Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Outra pequena vergonha

Eu estive mal. Fui depravado e duvidoso. Ninguém me confiava seus segredos. Disputavam comigo sua paz e me imaginavam um calculista infiltrado em suas vidas. Eu fui o culpado por estar ali e fazer dos outros degrau e capacho. Nasci e virei a praga. Estive muito mal. Seguidos anos, carreguei esse mundo nas costas e o levei para o caminho errado. Perdi um tempo que nunca calculei ter. Senti do espelho a descrença na minha mais sagrada cicatriz. Até eu mesmo refletido nunca mais fui um bom companheiro. Cadê minha importância? Os votos que recebi vi serem rasgados à revelia das leis, contratos, papéis. Inimigos se esqueceram de me trair. Nunca mais me foram infames, vis, brutais. Tentei com eles uma briga, e o único que consegui foi fracassar do lado de fora da sala onde tudo, absolutamente tudo, acontecia sem mim. E pra mim o maior pecado foi que as portas se fecharam numa madrugada comum, escura, sem lua, postes de luz ou insetos, só o brilho vermelho e constante das horas tranqüilas pulando no rádio-relógio. É, e as horas pularam tanto que nem janelas, buracos de chumbo e pólvora, tocas de rato e cobra eu alcancei a tempo. Fiquei para fora e estive mal por isso: me rejeitaram porque era praga, era dúbio, quadrado como uma bola, perigoso, imbecil. Merecedor.

Eu comi suas mulheres, pisquei meus olhos para seus filhos ainda crianças e, quando cresceram, eu os lembrei e lhes pedi pagamento. Fiz os empréstimos que os deixaram pobres, exigi dos credores os juros mais absurdos que me foram permitidos exigir, derrubei então as casas dos inadimplentes e guardei apenas os lençóis azuis e cor de rosa e calcinhas e cuecas de algodão sujas de secreções infantis. Eu as cheirava pensando em dinheiro. E fazia do terreno vazio futuras memórias da minha vida, jogando para o ferro-velho as velhas memórias e resgatando assim pequenas quantias por cada quilo de lembranças familiares, com as quais eu compraria futilidades e me presentearia com notícias em inglês e mobília clássica, de mogno e ouro. Com o que me deram –ou lhes tomei– fiquei tão rico que perdi as contas do desespero, me tornando um desconhecido para as preocupações desse mundo e de qualquer outro. Eu era grande demais para isso. Quando agiotava sua paz não aceitava abstrações como recompensa. Tinha um grande poder, indiscutível influência. Meu objetivo era ser justo: usou, tem que pagar. Me pagar. E eu estava ali sempre, encostado em suas vidas, telefonando, mandando cartas e bilhetes. Treinava a onipresença enquanto eles dormiam e se fosse surpreendido por alguém no exercício da vigília, da investigação, eu os chantageava, com ódio e razão. Meu nome criou um brasão respeitado e eterno dentro e fora desse reino de pessoas comuns e suas crianças de mesmo rumo. Se meus passos emitiam um som de cavalaria, minhas salas eram trincheiras cercadas de minas e pó químico. Meus súditos, os fiéis, estavam a minha volta para servirem de escudo e seus corpos me protegiam do mal e da vileza ao meu redor. Meu alimento era por eles provado para garantir que o veneno não me fosse a causa da morte. Antes que esse mundo ruísse sem previsão, era todo ele certo para mim, para que eu o dominasse e fizesse dele o curral e cortiço que depois descobri ser minha própria cabeça. Antes, era assim. Agora, fui despejado e nem sei como vou sobreviver aqui fora.

As pessoas têm seus desejos e estão correndo atrás deles à minha revelia. Eu, que dependia delas para ignorá-las, agora as desejo de volta, e as quero amáveis, delicadas, gentis. Prometê-las-ei respeito à suas crianças e reprimirei minhas lascívias intenções quando puder tocá-las e sentir seus odores artificiais de higiene. Eu serei bom porque estive mal, é certo, mas serei então o cristão perdoado, porque sei que eles se importam com isso. E doarei o pouco que ainda tenho à caridade, serei benemerente e envelhecerei no mecenato. Sozinho, organizarei empresas do bem, ecológicas e sem fins lucrativos, com os selos governamentais que eu criei quando estive sozinho no trono de mogno e ouro encomendados na mata selvagem de celulose que emperra os departamentos e faz do povo um barro gentil. Apesar de paria, eu sei os caminhos porque os criei quando fui deus, quando fui construtor e incorporador de cimento e cal e engenheiro de edificações. Vou me redimir sendo o bom homem que todos imaginam os receberá em seu leito de morte, com os olhos embargados e emanando sangue, suor e as naturais lágrimas do redentor. Eu pedirei seu perdão para poder perdoá-los. Pois, estive mal, mas ainda estou aqui.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Depois e antes

Note as feridas características da doença.

Revolucionário, tratamento pode dar certo.