Contos, crônicas e novelas.

quarta-feira, julho 30, 2008

A invisível brisa (1ª Versão)

Os sapos são animais horríveis. Sempre me admirei daqueles que conseguem tocá-los. Aqueles globos oculares brotam do corpo como duas bolhas que brotaram de um caldo espesso fervente e, quando no auge de sua fuga centrífuga, desistiram simplesmente de arrefecer, permanecendo como dois campos arredondados de acrílico, condenados em metade àquela superfície. Seus olhos em si, não é fácil saber para onde olham, mas também não é necessário. Como todos os animais inescrutáveis capturados em nosso campo de visão, os sapos olham para nós, humanos, ou nem tão humanos assim, como julgo, ou, ainda, humanos de jeito nenhum, pois não poderíamos nomear-nos tendo de frente a óptica indescritível desses saltitantes monstrinhos. Não sei o porquê estou a pensar nesses animais, em como eles se alimentam, como procriam, respiram e vivem em seu corpo miúdo. No entanto, não quero mesmo encontrar nenhuma dessas informações. O que quero é saber o que pensam de mim os sapos.

Estamos eu e eles sozinhos em nossa ruidosa meditação. Os anfíbios a coaxar por aí; eu, não tão humano quanto gostaria, discuto comigo mesmo assuntos que encontro sem qualquer esforço. A madrugada está avançada, imagino, e um vão entre minha barraca e o chão duro de terra deixa vazar ao meus pés uma fria corrente de vento. Aos poucos sinto perder o sentido dos dedos, que vão ficando tão frios que enfim quase se repelem uns aos outros. Sem me levantar, procuro às cegas, com o braço esticado, uma meia ou um pano, algo para cobrir os pés. Quando já sinto a mão encostar na mesma meia que uso todos os dias e que quando cheguei à barraca, no ermo final da tarde de ontem, joguei em qualquer canto, sinto uma súbita vontade de desistir, de deixar meus dedos nus apodrecerem com o ventinho da madrugada. Acho até que me veio uma idéia interessante, mas não penso mais sobre isso e relaxo, deixando o braço onde estava. Encosto a cabeça e volto a pensar nos bichinhos.

O assunto me veio primeiro do barulho que eles produzem, depois do frio que eu sentia nos pés. Quando eu estiver quase concordando que os sapos não são assim tão asquerosos, talvez até lembrando de alguém me dizendo que eles são muito mais limpos do que os cachorros, ou do que nós, nômades semi-humanos, eu já estarei dormindo e em sonho encontrarei um sapo do tamanho de um elefante, com quem conversarei sobre alfaces tão grandes quanto paraquedas e pântanos tão fundos quanto nossos pensamentos. Se acontecesse, amanhã cedo, eu bem faria alguns comentários descritivos em meu caderno de viagem; seja como fôr, desconfio que não estarei mais assim tão interessado em nada disso. Terei superado o objeto para o qual dediquei tão descompromissada análise. Melhor dizendo: minha vontade poderá ser escrever uma carta para alguma ex-amante cujo endereço já não faço questão de saber qual é. E nessa carta eu estarei estranhamento inclinado ao pântano, aos olhos esbugalhados dela, à sua pele cheia de manchas verdes e aos saltos histéricos que ela dava na cama enquanto comia uma alface de 20 metros.

Devo ter adormecido e o sonho, se houve, não foi um sonho tão memorável.

Acordei e vi que um sapo, sim, um sapo, me encarava de um dos cantos da barraca. Por alguns milissegundos imaginei que ele fiscalizava os movimentos dos meus pés, já aquecidos depois de longa batalha contra a invisível brisa, mas logo tive certeza de que ele prestava uma atenção anfíbia à minha totalidade. Fiquei pasmo. Como teria ele entrado ali? E, pior, muito pior, não teria aquele sapo aventuroso se aproveitado da minha dormência para auscultar e invejar minha pele? O que pensou ao notar pelos, unhas, cartilagens... Aproveitei que o meu braço permanecera encostado à meia para usá-lo como cérebro de um ataque. Não tão estranhamente quanto possa parecer, procurei evitar movimentos bruscos, pois sabia que qualquer gesto largo o faria pular em direções imprevisíveis, entre as quais estavam as dimensões do meu corpo. Com a delicadeza que eu não teria usado para acariciar as tetas de uma dama, peguei a meia e projetei uma mira sem mover um fio de algodão. Eu planejava atingi-lo com a meia usando-a como uma rede, não queria machucá-lo assim, não apenas, digo, mas prendê-lo para ganhar um tempo durante o qual sairia em busca de um pedaço de madeira grande o bastante para ser usado como instrumento na morte de um animal de 30 centímetros preso sob minha meia suja de terra e sangue. Eu preparava o lançamento quando peguei metade de uma lembrança: um medo inexplicável dos sapos. Era, na verdade, uma revelação. E senti vergonha, porque estivera eu, um semi-humano, conversando com aquele animal a noite inteira! Confidenciei-lhe minhas impressões e dúvidas sobre seu estado biológico, tentei descobrir suas inclinações, a quem e a quê coaxava. Em vão, esperei dele, um tímido, algumas impressões sobre o meu estado. O que notei, ainda com a meia armada para o ataque, foi que a sua presença na barraca, mesmo que por mim ignorada até há pouco, fora essencial em direcionar meus pensamentos. E como não há língua comum entre nós, usáramos desses pensamentos aparentemente aleatórios para trocar uma idéia, bater um papo no limite de cada uma de nossas consciências: porém, um papo maior do que nossa compreensão. Ao menos maior do que a minha, é o que posso dizer. Larguei a meia e me sentei, flexionando por reflexo os joelhos. O sapo não se moveu, como eu imaginara; ele permaneceu no mesmo canto, fitando-me. Tentei enviar-lhe alguma mensagem, não posso me certificar de qual, porque qualquer uma. Até fechei os olhos e fiz uma força, como se empurrasse uma frase semi-humana, uma meia linguística, para cima do animal. Ele se mantinha silencioso. No que para mim era sua íntima e úmida sensação de ser sapo havia uma grandeza de espírito, uma força além de qualquer força conhecida pelo homem. Eu vi naquele animal uma verdade. A de que não há volta quando estamos sujeitos ao conhecimento de nós mesmos. Interlocutores sinceros, eu e o sapo ou qualquer outro ser que vive e morre, só seríamos quando estivéssemos alheios às distintas existências de cada um e, ao mesmo tempo, interessados nos mecanismos destas. Eu então o atingi com um chute e o vi morrer esmagado pela minha súbita violência, uma violência que eu tinha, mas que ele nunca faria questão de entender, animal asqueroso que era.

Uma vez fora da barraca, comi algumas frutas que havia guardado no dia anterior e me sentei para redigir um epitáfio: seus olhos eram como duas pequenas bolas de gude que em si encerravam universos.