Contos, crônicas e novelas.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Letícia


Como poderia uma mulher ser mais vadia que Letícia? Como poderia uma mulher, mesmo que existindo apenas como imagem encarnada (você simplesmente concorda que ela é feita de carne, você nunca tocou nela) em um cenário urbano qualquer – mesmo que vista apenas por alguns segundos em um posto de gasolina, na madrugada, andando apressada: não parece estar se divertindo: ela é a responsável, tem suor nos cabelos pintados irregularmente de amarelo que caberiam num tufo apenas e olhos de mãe apartada da cria, de forma alguma escolhida e ainda assim responsável por cuidar de todos que riem e de todos que olham os que riem querendo também rir e de todos os que ainda sairão de trás das cortinas para encostar e entrar em carros empoeirados e foscos (muito usados), para participar desse filme B de diversão adolescente que estourou o orçamento a ponto de não poder sequer pagar as passagens que levariam os atores de volta para casa (ainda sobrou algo para a cerveja e os cigarros cenográficos), de forma que eles parecem estar congelados em algum momento panorâmico do roteiro, em que os papéis de mocinho, mocinha e palhaço, de vilão e de vilã e de palhaço negro, estão turvos – quem visse os rolos perdidos dessa produção poderia muito bem perguntar se afinal alguma dessas representações existiu em algum momento: havia algo de real para ser encenado, todos se movimentando como gravadores donos de membros e articulações, repetindo falas decoradas não pela leitura do texto, mas pela incessante tentativa de falá-las corretamente, resultando em diálogos que, coerentemente, ninguém escreveu? Você concorda que eles não falavam, de fato, nada; que os sons que ouvia podiam muito bem sair das caixas de som penduradas do lado de fora da loja de conveniência. Pois bem, como poderia essa diretora involuntária de um elenco nunca avisado sobre os próprios encargos, ao ir buscar algo a alguém cuja feição e voz você nunca verá (alguém que está sentado no asfalto do canto do posto de gasolina, alguém que parece precisar de ajuda), ao andar apressada pelo cimento cheio de chicletes cuspidos e transformados e confundidos com gotas de óleo, com o amarelo da pele transformando-se com o branco que cai vertical dos tubos de luz pregados atrás das placas de plástico, criando linhas cinza em torno da boca e sombras por um momento monstruosas sob as orelhas – como poderia essa mulher encarnar melhor a idéia loucamente maleável de “vadia”?

Os indícios estão na blusinha branca de alça que lhe parece encardida (a etiqueta para fora), na calça jeans rajada de vermelho, na sandália tão “tropical” de borracha, nos dedos magros, no peito afundado e na bunda enfiada, na cara de gente usada por tantas outras gentes. Mas o que são indícios? Você não sabe explicar o que lhe dá a impressão de uso. Você fica triste quando olha para ela (você sabe o que é tristeza, oras), você sente que nunca precisou viver o que ela viveu – sim, esse tipo de alegria traz tristeza. Você é superior a ela, foi mais vezes feliz do que ela. Você sente que, das poucas vezes que foi acentuadamente carente – todas as vezes que precisou de alguém para sentir que ainda existia, para ser dono de alguém ou ter um dono, para tocar algo – tinha plena consciência de sua situação e que, por isso, nunca se tornaria um cafajeste, um espancador-de-mulheres-e-filhos, uma vadia. Dessa doença você não corre risco nenhum de se infectar. Tem o anticorpo da consciência. E você é tão sabido a seu respeito que até vislumbra que isso é mentira – você lê jornais cheios de entrevistas e livros de psiquiatras e pensadores; você não tem certeza, mas se pudesse arriscar (numa aposta, digamos, com deus), diria que existe sim um lugar em seu corpo mental onde você mesmo, por motivos que desconhece (ainda que estes motivos já estejam catalogados pelos mais discutíveis padrões), esconde memórias de fato e memórias inventadas e cria padrões e relações tão alienígenas a você quanto qualquer uma das incontáveis ciências que existem ou já existiram. Você pensa se esses fatos, invenções e padrões e relações são geridos por uma lógica que fica fora desse lugar (que forma ele teria?) ou se esta lógica vive lá mesmo – até se ela é mesmo uma lógica você já pensou, já que, bem... “É possível organizar aquilo que sequer sabemos a existência?”. Esse tipo de pensamento é que sempre te deixou algum resto de dúvida sobre o inconsciente. E você é tão ponderado que até aceita que a idéia de julgar as pessoas assim (como se tivesse poderes para-psicológicos, de forma abrupta e cruel) é um pequeno defeito a que todo ser humano tem direito, desde que não levada a suas últimas conseqüências.

Mas que tipo de últimas conseqüências podem ocorrer entre você e Letícia? No começo, você nem sabia ao certo se ela era de carne. Agora, ela está lá, de cócoras, passando a mão na cabeça do rapaz de boné. Ele não tem rosto, o dela fica com os olhos pressionados sob as sobrancelhas quando ela alisa o cabelo dele e oferece a garrafa de cerveja que havia ido buscar. Deus, como ela é uma vadia com aquela roupinha e aquela cara de menina pobre cheia de problemas em casa, você pensa. Então aquele escudo baseada na idéia de que “todos os seres humanos têm direito a seus próprios pequenos julgamentos arbitrários internos e mudos” vai perdendo escamas: não apenas porque as espadadas são cada vez mais fortes (as espadadas de uma certeza que é, mesmo analisada por qualquer uma das idéias auto-julgadoras que você julga possuir, cada vez mais nítida), mas também porque, por mais que você conheça a si mesmo e os possíveis mecanismos que regem o modo como você percebe o mundo, você não entende porque escolheu ela. Os outros que ela em um momento pareceu comandar (sim, pois ela era a Vadia, a única que você tinha certeza de carregar uma marca indelével de corrupção e, portanto, não poderia ser outra a pessoa responsável por aquele bando de pessoas amorfas tão diferentes de você, tão responsáveis por tudo aquilo do que você quis se manter longe por ter se mantido tanto tempo tão perto sem nunca se sentir parte integrante (ou nunca ter sido aceito como parte integrante?)) não mais são, (como é que você pensou?), “atores” – ela não dirige mais filme algum. Eles começaram a criar um tipo de vida, eles são pessoas felizes, orgulhosas, com milhares de pequenas realizações, honestas, com toneladas de honra a serem carregadas e esmigalhadas e recriadas, eles tornam outras pessoas felizes, se apaixonam e se decepcionam: eles acordam cedo e se esforçam para alcançar pequenas realizações honestas – os tipos de passos capazes de suprir essa necessidade enorme de honra que cada um deles tem, e para isso se apaixonam e apaixonam outras pessoas, mesmo sabendo que tudo terminará em decepção. Um dia todos ali já foram um pouco você e você (você percebe) é violentamente cada um deles ali.

O escudo perde escamas pois a única conseqüência que pode derivar da relação entre você e Letícia se derivará não de Letícia (aquela feita quase de carne), mas justamente de sua idéia sobre a Letícia e, se você quiser manter seus dedos longe da vileza, da crueldade e da inconsciência sobre o valor moral de cada ato seu, é melhor começar a se sentir mal consigo mesmo (nessa altura você largou o escudo e pegou algum tipo de chicote conhecido): nada como uma boa dose de incontrolável e justa culpa. Você sabe que isso vai lhe fazer bem, que essa auto-flagelação vai servir como purgação para esse emaranhado de sentimentos que agora te agitam. A dor pacifica. Mas existe um problema, porque quão mais perto você está dessas pessoas e mais você vê Letícia, mais elas parecem como você e mais você quer se ver livre delas porque você detesta – sempre detestou, se sentiu mesmo fisicamente mal –entender quem você é: julgar com olhos que se pretendem imparciais sua colocação na imensidão da terra (segue longo blablablá mental com influências que você acredita serem orientais sobre a importância de um grão de areia no deserto) suas origens (de uma banalidade de almanaque) e seus pensamentos (aí é gerado um pequeno paradoxo: como é possível ser tão risível como você acredita ser se você entende muito bem quão risível você é?) era o que mais doloroso existia em sua vida mental. E o problema que se coloca então não é mais o da culpa pela maneira como você julga os outros – Letícia, a Vadia, e seus asseclas – mas sentir culpa por julgar de maneira tão sacana, perversa e desumana a si mesmo.

E quanto mais você conhece Letícia – porque, ah, você se conhece muito bem –, uma dessas meninas que perdeu a virgindade com 18 anos, tem vergonha de falar de sexo e nunca fez anal (mas que ajudou e aconselhou muitas amigas nesse quesito), mais lhe parece que ela foi estuprada pelo dono do mercado (pode ser também o pai, o tio, o irmão, desde que seja mais velho, sujo e um psicótico adormecido), que ela adorava a se masturbar durante infância na frente de pais estarrecidos, que transou com todos os meninos da rua antes mesmo que eles tivessem a idéia de organizar um calendário de revezamento, que já fez 7 abortos desde os 18 anos, que sofreu apenas por um homem (cabem aqui outras possibilidades de traumas incestuosos). Mais ela lhe parece uma mulher que irá lhe prender num cercadinho de látex, te dar mordidas ocasionais no pênis - das mais dolorosas possíveis – e lhe aplicar castigos físicos que arrepiam a espinha mesmo antes de se concretizarem como idéia. Quanto mais você pensa sobre essa menina doce ajudando um amigo ou namorado em um momento difícil – sendo verdadeiramente boa - mais você a imagina vestindo sua camisa larga, dizendo que o ama e, logo depois, em sua imaginação, chupando o pênis de seu melhor amigo em sua própria cama.

Você se pergunta, por fim, porque a chamou de Letícia desde o começo. Depois, se é possível qualquer coisa ser de forma absoluta aquilo que parece.

Talvez devêssemos nos perguntar o que faríamos se o mundo fosse exatamente o que acreditamos que ele é.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

O Acidente

Ela havia se plantado na minha vida logo embaixo do meu carro, se materializado como um bebê cinematográfico vestido de branco, os cabelos lisinhos, cortados chanel, grudados na boca e expulsos de lá a cada urro, a pele plástica cristalizada em algo quente e vivo e absoluto, avermelhando-se.

Eu ainda não ouvia nada na verdade – os pistões e seus asseclas harmonizavam-se com cada um que povoava as calçadas e faixas e petróleo endurecido da avenida; guiavam suas bolhas de calor e seus dois periscópios ainda embutidos mas já em funcionamento a cada passo com estardalhaço profundo, cego-surdo-mudo e eficiente: todas as incríveis conversas nos celulares e as arrumações cortantes das roupas, os isqueiros trincando e os jornais se abrindo e o ar que eles mesmo moviam com os braços e pernas e troncos e cabeças era jogado de um lado a outro, meio que uma piscina pública e invisível sem bordas à vista ou regulamentação prevista em constituição alguma e era estranho pensar isso, porque alguns olhavam para cima como esperando que o céu tremeluzente azul-claro fosse a superfície e que as nuvens cinza e azul-claras os borrões de pais preocupados com um mergulho demorado demais para filhos tão jovens e ainda com os pulmões em fase de amadurecimento celular. Das janelas das torres, salva-vidas assistiam. E outros talvez imaginassem que até suas sombras faziam algum tipo de barulho porque olhavam para elas curiosos e outros simplesmente estavam parados, inflamando em ondas de calor que poucos aparelhos manufaturados pelo homem até hoje são capazes de visualizar – e mesmo sem ter ninguém para vê-los eles queimavam sozinhos e viravam os pescoços em penitência solitária, imaginando se, quem sabe por um dom fisiológico desses que figuram em livros de medicina datados da época em que ainda se acreditava que não se sabia tudo sobre as capacidades extra-humanas dos humanos, não encontravam os futuros membros de um grupo de ajuda muito específico ainda a ser criado.

Eles pareciam em uma procissão laica. Eles logo estariam em todos os lugares. Um me olhava, quase no fim do horizonte - ele estava na ilha da avenida e de onde eu estava não se via feição, sexo ou preferências de moda, mal se via o vão entre as pernas ou se diferenciava a cabeça do pescoço. Por fim, não era tão maluco imaginar que não havia espaço imaginável que algum dos olhos abertos e fechados não cobria. Ou que existia algum deles que não estava sendo – naquele momento em que vi a menina de cabelos chanel entre o retrovisor esquerdo e a porta do carro-, observado por alguém – ou que qualquer um deles não estava a observar algum outro.

E eles faziam isso tudo em silêncio, como doppelgangers das próprias almas.

Pois essa galera, toda a rapeize, toda ela, era o pano de fundo de um ruído maior. Um ruído ouvido quando algum esticava com os dedos as rugas e olhava no espelho como seria se sorrisse o sorriso que sorria há dez anos, um ruído ouvido quando dormiam flutuando nos céus avermelhadas da cidade e encontravam-se sob estrelas foscas e nenhum reconhecia os rostos fantasmagóricos um dos outros, um ruído que muitos confessaram a padres, irmãos, pastores, psicólogos, psiquiatras, melhores amigos, pais e mães e amantes e maridos e esposas (até a filhos!) ser estilhaçado em diferentes pequenos barulhos que ouviam quando dirigiam ou quando viam a TV ou quando se debruçavam em janelas, um grito ou uma risada ou apenas um bater de bolas de metal gigantescas (isso quando elas não rolavam pela rua), cuja origem, juravam, nenhuma equipe de prêmios nobel no mundo seria capaz de identificar. Alguns mais suspeitos diziam que duvidavam da existência de uma real origem dos barulhos. Da minha parte, sempre os ouvi e sempre achei que, se fossem condensados em algum lugar, esse lugar bem que poderia ser o frágil muro que se estendia por boa parte daquela avenida – ele corria paralelo dos dois lados, e terminava em pequenas casas enegrecidas, quase idênticas, ruínas de uma cidade esquecida ali - onde eu estava com o meu carro parado sobre uma mulher. Seria um grafite animado, com cores delirantes, parecidas com as usadas na pintura desses carros customizados. Ele brilharia mesmo que se abatesse sobre a cidade a absoluta escuridão (precisaria de algum tipo de fonte enérgica independente) e, dependendo dos artifícios tecnológicos, poderia também emitir holografias, imagens em 25 dimensões, a coisa toda – existe o problema adicional de ser necessário proteger os aparelhos geradores da coisa toda de gente muito empolgada com a idéia de levar um pedacinho deles mesmos pra casa, talvez um pequeno posto policial em forma de choupana fosse construído ali e, bem, não duvido se os policiais mesmos se tornassem uma diversão a mais, com os óculos escuros que usariam nas guardas noturnas, surfistas armados e admirados pela bovinice que olham os transeuntes: “essas caras são confiáveis”. E nesse muro, nesse grafite, nessa intervenção urbana pensada por um administrador público maluco não haveria um milionésimo de centímetro sequer livre. Haveria muita gente, gente esgotando os verbos do dicionário, gente que se você fosse contar demoraria 3 gerações e meia. Ele deveria evoluir segundo a mão da rua, de forma que quem fosse passando com o carro poderia ver a impossível evolução de todas essas pessoas fazendo tudo aquilo: pilhas de corpos mortos, como arranha-céus de carne e molho, pisoteados e esmagados (e transportados de mão em mão por sobre cabeças baixas, com sangue grudando nos cabelos dos outros) deveriam se formar nas esquinas de tinta, como monumentos instantâneos e instantaneamente apodrecidos (um pouco de efeito sinestésico cairia bem) em memória da própria multidão; e provavelmente demoraria alguns anos para que algum dos desenhos conseguisse chegar aonde deveria e havia até a suspeita muda e generalizada (entre os rabiscos) de que não haveria oxigênio ou energia ou gente mesmo para todos; quando sonhavam (essa parte era essencial) sobre sua volta por ruas vazias repletas desses sinais visuais ininterruptos de que se está voltando, veriam que seus lares teriam dado lugar a alguma abandonada praça com o nome de seu bisneto morto há séculos – a placa reluzente sob a sombra aracnídea de árvores não podadas e crescidas demais. Ter-se-ia a impressão, ao terminar o trajeto do mural, que todos haviam combinado de sair à rua àquele horário específico, irresponsavelmente, deixando esposas e maridos e mães e pais e vós e vôs e tios e tias e a parentada toda que não viam desde há tempo suficiente para não saber dizer quanto: em casa estavam todos aflitos. E haveria os filhos ignóbeis brincando com a TV e os cachorros e gatos e iguanas e peixinhos-de-aquário roendo ossos e pernas de sofá e toda a comunidade de insetos domésticos que precisava ser alimentada pelas montanhas de restos que aqueles pais e mães de família pagavam com o suor de seus aprendizados rastejaria pelas bordas do mural criando um cinturão como que feito de gás fluorescente - mas apenas de perto se poderia identificar a espécie de cada uma das pequenas manadas, contando, claro, as patas. Esse mural não produziria som algum, mas aposto que nasceriam lendas sobre desenhos que saíram andando dali, desenhos que criam vida e que comentam, para quem suporta vê-los se desfazendo em poças de óleo, sobre o ruído de metal esfregando-se em metal que todos ouvem lá e que todos se perguntam, lá, se não é justamente daqui que ele provém. Nasceriam muitas lendas sobre esse mural. Nenhuma delas faria as pessoas ficarem em casa.

Todas elas – as de carne – agrupavam-se com estranhos, com “coadjuvantes de sonhos”, nessa dança coreografada por sinais de trânsito, leis newtonianas e compromissos, não há dúvida, inadiáveis. Era essa dança repleta, esse coletivo de massas de coisas móveis sobre outras tantas imóveis (essas já pareciam a mesma coisa, a mesma terra e as mesmas pedras que estavam ali antes mesmo de serem moldadas em enormes línguas utilitárias e antes de se equilibrarem como totens sem povo, como dobraduras de gigantes) que me obrigava – que me obrigava a também seguir meu papel – que me obrigava a lembrar das aulas de leitura labial assistida em algum telecurso passado numa tarde, suando sobre um sofá de couro falso, e a olhar pelos vidros do meu carro, para as pessoas que haviam sido retiradas por uma maquinal pata de metal retrátil da dança (era o dever, o dever de se blindar contra o dia em que eles mesmos seriam a vítima assistida) e que agora tratavam de trazer do mangue das lembranças (um interlúdio, não mais do que isso) sua lições básicas de cidadania e acudiam aquele inseto de quatro batas e busto suculento, quase saltando do seu decote “pro trabalho”, que se prostrava sob meu carro como se o apocalipse ainda não houvesse chegado.

Tentei rememorar: ok, o sinal abriu, eu engatei a primeira, eu pisei nos pedais do meu Ford (“alternadamente, isso eu sei”), girei minha direção hidráulica com a ponta dos dedos, olhei para os lados (“nada”) e senti o pneu passar por cima de algo macio. Oh!, então é ali que ela entrava. Por pouco achei que fosse um gatinho, quem sabe alguma criança. Mas a moça já calada, encolhida no canto esquerdo da minha visão, soltando lágrimas visíveis pela incidência obliqua do sol – moedinhas de um país infantil no rosto daquela princesinha de contos infantis-, e as pessoas batendo em meu vidros com os punhos fechados e as sobrancelhas arqueadas em desespero e outras ali na esquina, parando para queimarem sozinhas um pouco, prostradas não exatamente pela moça sob o monte de ferro e plástico sujo de um monte de coisas do meu carro, mas por todos os outros que podiam ver entre a multidão, que por um momento se apartaram dela, por todos os outros que simplesmente estavam ali perto e viram a coisa acontecer, que viram o que aconteceu comigo mas que nem eu tinha visto, por todos que sabiam mais que eles e mais do que eu próprio, pelo magnetismo que a pata de metal retrátil – que era por si uma peça da coreografia, mas que fazia apenas aparições especiais – especiais, sacou? – exercia sobre eles – um magnetismo amoral, gravitacional. As pessoas que olhavam as pessoas me olhando e gritando não tinham idéia do que olhavam, mas sabiam tanto porque faziam aquilo como os comediantes sabem por que falam tal frase em tal contexto em algum dos vários programas humorísticos da TV a cabo nos quais são pagos para improvisar. E nisso passou um carro de polícia pela rua e o policial estava sério, como se tivesse brigado com o motorista, e eles olharam aquela aglomeração e o carona jogou uma bituca de cigarro que ricocheteou na borda da calçada e que quase caiu na água que corria como um rio negro em miniatura – mas que ficou fumaçando o filtro a não mais do que 2 centímetros do fluxo – e o que jogou a bituca com a ponta dos dedos olhou para frente e fez sinal para que o outro seguisse e eles seguiram até uns 20 metros adiante, porque o sinal estava fechado e, putz, quando o sinal está fechado e tem carros na sua frente nem um poderoso giroflex de laser parafusado no teto da sua viatura é capaz de fazer isso desaparecer. Ainda olharam pelo retrovisor as pessoas que batiam nos meus vidros, mas um deles tirou o boné e coçou a cabeça e quando eu olhei de novo não havia carro algum parado no farol. Batiam fortemente nos meus vidros, eram um 57, acho – ou apenas 3, ou 15, algo na casa da segunda dezena...é, era isso: 21 pessoas – e acho que batiam muito forte porque eu nunca tinha ouvido esse tipo de barulho dentro do meu carro, era um barulho desses que se ouve quando se está dentro de uma piscina e alguém pula com os joelhos grudados no peito mas era mais que isso porque era um bombardeio de fetos animados num domingo a tarde de uma piscina privada ou eram as pancadas de tacos de beisebol dadas por mafiosos em um homem dentro de um saco cego ou era uma chuva de granizo ouvida sob um teto de zinco forrado de algodão. Cutucaram-me em sonhos e fizeram que o homem preto sob o muro branco de minha infância e minhas fantasias de não-pertencimento caíssem como um véu ancestral, nublado, desnudando uma frase quase que escrita no pára-brisa: “O que está acontecendo?”(CONTINUA)

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Diálogo entre conhecidos

Um homem acompanhava um amigo que trabalhava em uma distribuidora de galões de água na cidade de São Paulo. Vagando pelos corredores da firma enquanto o amigo buscava documentos que dizia precisar levar para casa, viu atrás de uma pequena janela de acrílico um homem que conhecera através de uma amiga da irmã há não mais que duas semanas em um evento social banal - bar, apartamento ou restaurante? Bateu na janelinha da porta e o outro, sem olhar quem era, fez sinal para que entrasse. Cumprimentaram-se com apertos de mãos e sorrisos e as frases costumeiras trocadas entre conhecidos, cada um se esforçando para se lembrar dos detalhes do primeiro encontro e para que essa lembrança ficasse nítida aos olhos do outro. O que bateu na porta pensou que talvez não devesse ter batido e o outro que talvez devesse ter fingido não ouvir as batidas, mas esses pensamentos foram substituídos pela necessidade de arranjarem assunto. O visitante olhou o estranho escritório – que tinha apenas uma cadeira de madeira, uma mesa, uma lata com canetas bic azuis e diversas fotos do próprio conhecido. Dezenas de três por quatro com ele de gravata, grudadas no tampo, outras menores emolduradas em madeira e uma muito grande, de frente para o conhecido, em uma moldura de metal fosco. Nesta ele estava apoiado na frente de uma outra mesa – como se a usasse para se levantar -, com outra cadeira e novas prateleiras cheias de livros ao fundo. Era uma foto em preto e branco e o conhecido levantava acintosamente a sobrancelha direita. Usava uma camiseta curta que grudava em seu corpo mostrando uma pequena barriga. Seu cabelo liso, com a franja na altura dos olhos, estava jogado de lado. Os braços pareciam menores que o normal e os olhos eram quase imperceptíveis.

- Bela foto.... que enquadramento! Quem tirou? Stephen Hawking, he he?, disse o visitante.

Stephen Hawking? Por que ele teria tirado aquela foto, oras? Quem é Stephen Hawkins mesmo? O conhecido olhou para os olhos do visitante com a boca aberta.

- É uma foto do meu book. Vou ser modelo de uma marca de roupa para homens medianos e tímidos.

Riram em uníssono risadas muito parecidas, com uma espécie de sopro no final de cada uma delas. Pararam no mesmo instante.

- É sério, repetiu o conhecido, seriamente.
- Verdade, concordou o visitante, essa foto vem depois daquela em que você está com uma camiseta do Big Johnson e uma ceroula verde-oliva....

Não riram muito, apenas sopraram. Talvez o outro não se lembrasse de Big Johnson, um personagem de camisetas que fizera sucesso na infância do visitante. De fato, não sabia quantos anos o outro tinha. Talvez não tivessem nada a compartilhar sobre suas infâncias. O conhecido olhou de novo a foto.

-Você não acha que tou passando bem a mensagem?
- Sim, quase exageradamente.
-O pessoal da agência está pensando em criar um slogan assim:"o homem mediano e tímido também tem intimidade"... Riram de novo. O conhecido olhou de novo para a foto.
-Uma das coisas mais legais dessa foto é a cadeira e os livros atrás. Tô no meu escritório: aquele é o meu lugar.
- Ha ha, sim. Você foi pego tipo de surpresa, estava revendo uns holerites..... e, bum!, veio o paparazzo.

O conhecido levantou a sobrancelha, como que imitando a foto. Falou seriamente:

- É, isso mesmo, estava vendo uns holerites, falando com o contador. Balançou a cabeça e passou a língua rapidamente pelos lábios e disse: “foi de repente... quando chamaram minha atenção, juro que nem vi que ele tinha uma câmera, ha ha”.

O visitante olhou para as paredes e para a camiseta branca de seu interlocutor e notou que pareciam sozinhos na prédio, apenas o som de máquinas ligadas em tomadas, tremendo, suando vapor quente, emitindo um gemido que partia zique-zagueando no ar como moscas saídas de um relógio. E devia haver algo na frente da porta, porque a janelinha de acrílico estava escurecida. Mas não havia sombra pelo vão entre o solo e a porta. Lá fora, dez andares de distância, um homem gritava e gritava e ria muito depois. O visitante riu muito também, sem sopro no final – era mais um gritinho agudo, uma voz adolescente saindo de dentro dele.

- Desse filme essa foi a última foto sua...ha ha. Depois ele tirou uma com a secretária fazendo sexo oral no contínuo, lá no almoxarifado.

O conhecido bateu com a mão no peito e arregalou os olhos e riu muito.

- "Barbárie Comportamental na Firma 3", ha ha.
- Com o Jão Bilau e com a Paty Lambuzada.... adoro aquela parte em que o porteiro enfia uma camera de circuito interno dentro do ânus da atriz coadjuvante pra vigiar o movimento suspeito da malandragem...
- E ela faz a pegadinha do peido com a faxineira?
- Isso... a faxineira... Cleyde, acho. Casada com o bandido que assalta a firma e come a mulher do patrão. Porra, o cara tem uns 28 centímetros de pica!

O conhecido levou as mãos aos braços da cadeira, como se fosse se levantar. Riu, como o outro, mas depois pegou a foto e virou-a para diferentes lados, como se aquele ângulo não fosse o certo para vê-la, ou como se houvesse algo escondido além da moldura de metal fosco.

- Cleyde... nunca vi mulher mais alegre na vida. Era só dar um pedaço de pau com um pouco de pano na ponta, um balde cheio de água ensaboada e uma privada encardida que a mulher sai cantando pelos corredores de piso frio! "lá lá lá lá, o amooor lá lá lá lá bate como uma estalactite na coração lá lá lá lá"

O visitante apenas esboçou um sorriso. O outro não ria.

- Tão cômica, a pobre! A câmera só não pegava a parte em que o marido, em casa, dava umas chicotadas com o cinto na boca dela. Depois ela me dizia que ele ficava gritando: "tô comendo quem? Quem que eu to comendo, sua puta? Nunca te traí na vida, mal-agradecida!". Sempre imaginei que depois ela cantarolava aquela música enquanto limpava o sangue com papel higiênico e colocava o cobertor sobre o marido adormecido. Mas... beleza. Quem é que quer ver essa estalactite?

O visitante não sabia bem o que dizer. Falou sobre a vez que se conheceram, sobre o bar – sim, tinha sido em um bar, “logo ali, lembra?” – sobre a própria irmã e sobre o cunhado que jogava “muita bola”. O outro concordava com a cabeça, mas ainda olhava a foto. Irrompeu:

- Oh! Quanta vida num simples prédio! Oh! Quantos mistérios uma pequena comunidade de humanos unidos sei-lá-por-que encerra!, enquanto jogava os braços para cima, teatralmente.
- Esses caminhos da vida, né? Que coisa doida..., falou o visitante, na ânsia de fechar os olhos do conhecido, ou quem sabe ser ouvido pelo amigo que parecia sequer ter entrado com ele, tal era a sensação que ele nunca voltaria.

O conhecido olhava para as unhas dos dedos das mãos, que estavam esticadas na frente das vistas.

- Rios, afluentes de influência imprevisíveis, picadas engendradas por motivações do Desconhecido: os caminhos da vidas, disse, e ainda fazia volteios mais extravagantes com as mãos, seguindo com os olhos o curso errático das unhas da mão direita. Voltou então a segurar a foto grande, mas juntou também algumas outras pequenas sobre o vidro anti-reflexo dela e era como estivesse vendo a própria memória naqueles papéis. Existiam vários deles ali, de barba rala ou pele lisinha, cabelos raspados ou aparados. Mas sempre de gravata, sempre os mesmas pupilas se espalhando pelo branco dos olhos. No escritório, uma máquina fez um barulho abafado, tossindo uma tosse há muito guardada. O conhecido pegara uma caneta e rabiscava a mão. Parecia fazer círculos. Então falou baixinho, abaixando a cabeça, quase a colocando sob a mesa, como que procurando algo.

- Outra coisa que nunca me sai da cabeça: como a gente, por mais que odeie toda a mesquinhez que as artimanhas para ser alguém exigem, nunca, nunca, nunca, nunca, consegue tirar da cabeça que eu tem que ser alguém? Me sinto...

O visitante esperou por bons dez segundos a resposta, mas ela não veio mesmo. De súbito, o conhecido virou o rosto e perguntou mansamente para o visitante se ele sabia como afinal ele se sentia.

- Ah, sei lá...Acho meio inevitável se revoltar com isso enquanto a gente tenta desesperadamente negar isso... quer dizer... a sua revolta é o seu esforço para ser alguém: alguém revoltado...
- Contamina cada ação minha. E a cada ação eu penso: isso é mediocre, seja puro puro puro puro.
- Você está preso." É fim, seu único amigo...", saca?

Eles riram. Talvez tivessem enfim algo para falar, algo que não estivesse apenas ali dentro.

- Mas o complicado é exatamente quando se pensa o que você pensa que a gente não tem razão. Dai é que vira um labirinto completo, completou o conhecido, imediatamente depois do fim das risadas. Ele não olhava para seu interlocutor."Porque você faz as artimanhas, se culpa por fazê-las, se culpa por não fazê-las certo - uma vez que você não acredita nelas -, se culpa por culpar os outros por fazer - e fica pensando se não é por pura inveja. Por fim, existe a culpa por não saber qual é afinal é o caminho e se sente, claro, culpado por ficar no meio dele.
- Nossa, isso é verdade. Só dessa tenho uns doze quilotons aqui nas costas.
- É...o maior milagre é que com tudo isso a gente ainda consiga andar meio equilibrado, nojentamente equilibrado - criticando qualquer um dos lados quando isso nos faz sentir melhor, fazendo o jogo quando bate o desespero e desdenhando dele quando não conseguimos nos adaptar a ele. O conhecido ainda estava com a cabeça abaixada, e agora dava tapinhas nas laterais da mesa. O visitante achava aquilo muito estranho e falou alto algo que o fizesse olhar para ele.

- Cara, essas são ideias paralelas. O mais louco, eu acho, é só conseguir exercer absolutamente esse papelzinho de revoltado sem rumo quando estamos absolutamente sozinhos. A gente só consegue falar disso quando estamos, não sei...aqui, saca? A gente conhece a porra do mundo via cartão postal... Quer dizer, você viaja, conhece in loco os lugares, mas, no fim das contas, seu comprometimento com aquilo é quase nulo...
-Hm...nisso você tem razão, disse o conhecido, levantando-se. "Quer ver, dá uma olhada nisso aqui", e abriu uma gaveta e tirou um livrinho novo em folha, sem indicação alguma na capa preta - ilustração, nome da editora ou autor. Era uma história em quadrinhos de traços infantis, algo parecido com uma ficção científica.De um homezinho de formas redondas, com neons percorrendo um uniforme feito de algo metálico saía um balão grande que ocupava metade da página, com diversas palavras riscadas a caneta. No final, o resultado que se lia era:"Eu quero pular de para-quedas(...) mas, veja bem, tenho medo de montanha russa (...) No final das contas eu fico dizendo a todo mundo (...) Vou pular de para-quedas... vou... vou... (...) mas, afinal, eu não pulo (...) meu lugar é entre o para-quedas e a montanha russa".
- Hm....seu esse gibi aí?
- Não. É a história de um desbravador de planetas. Ou era quando eu li. Faz um tempo, já.
- Bonito. Quem desenhou?
-Não sei. Quem sabe alguém da maldita classe-média intelectualizada? Esses caras tão por aí, desenhando, pintando, escrevendo, fazendo o caralho. Esses caras sabem o que fazem!
- É..., disse o visitante, ainda que não soubesse com absoluta clareza o que significasse ser alguém da classe-média intelectualizada e desconfiasse que, por tudo o que o conhecido havia dito até então, ele também não entendera muito o que dissera. Dos corredores até então silensiosos, um pequeno terremoto de passos punha-se em funcionamento. Ainda sim, não ouviam nenhuma voz. Eram apenas pessoas andando pesada e lentamente. De súbito, surgiram três gritos idênticos dados pelos responsáveis pelos passos, um som único parecido com uma claque:

- Tem que ter uma causa pra minha impotência! Tem que ter uma causa pra minha impotência! Tem que ter uma causa pra minha impotência!

Depois, nada. Nem vozes nem passos. Conhecido e visitante se mantiveram em silêncio. Olharam um para o outro assustados.

- Péssima frase, soltou o conhecido.
- É, eu ia fazer uma piada sobre isso, mas achei que não fosse muito oportuno...
-A gente sabe ser cordial quando quer, né?