Contos, crônicas e novelas.

terça-feira, maio 27, 2008

Após o Passeio


Algumas centenas de metros abaixo da linha dos meu olhos as luzes de um vilarejo eram acesas uma a uma. Equanto essa onda de eletricidade percorria o local de um extremo a outro, um casal namorava na arquibancada de uma arena de touradas em ruínas, aproveitando-se dos poucos minutos de escuridão entre o pôr-do-sol e o momento em que o poste contíguo à arena iluminasse de viés suas mãos intranquilas. Eu não podia vê-los de onde estava, mas sabia de sua presença porque não podia imaginar aquela construção circular, abandonada, sem imaginá-los a namorar nos acentos precários veiados de mato jovem, que nunca haviam acomodado um fã de touradas sequer. Eu apenas acreditava neles e na nova função da arena. A única que ela jamais teria. Enquanto o casal contava regressivamente pela chegada da luz artificial, eu ainda podia ver a declinante luz do sol fugindo por detrás das montanhas. Não me considerava com sorte, no entanto. Pelo contrário, naquele momento eu desejava andar pelas ruas do vilarejo e acompanhar de perto o exato segundo em que os postes iluminassem as pedras, as paredes, os becos, as janelas, as pessoas e os cães. Queria também presenciar o último e iluminado beijo dos namorados, até sorrir para eles no momento em que estivessem batendo as roupas para tirar a poeira e observando os arredores a procura de bisbilhoteiros. Eu lhes sorriria e seguiria pelo rumo da rede elétrica.

Estou longe de casa. Não moro em montanhas, tampouco no vilarejo lá embaixo. Sei que estou distante é de sentir saudades de casa, mas as muretas de pedras empilhadas eu escalo ainda como se pulasse os muros da minha cidade natal e o cheiro dessa grama é aquele que eu sentia nas longas tardes que me sujava de terra. Logo após o sol se pôr completamente, não sinto saudades e acaba a tarde de setembro, porém, minha memória de pronto se revira, repassando os dias em que o sol nunca acabava, quando era jovem, em outro lugar, e sempre estava disposto e distraído. Contorno os campos de milho e escalo as muretas de pedras empilhadas. Por superfícies escorregadias, vou em direção à base do morro, onde estou acampado. Não há luz suficiente, não há confiança para ter pressa. Sinto o solo com os pés para não pisar em falso, e mesmo sobre a terra plana cuido demais para não cair. Dou voltas, retorno por caminhos que já trilhei, evitando sombras cujo conteúdo desconheço. É tudo milho, grama, terra e pedras, também arbustos esparsos, quando há clareiras, mas o cenário certamente se alterou agora que meus olhos o ignoram. Como os namorados, imagino abismos no que não vejo. A luz elétrica, no entanto, não me deve iluminar, não há postes aqui. Equilibrado, dou meia volta apenas para fitar o céu que há pouco vi vermelho, diria até escarlate. Agora está azul, quase negro, não vejo nuvens, tampouco estrelas. É como se elas tivessem fugido com o sol. Estranho, penso e prossigo, novamente em direção à luz cambiante da fogueira que prudentemente acendi antes de resolver pelo passeio.

As minhas coisas permanecem como as deixei, próximas a um arbusto de folhas longas e delicadas, solitário como tudo parece ser ao abrigo de uma fogueira. Me junto a ele; e as observo. Tento recuperar o fôlego, pois percebo que, mais uma vez, a caminhada tomou uma parte do já escasso ar que mantenho de reserva nos pulmões. O fumo e o ar certamente mais rarefeito do que aquele a que estou acostumado têm me feito refém de um andar vagaroso, como que em câmera lenta, a partir do qual me movo por entre os milharais quando é dia. Pela noite, embora seja obrigado a ignorar a pressa, ainda assim me canso com facilidade. A atual natureza do meu corpo, incerta, cambaleante, é definitiva quando me ponho a pensar na suposta perfeição do cenário que encontrei após dias de viagem. Os morros cobertos de verde, essa beleza gritante, detalhes vermelhos e marrons e azuis sobrepostos no cenário que meus olhos julgam unidimensional, como se houvesse além da minha envergadura visual uma imensa moldura de madeira, retangular e folheada a ouro, pregada ante o mundo. Estou, pois, diante de um retrato exato daquilo que imaginava serem as montanhas, o lugar belo onde jazem enternamente as montanhas, mas não raro me preocupo mais com os intrincados mecanismos do meu pulmão, rugoso e molenga, remotamente protegido por costelas feitas de um osso amarelado, comprimidas entre paredes de tecidos variáveis, fedorentos, pegajosos e abjetos.

Sinto-me um tanto entediado. À noite, com as horas rodando na velocidade das hélices de um moinho de vento, os breves ruídos arredores espaçando-se entre cada vez mais longos períodos de silêncio exterior - ainda que de dentro dos meus ouvidos eu decodifice um outro ruído, contínuo, parecido com o canto das cigarras, mas que desde tempos já esquecidos classifico como o desgraçado som das células do meu corpo trabalhando em ritmo rotineiro -, eu me entedio à morte. É quando, usualmente, faço uso da luz fraca e amarelada de uma lanterna para escrever algumas frases em meu caderno: "a essência do que sou é o nada. Um clichê incompleto, esvaziado antes de tornar-se insignificante. Algumas das minhas coisas eu não trago comigo, outras eu nunca tive. São as que tomo emprestado e mantenho guardadas, sem que possa fazer delas algo de fato meu. Não vago a esmo, apenas não vago. Poderia fazê-lo com direção acertada, mas, estático, estou na espera de ganhar sentido. Antes de todo o resto, ter um sentido. Até que perca a posse do que não sou, aquilo que me rodeia, as tralhas roubadas do mundo e dos outros, aguardo por esse sentido que a tudo ganha e explica, sem explicar afinal por que o tempo de espera foi curto demais, desprezado demais. Essa explicação compete a mim, antes de todo o resto, porém, é quando estou ocupado demais, catatônico demais, aguardando. Seria prudente revirar as coisas minhas, não as emprestadas, as minhas por direito, até descobrir como nelas eu estou em demasia. Assim, eu não precisaria confiá-las como bolsões de significado, estaria livre para não sê-las. E não tê-las seria estar distante de suas às vezes desesperadas buscas por sentido. Mas onde as deixei que não as vejo? A essência é não saber. Estou, portanto, alheio ao que é e ciente do que poderia ser, crendo, com fé, que assim alguma coisa há de acontecer quando tudo estiver como na hipótese ideal, aquela esperança na qual eu me agarro irrealizado, irrealizável e insubstancioso, como idéia de mim mesmo, não carne e osso, mas nada a não ser teoria". E assim como só um cobertor embalaria um bebê que se derrama ao sono, uso as palavras para me esquecer deitado ao relento.