Contos, crônicas e novelas.

sábado, agosto 26, 2006

Quatro fotos e meia

1.

Suportando o viaduto, um pilar. Nele, um homem bate a bola laranja, movendo-se em forma de sombra colorida. Pula e dá um grito grave antes da bola voltar às suas mãos, vencendo um pequeno desafio, um pequeno desafio de cada vez – ele há de chegar lá, sendo ‘lá’ um lugar que não pode ser observado, apenas inquirido.

O pilar é um espelho de concreto, ele vê-se jogando a bola para si mesmo, ouve a si mesmo gritar. Joga com alguém que está ali, alguém que ecoa do preenchimento.

2.

O retângulo está suspenso sobre ele, forma construída que se alonga e se afina para trás e acima do homem, bifurcando-se em duas tiras, duas asas que terminam entre edifícios, na curva de um globo moldado.

Resistindo à eletricidade e à estática, à luz, pisadas e água, às idas e voltas de sua própria matéria, às atmosferas, ele flutua – com pequenas marcas que se anulam, fechadas por outros acidentes, protegido da mutabilidade pelo estrondo formal.

Quem dirá um dia que ele não foi um viaduto? Nunca foi nada senão ele, nunca se tornará nada senão ele. Sua matéria não lançará esporos. É estéril, alheio à reprodução, não pode compartilhar sequer dessa maneira monstruosa de transformação, não existem vestígios de sua construção.

É um dado, um dado jogado.

Jogado por quem? Para o homem com a bola laranja, está como um deus: camuflado, mudo, estático e, ainda assim, uma possibilidade confiável de ouvir o próprio pensamento. Um som que não pertence a ele, algo – essa é a palavra, ‘algo’ – que faz as vezes de resposta, a cada grito e baque da bola.

Poucos elementos cotidianos se aproximam tanto da verdade quanto as lâminas voadoras e os pés arvóreos de um viaduto.

3.

É preciso ouvir. Cada baque e cada grito. O homem ridículo, de bermuda e camiseta regata, inacreditavelmente vulgar, continua usando a bola laranja, sozinho, pulando e dando gritos graves. À sua esquerda, um bar. Uma figura de papelão com os olhos furados está colocada no balcão, escorregando a medidas improváveis, caindo lentamente. Ninguém da administração ali, ninguém para tomar conta. Uma mulher e um homem sentados nas cadeiras postas na calçada observam o viaduto.

4.

Aos olhos dos dois, as asas parecem ainda mais longas, mais finas ao final, duas pontas, duas agulhas, perfurando e rasgando. Sobre elas, vindo do horizonte vermelho-claro, como que partes desprendendo-se das bordas quadráticas negras, como que vidas recém descobertas, um grupo de animais. Os quatro cães, enormes e magros, andando juntos, formam uma sombra só. A sombra de um monstro mitológico sob a luz de mercúrio, de um amontoado de corpos com mais cabeças do que patas, com mais sombra do que corpo. De uma degeneração.

5.

Parecem pequenos cavalos traiçoeiros, com carne entre os dentes e cascos trincados. Dentro de um deles, 15 fetos. Suas formas - relevos incipientes esculpidos na carne - são quase visíveis sob o couro fino, mal recoberto de pêlos.

Ouvem as batidas. Ouvem como o homem não as ouve. E sonham, com o saber de uma matilha, terem encontrado caça.