Contos, crônicas e novelas.

domingo, novembro 06, 2005

Diálogo de Merryl


Essas filhas de pescadores deviam adorar. “Papai, hoje você
trouxe aquela
baleiazinha morta para eu brincar? diz que sim, diz que sim,
vai”. E toda a família
do pescador cheira a ranço de merda e de sangue e de
gordura de baleia; e os
vizinhos adoram, porque a morte da baleia lhes enche
de alegria. É como no
natal. Alegria.
Daí a filhinha chama a Merryl,
amiguinha da frente. As duas
ficam olhando a baleiazinha morta no quintal
com as gramas queimadas pela neve e
ficam espetando o animal com uns
gravetos escolhidos no dia anterior da chegada
do pai e dizendo: nade,
baleiazinha, nade. E as baleias não têm pálpebras, e
aquele olho aberto fica
olhando a Merryl; encarando o corpinho apetitoso da
Merryl.
É,
a Merryl é uma menina bem loirinha, estrábica do olho esquerdo,
com os
cabelos brancos, e ela, quando a amiguinha diz que vai pegar um pouco de
água pra baleiazinha nadar, enfia os dedos no animal e se meleca toda, mas
pega
o olho e guarda no bolso, porquê acha que ele é "bonito como o da
mamãe"...ritual: toda noite ela olha para o olho e coloca a mão "lá" e pensa
na
mamãe, que não tem o olho torto.
A única pessoa que sabe do pequeno
segredo da Merryl é o papai. Por isso, o papai obriga a pequena merryl a ficar
falando com aquela coisa gosmenta e erétil que ele chama de "arpão", enquanto o
tal arpão se encosta no rosto dela. Esse era o futuro da pequena merryl:
uma prostituta em miniatura que carrega um glóbulo de baleia-bebê morta tinha
mesmo que chupar um pintão fantasiado simbolicamente de arma pré-civilização.
O mais engraçado é que, em seus devaneios, a pequena Merryl acaba sempre
indo parar num navio mercante com bandeira panamenha, já mais velha, e mais
caída, cansada, essas coisas, e se encosta ao lado das caldeiras do navio e fica
olhando a lenha queimar e espera chegar em algum lugar que o papai disse que
existia depois da puta-que-pariu.
Naturalmente - como sempre foi com a
pequena Boca De Lixa, esse é o apelido que os amigos do pai dela deram para ela
quando aos 13 anos ela se encantou com os olhos - sempre eles - de um cafetão
norueguês e foi parar no prostíbulo mais infecto da cidade portuária onde
moravam - o depois do puta-que-pariu foi um bukake alcoolizado depois do porre
das 7 da noite, em que um marinheiro mais afoito, que cortara o dedo na cozinha,
resolveu que um pouco de sangue para dar cor no esperma não seria um problema. E
então a menininha de 16 anos estava de repente coberta de porra e de sangue e
lembrou do tempo em que a menina da frente da casa dela - qual o nome mesmo,
ahn? - trazia um bicho esverdeado e de fendas brancas na pele absolutamente lisa
e elas ficavam adorando aquele bicho e achando que ele sorrira para elas
enquanto tinham a sensação contraditória de que todo mal do mundo fora colocado
nas costas de um grupo insône e puro de seres marítimos minúsculos. Claro, por
absoluta imbecilidade humana, já que esses animais gigantes e
horríveis, que continuavam a dar testadas nas embarcações dos papais, eram
protegidos.
É, por que a Pequena Dentes de Aço - esse era o apelido que o
menino de cara manchada tinha dado a ela no último ano da escolinha amarela -
tinha nojo das coisas pequenas: como as baratas bebês que ela via nascer no meio
das tábuas do alpendre, todas brancas, se escondendo atrás dessa pureza, não
mostrando que tramavam algo que nenhum olho enxergava, imperceptíveis e
vingativas; ressentidas da própria
mediocridade. Ela estava no meio de
baleias e micróbios, segurando um olho
putrefato e lambendo o arpão de papai
quando, num sono profundo – sempre ele –,
se lembrou que sua bucetinha havia
sido invadida por um calor incomum quando
aquela lâmina afiada começou a
roçar no chão de asfalto: "isso é a tal da
porra". E era coisa cortante, que
deitava a perna e lambia suas coxas por dentro
deixando uma linha fina
vermelha nelas - não sabia se era sangue dela ou da
coisa - e que cheirava a
bucetinha lisa como suas bochechas, se ajeitava em cima
dela e só daí
começava a escorrer para dentro. Parecia que aquilo era o
contrário do que
devia ser - voltando de onde devia entrar - e quando entrava
era como se
tivessem jogado ela num banho frio, mas um banho frio só lá dentro,

dentro do lugar onde a mamãe falava para limpar bem, "se não vai crescer
bolor e seu neném vai nascer com uma peruca de fungo, pingando coisa ruim,
pingando baleias e micróbios". Baleias minúsculas, baleias do tamanho de
baratas
e do plâncton que - agora - poderiam encará-las de frente, como um
chaveiro das
baleias bebê que ela ainda via nadar em seus sonhos, num mar
manchado de verde
escuro, de onde essas baleias estavam sempre saindo, com
seus olhos enegrecidos
e podres guardados no bolso de gente viva.
Sabe,
a menina está lá encostada nos pelos escorrendo suor do papai, mas ela olha para
ele e vê esse enorme monte de metal retorcido boiando no vazio azul-cinza,
enegrecendo rumo ao norte, ele parece estar parado ou andando em uma
velocidade
exatamente igual à dela, que flutua, porque o monte de metal
parece uma miragem
criada por ela mesma, e tem infinitas camadas de metal,
uma sobre a outra,
gigantesca. O Arpão, ela pensa...
Ao mesmo tempo, um
estranho ser começa a se movimentar em seu ventre e parece forçar um milagre, um
nascimento, saindo de sua buceta que vai se abrindo sem parar, ignorando limites
físicos, parecendo borracha, e quando esse estranho começa a aparecer para o
mundo é como um navio mercante sujo de lodo e algas, soltando
fumaça branca
e sujando o mar de óleo, sujando o seu ventre de sangue. Mas ela
diz:
E
nenhuma e nenhuma e nenhuma baleia estrábica, bruta e gosmenta vai tocar em
você, meu filhote, minha vida! Vou fazer você singrar cada partícula desse
mar
gelado até que fique livre de todas as baleias do mundo. Sejam precisos
mil
Arpões, sejam precisos mil papais, eu vou te proteger, meu filhote.
Ela solta o navio-bebê em brumas que fazem movimentos rápidos, como que
puxadas por uma maré invisível, e ele anda devagar, tal passarinho saindo do
ninho, um potro de ferro esculpido e focinhos em forma de ancora e não que o
pequeno vai indo, magneticamente, afetivamente, estupidamente para o Arpão, o
monte ignóbil de aço desconjuntado que a Tudo vê. E Merryl diz à sua amiguinha
da casa da
frente, meio olhando para ela, meio olhando para a casa, muito
olhando para o
nada: "Posso pegar o olho dela?".