Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, junho 04, 2007

Festa

Havia baldes de comida sobre a mesa, havia quartos inteiros forrados de garrafas e uísque falsificado em galões, e as toalhas sobre a mesa tinham sido lavadas na tarde anterior e o chão da casa da chácara fora limpo com cândida para que as manchas de terra fossem ao menos um pouco embora, dando àqueles que olhavam para baixo nos momentos de tédio a sensação de estarem fazendo algo errado ao pisarem o que com alguma dificuldade havia sido limpo, pequena culpa esquecida logo que o pessoal, uns dez ou quinze que nem sequer foram à igreja, que já chegaram ali de manhã para beber e esperar os noivos, o casal recém-celebrado a chegar no final da tarde no chevette tunado do Sandro, horas depois desse pessoal já ter desbravado não apenas toda a casa da propriedade como, de forma ainda mais corajosa, as trilhas e curtas picadas nos agrupados de árvores das cercanias, lá deixando montes de fezes e gritos de desafio à mata imóvel, gente que no começo da noite já estava bêbada, doentiamente alcolizada, fora de si a encarnar outras pessoas, personagens que surgiam logo que a quinta garrafa de cerveja desvelava os panos dos olhos, bolas viradas e pulsantes nuas perante os monstros teatrais que então tomavam conta desses dez ou quinze, todos homens, grupo que, quando os outros casais ou senhoras ou crianças entediavam-se com a falta de propósito súbita que por vezes, no meio das conversas grupais, lhes abatia, abraçavam-se e punham-se a pular e a gritar, em meio a um canto ou choro compulsivo, e eram uma malha de uns dez ou quinze homens ajuntados pelos braços sobre os ombros, que chegavam nos indivíduos entediados e cantavam "Vaaaai, vaaaai, quero ver, vaaaai, vamo bebê, vamo bebê", e derrubavam mais bebida, entornavam garrafas _cachaça e caipirinha quente e gim e cerveja_ sobre o chão limpo de cândida e faziam com que a ligeira culpa de macular a específica perfeição da festa de casamento do Toni com a Dalva fosse pouco, muito pouco; com que os entediados _sentados em um extenso banco coletivo, de madeira e alças de metal, falando baixo e dando espaçadas risadas, com crianças nos colos_ tivessem aquele sentimento inicial transformado: eram os benfeitores, em contraposição aos homens que já haviam empanturrado-se de veneno, matéria vomitada nos fundos da casa, que não tinham valores que não aquele que dizia: grite a todos que nada os impede de, em um domingo em que não há trabalho, beber, de maneira admissível e por todos os lados justa, o máximo que uma boca for capaz de engolir e, depois, veja o mundo como um globo borrado em que de vez em quando algo se move: esqueça-se, nem que seja por uma dezena de horas, que ainda está vivo.

O grupo, que tinha o Sérgio e o Minhoca e o Adalba além de ao menos outros quatro que era amigos dos irmãos Corrêa, o Gringo e o Edmilton, era puxado pelo Paulão, filho de migrantes, primeiro albino lembrado nas últimas quatro gerações da família, irmão do Toni, dono de uma loja de reforma de tvs que havia bancado parte da festa e que gritava, a cada vez que um carro chegava, lançando poeira para o alto e estacionando perto da grade de ferro entrelaçado nas laterais da chácara, alugada e isolada em uma área da periferia onde havia cada vez menos gente e mais longas chaminés saindo do chão, construções vistas na estrada de terra como árvores queimando em meio à uma nuvem de fumaça: "Vamo entrano, gente, hoje vamo quebrá tudo porque quem está pagano sou eu." E depois disso o Paulo, com o rosto da cor da terra que impregnava seu chinelo de dedo, o cabelo fantasmagórico e encarapitado um pouco também de doce _resultado do banho de pinga que recebera depois de, sob o som sertanejo que tocava desde a manhã, ter tirado a roupa, ante os olhares apenas dos dez ou quinze, e rebolado com seu pênis a balouçar entre as coxas_, ele, de camiseta regata com os dizeres "É tudo nosso" e bermuda azul de surf, dizia: "Vem, vem cá minha menina" para as mulheres, que, quando acompanhadas de seus homens, eram abraçadas e apalpadas sobre as roupas, no que os maridos não sabiam o que fazer e davam uma risada ou no máximo, quando achavam que isso ajudaria a acabar de maneira mais rápida com aquele ritual de boas-vindas, afirmavam, em voz grossa e com sorrisos nos lábios, frases de efeito moral e machista, como se quisessem de fato proteger suas fêmeas, que, inexoravelmente, até que Paulão pudesse agarrar e abraçar os próprios machos como se deles também fosse o dono, continuavam sendo apalpadas e sutilmente xingadas, enquanto os outros bêbados, às vezes desfalcados dos que estavam no banheiros ou dormindo no único quarto da casa da chácara, sobre um colchonete infantil, riam, dançavam, cuspiam uns nos outros e davam guarida e aprovação a essa tentativa malfadada de inclusão _e que tinha como objetivo fingir que incluía para, ao violentamente excluir os que chegavam, em seus monzas e em suas belinas, garantir junto aos estranhos que o que eles provavam naquelas poucas horas de descanço louco pertencia apenas à eles, e sua miséria e feíura não deveriam ser contestadas, sob o risco daqueles que o fizessem serem também cobertos pela graxa imoral que o mar de alcool bebido trazia à maré, e assim alcançar resultados talvez ainda piores do que os observados nos contumazes malucos.

Às sozinhas e às crianças, ele simplesmente dizia: "Ó, a comida tá lá dentro" e voltava-se para seu grupo, que já estava a abrir compulsivamente garrafas, espremer copos de plástico com estrépito, jogá-los para o alto, tirar as camisetas, girá-las durante o refrão soprado das caixas de som do tamanho de pessoas que vinham junto do aluguel do local, frases cantadas que eram repetidas em uníssono por todos mesmo quando faziam rodas com os cigarros acesos para inicialmente conversarem, mesmo quando disputavam rodadas de baralho a gritar palavras repetidas ou quando olhavam demoradamente uns aos outros afim de relembrar o júbilo quase sem limites que estavam a viver, conjunto de atos que levava até o momento em que era necessário sentar um pouco, deixar-se dominar pelo silêncio que pronunciava-se já na sétima ou oitava hora de bebedeira, e adormecer, nem que fosse por dez minutos, com as costas quase desgrudadas das cadeiras de metal, e sonhar _como aconteceu com ao menos um deles_ que, nas outras alas da festa (a ala das crianças, a ala dos adultos sóbrios, a ala dos velhos) nascia uma tensão crescente, como se em algum momento aquela farra, conhecida pelos amigos mais antigos do casal, resultasse em mais do que pés cortados por cacos de vidro e danos fisiológicos que durariam até ao menos quarta-feira, e não fosse possível fazer nada para estancar aquele desatamento de vontade que ocorria com os dez ou quinze; como se, por descuido, em algum momento, uma criança invadisse a lavanderia tomada por eles, e fosse impedida de voltar para chorar aos pais o que havia visto _pois, neste sonho, a criança também estava bêbada e jogava baralho e fumava.

Em mais de um momento, Minhoca e dois dos amigos dos irmãos Côrrea, os mais novos de todos, foram visto simulando atos sexuais ao mesmo tempo em que evocavam o nome de Dalva, com quem um deles _não era possível saber qual, talvez todos eles_ havia tido algum tipo de entrevero afetivo tempos atrás, e no momento em que fingiam estar penetrando uma suposta mulher de pé e agachada com suas nádegas inexistentes sendo forçadas contra a pélvis dos três ao mesmo tempo, gritavam o que sabiam ou acreditavam saber ser as preferências da mulher que havia, com um vestido alugado em cinco prestações e maquilagem emprestada de uma vizinha, se casado com o homem que amara desde que tinha 16 anos (e ele, 26) na geométrica igreja suja e vazia e jurado, chorando, lacrimejando e com ranho a escorrer pelo nariz, que havia de ficar ao lado dele mesmo que a pior das pragas terrenas caísse sobre a união ali celebrada, mesmo que cada um se transformasse em outra pessoa _velho, gordo, doente ou miserável__e quando Minhoca e os dois se cansaram, Paulo chegou gritando e dando-lhes tapas na cabeças, para depois continuar a rir e cochichar-lhes nos ouvidos quais eram, na opinião dele, as verdadeiras preferências da cunhada.

Em mais de uma situação, com um chapéu de coubói na cabeça, Adalba, um senhor que se tornara amigos dos outros nove ou quatorze unicamente por ser pequeno e perturbado, que ganhou fama no bar pois vestia roupas de adulto, dirigia carros e gerava filhos, mas cuja altura não chegava à de uma criança do nosso tempo, imberbe, os cantos dos olhos e a boca enrugada e os braços encurtados _não um anão, apenas um homem em medidas menores_, e que ainda assim cravava facas em homens completos durante episódios de violência e que certa vez roubou as chaves da uma velha camionete de um desafeto apenas para destruir parte de seu capô contra um muro de uma mulher divorciada, que ele sequer conhecia e a quem nunca dera nada pelo acidente, um pequeno homem que bebia mais do que quase todos os grandes homens conhecidos, um senhorzinho doente pelo alcool e que, em ao menos um certo momento da festa de casamento de um conhecido _esta festa_ vestiu um chapéu de caubói e sentou-se entre os mais velhos, que apenas estavam parados na varanda da casa da chácara, e, assim, de caubói, com um hálito ácido, passou a repetir tudo o que os outros diziam e cada gesto feito, a ponto de ter que ser enxotado dali pelo filho _no caso, já um homem_ de uma das senhoras, o que gerou uma visão de animosidade com o restante do grupo, logo aplacado pelo noivo, que uma vez tomara um porre com Adalba e, assim, tinha um grau mínimo de intimidade para explicar que as pessoas mais velhas _como era o próprio pequeno, ainda que isso não estivesse em questão_ não gostavam de ser copiadas e ter suas falas repetidas, no que ele concordou e se calou, restando ainda tempo para um tapa na barriga de Toni e o convite para beber da cerveja pela qual o noivo mesmo havia pago.

E em todos o tempo em que durou a festa, o grupo dos dez ou quinze esteve a sujar, gritar, derramar, lambuzar, correr, xingar, quebrar, jogar.

No final da noite, quando as velhas e as crianças já haviam ido embora e os homens e mulheres que restavam amargavam o silêncio da conversa exaurida e iluminada por lâmpadas piscantes, quando apenas os bêbados ainda estavam a festejar algo que já não era tão nítido como no começo do dia, e outros deles jaziam sem sentidos sobre a grama dos fundos ou no azulejo gélido da lavanderia, uma blazer prateada com buracos enferrujados parou na poeira, de faróis apagados, e despejou outros cinco homens, cada um carregando diferentes armas _pistolas, revólveres, beretas e escopetas_, rostos lavados cujos donos ninguém ali reconheceu, que mandaram, como se tivessem observado cada ato daquele dia, apenas os sóbrios entrarem na casa e que, quando enfim a porta de madeira foi fechada e isolou-se um grupo do outro, puseram-se a explodir cartuchos e a criar estampidos e gritos, sempre a falar em uma língua desconhecida e musical. Os que estavam dentro _entre eles, a noiva e o noivo_ apenas entreolharam-se. Quando saíram, havia manchas do sangue saído de corpos que tinham sido visivelmente arrastados, mas que já não estavam ali, assim como a blazer ou os possíveis assassinos _os dez ou quinze, pensou uma senhora que fora acordada pela chegados dos outros cinco, passaram de um ponto, e esse ponto os prendeu e os levou em um pequeno apocalipse paralelo que eles foram proibidos de testemunhar.