Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, maio 08, 2006

Uma cachorrinha e sua dona sozinhas em um domingo de sol

*Excerto auto-biográfico

A cachorrinha aproxima-se, lenta, andando no corredor curto de ardósia. Ela é pequena, tem passos cambaleantes, equilibrando um corpo roliço e negro sobre patas que parecem usar luvas de pêlo dourado, cujas garras fazem barulho solitário ao tocar a pedra. No chão do corredor do apartamento, estirada de bruços, com os braços abertos, está sua dona. A velha geme com dificuldade, longos suspiros sob roupas confortáveis de algodão. As persianas dos quartos filtram luz em faixas finas.


Cheira suas costelas e olha a sala vazia à frente. Em todo lugar, a marca da dedicação e do detalhe, cenário em cores frias. Dirige-se aos cabelos pintados de loiro, muito ralos, lambe-os, gruda poucos fios à pele arroxeada. Não há nada de diferente com a dona: ela está sozinha, deitada no corredor de seu apartamento. A cachorrinha anda até a cozinha, examina um canto do lugar, encosta em uma bolinha colorida, vira-se. Ouve o gemido da dona e toma um pouco de água. Vai até ela de novo, lambe um pouco do suor de seu pescoço e deita-se, encostando-se à carne ofegante. Ela quer dizer algo, a cachorrinha é toda ouvidos, mas apenas sussuros sem fôlego escorrem em solavancos.

Ninguém em lugar nenhum. A velha arfa ainda mais, bolhas de saliva formam-se em seus lábios. A cachorrinha olha para o corpo no chão e depois procura alguém pelos quartos, se estranha em espelhos, observa as camas altas e passa por baixo delas, procura algo no ar, faz uma rápida corrida até o banheiro, debruça-se sobre a privada, entra no box, procura. Encontra a enorme árvore vergando sob o vento, o movimento vegetal dezenas de metros abaixo. Ninguém em lugar nenhum, todos os cômodos esperando.

Aproxima-se, lenta, e deita-se de frente, no mesmo nível da dona. A cachorrinha, que nunca fora capaz de latir, começa a uivar, franzina, olhando as pálpebras para sempre pintadas de negro da velha, dando voz fina e irritante a seu apartamento impecavelmente morto, ao exílio sem história que ela condenou-se ao construir uma fortaleza de coisas - mobília recém tardia de memórias encenadas e encenadas e encenadas contra o esquecimento. Depois, deitado, estático, o animal urina.