de nossa individualidade e de sua aparência que vai ecoar na vida toda, até nas outras pessoas. Soledad ia ficar mais bonita depois do retrato, ia iluminar todo mundo, muito se sabe. E aos outros devemos dar um crédito nessa questão pessoal. A opinião é o moto-contínuo. Mas em nossa presença que façam seu julgamento. Porque para o nosso retrato, de papel, de memória, o olho dos outros é insignificante. É. Urubus. Bicaram a carniça e a carniça não tem como se defender. Ninguém aceita isso, é a verdade. Covardia. Quando o intelecto descansa é a primeira a se levantar. Não há saída. Depois de morto, acabou. Pode ser até alguém famoso que acabou no mesmo. Mas então os urubus entram em cena, quatro, cinco horas tirando fotos de algo indefeso e sem memória. Um não retrato estirado, torpe, sem juízo, inteligência, emoção, sem cu e sem nariz e sem olhos pra ver, só átomos aposentados, já parasitários no mundo do petróleo, da remoção urbana e do pouco espaço, da fome, do controle de natalidade. Tantas. E tantas que é o mesmo mundo das fotos de cadáveres. Ser humano é crime contraditório quando, de alguma maneira muito estranha, torna-se divertido abrir o Agora com a foto da nossa filha Soledad morta. Os próprios filhos de Deus. Foto de capa. Assassinato coisa nenhuma, rapá! Não havia mais sexo no corpo roxo e preto, não havia memória. Não foi assassinato de Soledad. Perícia conclusão chega resultado depois quatro cinco horas pai terça-feira indiciamento. Doutor delegado corrupto filho da puta. Dois carniceiros sobre um resto de coisa-nenhuma são os inocentes. Aliás, nem são inocentes, para eles não teve julgamento, são neutros. O meio. É, mas como fica o respeito aos vivos que o cadáver houve de deixar? Assim, de fora, intocado? Desprezo. O respeito foi anulado por lei oral.
Ah, tá, o caralho que fui eu.

sábado, abril 15, 2006

Despejo

Como pode, mulher, tu não sabes pronde ir. Eu mesmo já te disse que vás por ali, ou por aqui. E tu ficas indecisa, mulher. Botei um mapa na porta. Marquei de alfinete os lugares adequados. Pus vermelho nos bonitos. E tu olhas este mapa com os olhos que roubas de mim, mulher. Com meus olhos! Os únicos que pedi quando me ofereceram coisa melhor. És cega, porque me roubas tudo. E vai ficando com tudo dobrado. E vou ficando sem nada. Sem meus olhos. Ainda assim, mulher, sei que deves ir pra algum lugar enquanto tu não te alevantas da minha frente. Chamei-te o táxi e o táxi me vem e me fica esperando ali na rua. E eu com essa cara, sem saber o que dizer. A rua vazia. Aquele perigo todo, mulher. O pobre tem filhos, tem o carro pra pagar, ficou feliz que arranjou trabalho. E tu não te alevantas. Venho eu, bom, respeitoso, tentando fazer de tudo uma coisa só. Simplificar pra ti. Ora, pra mim era melhor que me calasse como te calas. Olhe só, como sou? Sou isso, sou aquilo. Um crápula, mulher. O pior de todos os crápulas, se depender de ti. E por quê? Por que te falo a verdade. Essa coisa dolorida da verdade sai de mim, e assim viro monstro e infiel e cafajeste. Não digo que não aceito. Me roubas o ouvido e te engulo seca na garganta. Que roubas também. Tudo roubas. Acabas de me levar dinheiro. Isso, tive que pagar o pobre pra que ele pudesse comprar a gasolina. E você? Te alevantou daí pra ver como eu fiquei na frente dele? A cara que eu fiz quando disse que não precisava mais dele, meu deus. Sabes o quanto eu tive de paciência. Cada coisa que já não agüentei nessa vida de merda. E você ainda me faz uma desfeita dessas, mulher! Por quê? Eu sei dos meus erros. Cada um deles me arranha a memória de um jeito ou de outro. Todo aquele peso no travesseiro. Ah, eu devia ter feito isso. Falado assim. Mas eu não fiz nada disso. Eu sou um cafajeste mesmo. Tu é que não vais negar. Tu vais ficar aí, encostada pro resto da vida. Com essa coisa dependurada. O mapa, mulher. Eu vejo o mapa e me vem uma tristeza tão grande no corpo. Os alfinetes vermelhos. Como pode? Como pode alguém ser tão burro? Me digas. Vai, tu que não fiques quieta agora. Fala. Eu posso ouvir qualquer coisa depois da vergonha que passei ali fora. Um frio, não podes imaginar. E vento, muito vento. O coitado lá esperando. A mesma coisa todo dia. Eu o chamo e ele vem e te espera. E eu perco meu dinheiro. O pouco que tenho vou gastando em ti e na culpa que eu tenho. E tu não te alevantas daí. Minha mãe me dizia: vá-te. E eu ia. Quando chegava eu nem pra trás olhava. Todo o caminho feito num pé só. Ta certo, mãe, eu pensava. Ta certo. Tem que se fuder na vida. Só assim pra virar homem. Mas tu sabes que é tudo uma grande mentira. E o que eu faço? Eu facilito. Sempre facilito as coisas. Olha, se for pelo caminho difícil ela me diz que não dá, se for pelo fácil ela me senta no chão e me amassa o moleque e fica ali. Sem fazer nada, senhor! Já percebeu como não fazes nada? Como não te alevantas. O que preciso fazer? Meter-te um chute na barriga? Acabar logo com isso. Matar essa coisa. E depois fingir que nunca houve coisa nenhuma. Nunca houve criança nenhuma crescendo aí. Tu abraças um bucho roubado de mim. Não bastavam meus olhos, meu ouvido. Roubas meu bucho e me dizes que carregas meu filho, que roubas de quem? De quem roubas meu filho? Eu nunca o tive, então não é meu, mulher. É teu e tu o roubaste de alguém. Não vai ser do meu dinheiro essa vida. Não será do meu sono que vais tirar essa vida. E havia sangue em ti quando deitamos. Havia o sangue e o cheiro do sangue e me vi sujo dele quando acordei. Então não tem como ser meu. Já te disse pronde ir. Não pode ser meu. Sujaste-me as roupas e vens tentando sujar-me o sono. Agora acordar é mais dolorido. Lavar o rosto, urinar. Que dor. E tu, mulher, que não te alevantas, que dor que tu sentes? Nesse chão imundo, meu deus. Percebes o mapa? Os alfinetes? Eu chamo o táxi, mulher. Vai-te embora e me leva essa criança daqui, mulher.

sexta-feira, abril 14, 2006

Imagem

Noite. Cidade. Na rua que ladeia um viaduto. Ali existem dois prédios apenas. Não são vistas pessoas entrando ou saindo dos prédios. A rua é sozinha e esquecida, parece ter existido em um filme sobre a degeneração do mundo. Matos crescem vindos das calçadas, altos e bem verdes. A rua não tem saída. Não são vistos carros passando ali. Uma placa dizendo os horários em que é permitido estacionar é uma marca. Dali, a fila de indigentes nunca passa. Não existem sinais de por que eles se forma fila. De fato, moram nas ruas e falam entre si, com vozes lentas, incompreensíveis.

Depois da placa – muito depois da placa - existe um carrinho de bebê colorido, caído contra uma parede. A parede parece ser um muro, não parte de uma construção. Não é possível entender o que a parede cercearia. Não é possível entender o que existe além da parede. Não são permitidos pontos de vista que possibilitem dizer com certeza se a parede faz parte de uma construção ou se ela é parte de um muro, muito menos se ela é todo o muro ou se um dia ela teve portas e janelas, que podem ter sido lacradas com cimentos e pintadas com cal.

No chão, entre o carrinho de bebê e a parede amarronzada existem pequenas casas. As pequenas casas são feitas de pequenos tijolos, pintadas de amarelo. Os pequenos telhados são de metal dobrado. As quatro casas, uma virada de frente para a outra, criam um pequeno condomínio. Plástico verde imita um gramado central. As casas têm cercadinhos de canudos rajados de vermelho. Parecem a maquete de um desenho infantil.

No gramado central, dois sapos. A luz do poste não os alcança: estão sob a sombra do carrinho de bebê. Um dos sapos tem um pequeno chapéu branco de caubói preso por um barbante na cabeça. Ele abre a boca, que tem poucos dentes estragados artificiais, implantes. Gargalha uma gargalhada que não se relaciona a uma gargalhada humana. É uma gargalhada de bicho. O outro, nu, observa e sorri. Ecos são ouvidos dentro das pequenas casas, de onde algo se esgueira.

terça-feira, abril 11, 2006

Gerônimo

Diziam a Goyathlay que os animais grandes, as aranhas e escorpiões, a areia e as sombras das montanhas eram ele. Que aquilo que sentia como limites de si mesmo – a pele que tocava, as linhas que encontrava no horizonte – eram uma mentira causada pelo sol e pela chuva, um sonho lúcido. Não um sonho lúcido, sejamos precisos: era o outro mundo, ligado por linhas finas e não visíveis àquele no qual as coisas são sonhadas. Tanto neste como naquele, Goyathlay deveria estar simultaneamente (pois sem um não existe o outro e sem os dois não existe Goyathlay). Algo opaco, fora de seu alcance: estar por inteiro em algum dos dois. Ainda que os mundos fossem só dele, nunca conheceria todos seus recantos.

Ele era latifundiário de terras fantásticas.

O Ancião cego, tateando no quarto em que sempre vivera, falava que por Goyathlay nãoconhecer todas as peles e armas deste e daquele mundo, nunca se veria no que vivia e no que não vivia neste de cá, assim como nunca vibraria como os sons que ouvia no escuro da cabana, um menino escondendo-se de raios que eram destroços furiosos dele mesmo, choramingando como monstros sobre algo que lhes escapava ao entendimento.

E por ser incapaz de ver a origem das imagens formadas no enorme espelho multifocal sem portas ou janelas dentro do qual se inseria e do qual não era possível sair, ele sempre estaria em guerra consigo mesmo: matar, comer e plantar, estuprar a si, produzir descendentes clônicos. Goyathlay estava condenado a ser uma besta em todos os detalhes, a cada pegada causada e a cada galho quebrado. Cada vez que calcanheava um cavalo, era seu o dorso violentado. O alimento partido pelos dentes eram dedos triturados. O ar que soprava. Tudo era ele e tudo o que ele fazia causava dor muda a ele mesmo.

As linhas que ligavam os mundos, o Ancião dizia, estavam embutidas na mulher, no homem e nos pequenos. Eles eram os proprietários das terras vizinhas, e não parte das terras de Goyathlay. Eles carregavam o futuro e o passado deles mesmos e dos outros, uma vez que, ao estarem ali, davam aos seus espelhos outros reflexos. Sem eles ali, não era possível saber que ele mesmo estava ali, muito menos cogitar a possibilidade de que nem tudo estava ali. Sem o Ancião, ninguém nunca contaria a Goyathlay que Goyathlay era o tudo e, ao mesmo tempo, incapaz de ver sua totalidade.

Goyathlay só poderia ver o que de fato estava ao seu alcance quando – quando? – todas essas dores se reunissem em uma forma de coisa massiva e suave (um pássaro emplumado de olhos humanos, do tamanho de tudo o que ele já havia visto) e o retirasse de si. Essa era a morte.

Na cabana, a mulher não tinha mais rosto e os dois dos três filhos haviam perdido membros (um braço, metade de uma perna). O outro filho havia se transformado em duas coisas que pareciam troncos. Goyathlay mexeu na carne, enfiou dedos: não havia linha alguma. Sentiu-se dolorido e despedaçado. Entendeu que o motivo para tanto era que não apenas algumas linhas de conexão muito próximas haviam sido perdidas como também fora incapaz de encontrá-las.

Era um rastreador, um apache rastreador. Ouvia passadas a quilômetros de distância e entendia a viscosidade de capim pisado. Bastava olhar para si, para alguma face do espelho, para temer o que os animais temiam. Mas ali sentiu um calor e um cheiro que desconhecia.

Sorriu, bateu com a palma da mão no antebraço. Pisou firme o pé. Ouvira falar sobre os fantasmas que andavam por aquelas terras. Eram da cor de areia, eram feitos de areia e de couro velho até na cabeça, tinham cabelo na cara, carregavam sombras de fogo.

Até seu fim, Goyathlay havia de persegui-los, de encontrá-los, de desejá-los. Eram a morte vinda do outro mundo, o segredo cuja pergunta nunca havia sido feita: o cavalo branco que cavalgara em sonhos até então esquecidos.

sexta-feira, março 31, 2006

Diálogos do fim do mundo

-O Palocci caiu?!
-Palocci... aquele do seriado infantil "Barney e seus amigos"? Ele caiu e machucou o joelho. Acho que vão precisar do Tio Ted pra arrumar isso aí, companheirinho
-Esse é o Daniel Cohn-Bendit, estúpido.
(silêncio)
-Por que, em uma conversa nonsense, um interlocutor sempre tenta impor sua 'agenda' ao outro? Por que um lado sempre tenta ter o controle sobre a maluquice? "Manhê, eu sou o nonsense, não o Mauricio. Fala pra ele parar?". Pode ser que, superficialmente, um lado acredite que uma conversa de surdos (uma conversa nonsense) deva, ora pois, ser uma conversa de surdos - assim, um sempre tem de falar algo que em nada se relaciona com a fala anterior do outro. Essa pode ser uma explicação, não? A ilusão da confusão entre forma e vontade.
(silêncio)
-Mas ainda acho que seja uma ilusão.
-João...
-Para mim, o primeiro sentido do alheiamento às agendas exteriores em uma interlocução nonsense - especialmente se escrita, se feita em programas de comunicação instantânea - tendem mais a refletir uma necessidade de auto-congratulação como um "ser especial, pois não liga para as regras, mesmo as dominando". Talvez essa seja mesma a origem da "vontade nonsense", claro.
-João...
-Dizia: "mesmo as dominando - esse primeiro sentido é o verdadeiro - ou ao menos o primordial"
-João...
-Não disse? Eu argumento para as nuvens e você chama meu nome. Isso é um diálogo nonsense. Posso lhe dar os parabéns?
-Chupa o meu dedão, João.
-Está ficando melhor. Continue chamando meu nome e fazendo ilações homoeróticas, vai dar um tom imoral e asséptico à coisa: você querendo algo carnal e eu simplesmente falando coisas que pretendo serem lógicas.
(silêncio)
-A coisa talvez seja: como duas possibilidades de causa podem coexistir? Qual porcentagem que cada uma ganha? Que diabos de lógica as domina?
-Suellen...
-Vou tentar entender o que está agindo sobre você para que possamos chafurdar um pouco mais na coisa. Você começou uma conversa pop-nonse sobre política e jornalismo (Palocci, um homem público. "Caiu", jargão da imprensa. A própria dúvida se o fato aconteceu ou não). O absurdo da coisa tem várias camadas: 1 - todos sabemos que ele caiu: você me conhece, eu te conheço, nós sabemos que nós sabíamos.
-Não, Suellen.
-Essa é a primeira graça: uma pergunta que tem, implícita, uma gozação com a resposta. Ela come etapas e retira seu próprio significado como pergunta. A pergunta, haha, não existe. Algo assim. O absurdo número 2, logo, está no fato de que mesmo existindo, a graça da coisa se relaciona a inexistência, sei lá, semântica da coisa.
-Yago, não inventa...
-Bem, dada a sua pergunta com no mínimo 2 níveis de absurdo eu respeito o nível 1 e não dou uma resposta. Entro na brincadeira. Faço uma citação ultra-pop sobre um desenho animado, o relaciono com uma figura importante. Isso tem muito mais de anárquico e iconoclasta (eu também detesto essa palavra, calma) do que de absurdo. É como em um xadrez: uma vez que o absurdo está proposto, nada mais posso fazer. Qualquer coisa que eu digo vai ser absurdo, uma vez que nada vai responder à sua pergunta. Você está com as peças brancas - mas porquê quis.
-Não, Viktor...
-OK, lá vão o Barney e o Palocci. Eles estão juntos na imagem que criei. Tem até um certo "Tio Ted", que me pareceu algo americano e infantil (assim como um joelho machucado). A idéia que o Tio Ted poderia arrumar seu joelho é a um tempo pervertido (corpos infantis nunca combinam com corpos adultos não-familiares, ahn?) e aberto: isso teria a ver com o Mantega? Assim: algo pode ser restaurado no PT?
-Isso, Geraldo. Isso.
-A coisa, claro, não se fecha - veja bem, nessa altura, nem sabíamos o que estávamos fazendo. A problemática do PT também assume importância quando falo "companheirinho". É infantil, combina com o Barney. Mas combina muito mesmo com o Palocci. A coisa é que você tentou ser absurdo, existencialmente absurdo. Eu fui mais simplório: basicamente fui irônico, deslocando sentidos. Daí você entrou de novo no meu jogo - mas com um novo personagem, o tal Daniel Cohn-Bendit, que, de fato, não tenho a minima ideia de quem seja. Mas você entrou no meu jogo de sola - me desautorizando, como que dizendo "hey, eu estou com as peças brancas, eu sou o dono do absurdo. Você viajou, eu sei de que universo estamos falando. Eu dou as regras por aqui". Primeiramente, achei que esse seu movimento tinha a ver com o fato de que eu estava quebrando o seu tal "absurdo existencial" (aquele que se refere à pergunta, que nega o próprio 'ente' semântico, lembra?), mas depois pensei: "hey, ele simplesmente quer falar. Isso nao é um diálogo e ele só intui que algo se partiu, ele não sabe de fato o que se partiu". Assim, o quê fazer? Melhor eu esmiuçar essa questão, porqque até então eu também estava só intuindo as coisas. E agora surgem outras intuições. Por que você não quis brincar de análise comigo? Por quê? Aliás, você é um cara que adora o nonsense. Pô, eu também. Mas a sua adoração...digna de análise.
-Feliz Natal pra todos, Feliz Natal...
-Pra você tb, Tio Ted. Remeter-me-ei ao Barney, para comunicar suas congratulações.
-Os amantes da guerra que conheci em guerras reais eram geralmente inofensivos, exceto para si próprios. Eles eram atraídos para o Vietnã e o Cambodja, onde as drogas eram abundantes. A Bósnia, com a sua roleta da morte, era outro favorito.Uns poucos diriam que estavam ali "para perceber o mundo", os honestos diriam que amavam a guerra. Um deles havia tatuado no braço: "A guerra é divertida!" Postou-se sobre uma mina terrestre.
-E a essa, Tio Ted? Feliz Natal para ele também? Acho que ele merece é um bom rolê em cima de um V2.

quinta-feira, março 09, 2006

Como era meu new journalism em 2004


OS INGREDIENTES

Quase todos os domingos paulistanos, uma pequena multidão de secretárias, pedreiros, pequenos comerciários, estudantes de segundo grau, empregadas domésticas, office boys, operadoras de tele marketing e de microcomputadores, donas de casa, mecânicos, caixas de supermercado e desempregados de toda espécie que moram no bairro Bela Vista preparam- se, com maquiagem oleosa, com calças jeans de barras desfiadas e cores desgastadas, com regatas de corte rasgante, com perfumes importados e batons que um dia foram caros, com bonés coloridos, com mini saias macias e facilmente deslizantes, com hereditárias boas lembranças, com blusinhas de stretch colorido, com sapatos todo pretos comprados em liquidações anônimas, tênis de marcas falsificadas e sandálias tinindo de novas, com muito gel e laquê, com uma ou outra peruca e com a expectativa de uma noite – á sua maneira – grandiosa para migrarem a pé, montados em motos trabalhadeiras de poucas cilindradas ou em carros de preços suficientemente baixos e peças suficientemente fáceis de encontrar – prontos para serem modificados com faróis verdes e azuis, sons de grave intencionalmente monstruosos, aerofólios prateados e pára- choques deformados, motores nitrados e vidros insulfilmados, cobertos por adesivos brancos que revelam obtusos desejos e reveladoras verdades, tais quais seus parentes dos caminhões: “Minha mãe minha vida”, “Nasci careca, pelado e banguela. O que vier é lucro”, “Vigiado por fofoqueiros”, “100 noção VII” - para irem até o caótico e auto explicativo “Forró da Bela Vista” e então beijar, namorar, fumar, se entediar, suar, vomitar, gargalhar, pisar, dançar, encoxar, chorar, pular, pensar, ver, beber, correr, entristecer, espremer, comer e sentir algo de diferente da hipnótica "semana".

NO FOGO BRANDO

Onde fazer o “esquenta”? O “esquenta” aqui é a primeira aproximação na noite ao álcool e ao “ritmo sensual” que há pouco tempo era hit entre os universitários. Mas que nunca deixou o gueto e que nele agora se concentra, sem vocalistas globalizados, batidas açucaradas e letras românticas. O forró da Bela vista é cantado por homens peludos, de barriga proeminente e cabelo grosso. É dançado por mulheres baixinhas de nádegas polpudas e desinibidas. Sua melodia é composta por sanfonas que funcionam apenas como lubrificante para a passagem avassaladora do bumbo profético. É tudo isso que os cinco bares próximos tocam, a uma distância de não mais que 4 dezenas de passos do “Forró...”. Perfeitos botecos customizados, com suas mesas de plástico branco, balcões engordurados, ventiladores de teto, enormes caixas de som quase que caindo e o indefectível videoquê. É aí que a coisa começa a começa a ferver em fogo brando. Todos estão em alturas moderadas com as dezenas de garrafas de cervejas e de doses destiladas consumidas. Um mais corajoso, com o microfone na mão, arregala os olhos quando cospe o refrão e recebe a estridente resposta feminino. “Aiiiii!”. Algumas pernas já se entrelaçam, algumas pélvis se apertam, alguns casais pipocam aqui e ali. Acabam-se em mãos espertas e bocas canibais. Talvez passem a noite balançando a suspensão de algum dos carros estacionados ali perto, encenando um melancólico final de noite para os menos afortunados. Mas os dados ainda não foram jogados. Todos apenas assopram as mãos. O esquenta não esquenta o suficiente – é um bem necessário. Hora largar o copo de cerveja, de rir de ansiedade e de fazer o caminho de volta, com bocas enormes e olhos injetados. Hora de pegar a fila, de pagar os R$10 (mulher) ou R$15 (homem) cobrados pelo senhor de óculos fundo e gestos lentos, de ter a mão carimbada pela mulher de pele ruim, de ter o corpo dedilhado pelos bovinos seguranças. E de adentrar o “Forró da Bela Vista”.

NA PANELA DE PRESSÃO

Talvez seja melhor esquecer os pôsteres que aparecem no corredor de entrada do forró. Afinal, será mesmo que existe o tal “DJ Maluco” anunciado em letras infantis e coloridas, sobre a foto de uma espécie de time de futebol composto de gostosas suburbanas e de homens de cabelo crespo e molhado, vestindo camisetas regatas – a tal “Banda Cachorrões”? Não será apenas marketing para atrair a classe média intelectualizada e deslumbrada pelo brega? E a banda “Pegada Quente”, anunciada pela imagem de mais um cabeludo acompanhado de uma menina vestida de Cindy Lauper dos anos 00 e de uma loira oxigenada ornamentada por algumas poucas plumas - seria uma isca para o preconceito? O bordão da “Pegada ...”é ainda mais deliciosamente narrável em rodinhas universitárias: “Mé, muié, moté”. Sexo, sexo, sexo. Daí, antes que a coisa se torne um frio tratado antropológico criado para desculpar possíveis culpas, esses pensamentos são derretidos pelo bafo e pela magnitude que, logo da entrada, o “Forró...” vomita: é muita, gente; pelo amor de Deus, é muito gente! É muito gente se amassando sob uma enorme luz negra para comprar uma cerveja a R$2 ou uma dose de “Bleck Label” por R$15 . É muito gente até o palco, é muito gente no esverdeado andar de cima, é muita gente nas escadas, é muita gente no banheiro. Como bem aconselha, interrogativo, o segurança: “Vai entrar de agasalho merrmo?” Não, não se deve entrar de agasalho. Porque logo se criam correntes de carne, de gordura e de suor – estão quase todos em contato físico, existe mais do que “algo de” lisérgico, de todo-em-um e de tribal naquele esfrega-esfrega descomunal, sob um barracão com um pé direito com cerca de 5 metros e mais uns 50m de largura e (algo assim) uns 70m de profundidade. Pois, o “Forró...” é uma noitada étnica: é a balada dos nordestinos, essa palavra cheia de senões politicamente corretos. Quase todos ostentam a pele, a altura, as gírias da região. Boa parte tem a tal cabeça chata, que não parece tão chata quando não está obrigada por um uniforme subalterno. As mulheres são quase todas mignon, seios sempre provocantes sob decotes quase que obrigatórios, ancas largas, curtindo uma balada essencialmente machista: homens só se aproximam da mulherada para xavecar - ás vezes com algumas palavras sujas - ou para as pegar pelas mãos, propondo um amassa no xote – meio caminho andado para o beijo. O forró aqui é uma onda do tipo que te causa micro tremores na epiderme, que parece criar um vento fantasmagórico, que entra no ouvido não sem alguma dor, que abafa a comunicação verbal – melhor escolher, maliciosamente, com quem dividir uma comunicação mais fisiológica. Como parece então subitamente óbvio, não existe essa idéia primária de dividir o lugar entre pista de dança e outras frescuras. Até no corredor do banheiro é possível ver uma Valéria Valensa local apertando-se com um homem quase anão, de boné manchado de suor. “No stress, yes forró”, diria um adesivo.

A VÁLVULA DE ESCAPE

O subtexto mais gritante aqui é o culto ao sexo. Ou ainda, a desregularização do sexo. Na entrada, vê-se uma mulher atarracada vestindo uma roupa sadô-masô que lhe deixa a fenda da bunda à mostra para quem quiser ver – aqui, não é preciso ser bonito, rico ou bem vestido para se ter libido, como pregam, involuntariamente, os grandes esquemas valorativos. Agora vá até o banheiro masculino: existem ali pacotes de camisinhas pendurados – colados? – por toda a parede, literalmente forrando-as: “Olla”, “Jontex”, “Prudence”. É a ostentação da potência sexual, uma maneira quase selvagem de auto-afirmação num mundo que parece ser dividido entre fêmeas e machos. Então pare e perceba a forma do palco. Ele é enorme, um pesado altar de concreto armado para o culto ao prazer. Quem não se contenta em ouvir refrões como “Ele só quer me pegar e pau, pau, pau” e resolve entortar bem o pescoço para ver a banda metros e metros acima, enxerga: grupos que se dividem, basicamente, em músicos (como um raquítico baterista com a camiseta do Bob Marley), dançarinas (mulheres com saias curtinhas e calcinhas chamativas) e cantores (homens, quase sempre de regata e calça jeans). Eles estão ali em cima, propagando o sexo em forma de ondas que farão casais espremerem seus genitais sob camadas de tecidos alguns metros abaixo. E todos sabem do que se trata quando uma voz amarronsada e coletiva canta junto: “Se tiver dinheiro, calcinha no chão. Se vir de fusquinha, eu não vou não”, balançando o dedo borrachudo. O sexo aqui é endógeno, ecoa através de uma progressão geométrica de razão social: na falta de inclusão, cria-se o hedonismo do excluído. Excluídos pelos salários apertados, pelos bairro onde moram, pelas roupas que vestem, por não entenderem (ou entenderem demais) a cultura pop – e colocarem na porta do banheiro um pôster do Bon Jovi ao lado de um da Shania Twain, embaixo de um do Eminem e de frente para um de Alexandre Pires. Nessa completa confusão de referências e de estímulos, de onde ninguém sai sem travar algum tipo de contato – ainda que seja apenas no roça-roça molhado e incontrolável – o caos faz um tremendo sentido orgástico.

segunda-feira, março 06, 2006

A Fogueira (1)

Das vias brota água. Vias de poeira e pedregulhos, secas, como as do deserto. Brota a água mais barrenta, ilhada entre as bordas dos buracos. Não chove há duas semanas, mas as cavidades que irrompem como feridas pelo trajeto estão como pequenos lagos de larvas. São milhares de buracos. Grandes e pequenos e ignorados. A lama beira os pés e o chinelo que deixam marcas entre as poças.

As vias são ladeadas por caminhos de grama verde e pedaços de madeira e folhas secas da cor da pele, mas uma pele mais rica em cor. Mais saudável. E os garotos procurando lenha precisam se equilibrar porque não querem pisar nos buracos, mas também porque dividem a atenção que devem à via com as guias. Passam por troncos pesados demais para carregar, galhos verdes demais para queimar. Quando encontram a lenha a vêem misturada com a sombra da noite e os braços apontam queimados do sol do dia que já se foi e todo movimento deixa um rastro sob a luz artificial dos postes de concreto e papel gasto. Um deles se aproxima de um tronco como quem é apresentado a um animal selvagem no Safári e se encolhe no banco do jeep enquanto o carro vai ao encontro do bicho que grunhe a uma distância suficiente para o som não se tornar assustador a ponto de acabar com qualquer chance de que o doméstico protegido e o selvagem acomodado se encontrem e descubram porque afinal devem estar juntos. Se devem. E o primeiro contato é feito com os pés. O tronco balança sem deixar sua posição. Os outros garotos formam um semi-círculo ao redor do objeto, como se um fogo frio e invisível o estivesse consumindo. Um deles segura um cigarro com a brasa viva no contato com o vento leve que, ainda assim, consegue quebrar a barreira das árvores e das casas. Está afastado. O joelho esquerdo flexionado, a mão esquerda sobre a coxa esquerda, posição que é cômoda por uns segundos, depois torna-se estranha, desnecessária.

Duas semanas sem chuva e parece que um temporal acaba de cair. É como aguardar em casa após a chuva que quase pôs tudo abaixo. Os gestos cuidadosos trazem a cortina para mais perto do corpo e o olho investiga o mundo lá fora - a chuva acabou, mas tudo é úmido agora. Só que não houve chuva, e, ainda assim, a via está úmida; e os garotos se esgueiram pelos micro-planaltos que se formam entre um lago de lama e outro catando a lenha que aparecer para fazer a fogueira e dançar a dança da chuva e descobrir se o fogo brota também.

O barulho do tronco caindo na areia da praia ecoa abafado pelo choque das ondas sobre a costa. A água toca as proximidades do tronco, mas perde força antes que possa encharcá-los e volta para o mar como se fosse um homem que escorrega lentamente de um penhasco deixando um rastro do seu sangue. Os dois garotos que o trouxeram sobre os ombros entreolham-se e voltam-se simultaneamente para o oceano, pouco mais escuro que o céu, de onde vem o som relaxante da água em movimento pontuado pelo batuque bruto da rebentação. A caminho dali, os outros carregam folhas secas e pedaços de caixotes que foram jogados no lixo para virar cinza algum dia - a folha do coqueiro sendo arrastada pela areia vai deixando um caminho animal, de um bicho ferido a bala que será assado para alimentar o cano de metal. Toda a lenha é amontoada em um ponto aleatório da praia e a brisa irregular do litoral refresca a cancha do abatedouro e os garotos estendem seus corpos fracos na cama de grãos de pedra, minúsculos seixos lapidados pela sofisticada impaciência do oceano Atlântico.

Como torres de observação armadas em cada extremo da pequena faixa de areia da praia, dois morros cobertos de arvores nativas da base ao cimo, ladeados de rochas, encobrem a parte menos estrelada do céu meridional. O Cruzeiro-do-sul repousa pouco acima da torre-oeste, Ursa Maior e Draco estão encobertas por um travesseiro gasoso que esconde todo o perímetro leste da gigantesca via-láctea. Uma fileira de coqueiros é a fronteira entre a areia da praia e a terra arenosa das vias que levam a ela. O mar admira-se no espelho: o campo de areia ondulado como o mar, por açoite do mar, que lambe onde quer, quando pode.

Toda a lenha já foi despejada sobre uma parte seca da duna. Mas a água continua se arrastando imperiosamente pelas proximidades a cada dez ou vinte ou trinta segundos. Vem sangrando e vai sangrando no penhasco plano. Os garotos conversam entre si decidindo a melhor estratégia para acender o fogo sem perceber que a lenha pode ficar inutilizável e sua discussão apodrecer no útero. Um estrepitoso tambor e os braços úmidos do oceano dão um tapa em toda a madeira, encharcando a possibilidade imediata, espontânea e natural do fogo, mas acendendo a busca por algum tipo de controle humano sobre ele, possibilidade que diferencia os garotos na praia da própria praia. O curto período de frustração que se seguiu ao acaso torna-se um réquiem deslocado para o allegro maestoso da busca pelo resultado artificial que o animal humano conseguiu sobrepujar à natureza, sua mãe bastarda, desde quando e sempre que a simpática natureza não faz questão de revogar a guarda de seu filho e engoli-lo com muito mais do que uma sobra de onda: um dos garotos gabou-se com 50 folhas de jornal e outro o coroou com um isqueiro Bic amarelo. Fizeram um buraco inconsistente no chão volúvel e abasteceram-no de papel-jornal. Alguns pedaços de madeira foram atravessados sobre o forno e, após breve estudo do pavio desajeitado, a chama inocente do isqueiro contamina a lista de notícias. O primeiro fogo não faz barulho, só dança ao som do mar. Os olhares sobre ele. O mais irrespondível das perguntas. Quantos segundos? Dez ou vinte ou trinta? Fogo-fátuo. Com a lenha úmida o jornal queima sozinho e rápido, sua chama quase não ataca o casco remediado da madeira. Mais jornal é contaminado. É visível e espetacular a negrura engolindo as palavras tal como o mar havia feito com a lenha. Só que o mar é o sádico misericordioso e o fogo o assassino. O sopro humano o provoca e tem resposta na brasa que reluz mais vermelha e faminta em pequenos pontos do combustível. O azul da fogueira almeja os pedaços de pau em intervalos indistinguíveis matematicamente, mas certeiros e aleatórios como a espuma do oceano surgindo depois das ondas.

Ironicamente, o líquido inflamável que abastece o fogo na lenha é o líquido reluzente que embeleza a mobília de madeira. Mais um subterfúgio da prole criado para ouvir os gritos da progenitora. Os garotos fartam-se de vê-lo infeccionando o coração do forno. Agora toda chama é azul quando nasce e festiva após tornar-se adulta. À noite, toda chama é de um azul ornamentado de vermelho e amarelo. Misturados ao mar, ao vento e à terra, os garotos só conseguem olhar para o fogo.