Contos, crônicas e novelas.

sábado, janeiro 19, 2008

Solidão

Estava um pouco cansado do quarto à meia luz protegido por um cortina vermelha muito grossa e escura com apenas uma cama e uma mesa repleta de produtos que eram em qualquer aspecto descartáveis e por isso achei que eu devia sair um pouco para conhecer o novo shopping cujas histórias de magnitude e modernidade haviam me sido relatadas logo na entrada sem que sobre elas ou sua origem e possível legado nenhuma sombra sequer fosse lançada. Perceba: nada. Peguei o que devia pegar e no táxi o taxista me contou uma parte da história de sua vida de maneira muito verdadeira, pude notar. Era sobre ele, seu genro, um churrasco, desavenças e violências mútuas. Segundo me disse, fora obrigado a colocar seu revólver já usado algumas vezes dentro da boca do homem grande e forte que casou com sua filha e que com ela tinha tido dois filhos saudáveis. “Eu tinha que fazer isso e não havia nenhuma possibilidade que não essa quando eu a realizei, percebe?”, me disse de maneira muito preguiçosa. Eu havia sim entendido e fui incapaz de impedir a reação de surpresa necessária, formulando da mesma maneira lentas frases que o enalteciam como um ser humano que mesmo já velho e deformado, claramente mais perto de lá do que a maioria de nós, ainda era capaz de usar armas de fogo com plena consciência deste poder. Se você não faz, eles montam em você e te fazem de palhaço como jamais te fizeram. Os jovens estão aí, eu dizia, e eles não entendem ninguém. Passam por cima. Como, o senhor pode imaginar, macacos, primatas, animais mais primitivos _o emulava. Sentia-se tão dono de si com minhas confirmações sobre seus atos que eram a princípio no mínimo tão pobres quanto os dos supostos jovens que logo, e também por essa percepção, passou a dar pequenas risadinhas e apertar fortes o volante, basculando moderadamente para a frente e para trás. “Sim, sim, sim... sim”, continuava. A cena aconteceu na laje da casa familiar e a poucos metros de qualquer mulher ou mãe. “Falei assim: eu não sou seu pai não, rapaz”, ele me contava sobre a “conversa” que tivera com o outro, “e enfiei o cano e ele não respondeu mesmo depois que tirei”, continuou, “e eu disse ‘não há nada que você possa fazer para impedir que eu vá em qualquer final de semana que quiser para ver o menino, o meu neto’”. Passaram alguns minutos em silêncio, os dois. O genro foi embora, para voltar outro dia e nunca mais comentar sobre o assunto. Eu, que acompanhava com interesse o que ele dizia, coloquei-me imediatamente em alerta com tamanha covardia, com a simplicidade e previsibilidade daquele genro perante um velho e sua velha arma, que ele insistia em dizer que já tinha sido o agente de ao menos um assassinato, e virei imediatamente a cabeça em sua direção, pronto para receber com glórias a sua frase que, pensei, teria como objetivo expor ao ridículo tal comportamento do parente que não escolhera. Mas ele não falou nada mais sobre sua família e sim se dirigiu um pouco mais à frente, calado, e passou a trocar as marchas e a olhar nos retrovisores com rapidez desnecessária em uma rua vazia, uma subida ladeada de edifícios deteriorados e ocupados por gente miserável ou senhoras solitárias ou jovens de bermuda que riam e gritavam juntos, todos eles negros, todos eles animais que moviam-se conforme o táxi rumava ao shopping. O taxista me disse: “Você já foi lá?”, no que eu respondi não e ele continuou, sem esperar qualquer justificativa: “Não tem nada. É só uma grande loja de departamentos.” Sua voz havia mudado e suas mãos apertavam cada vez mais forte o câmbio ou esfregavam o cabelo fino e ralo jogado para trás, muito sujo e grudento, e isso não parecia ter a ver com sua opinião sobre o shopping, pelo contrário, tive a impressão que ele falava sobre o shopping apenas para não falar dele, tive a impressão que ele havia tido, subitamente, um tremendo medo de falar sobre si mesmo, e não por um possível julgamento da minha parte, uma coisa que ele sequer havia vislumbrado direito, e sim porque o medo de falar de si se confundia com o temor de que tudo o que falaria de si seria verdade, uma verdade abominável e, para ele, ao menos então, também insuportável quanto mais fosse revelada e mais se tornasse assim uma verdade. Pois na frente de um frágil quadrado de cimento liso tão grande quanto centenas de cemitérios cimentados, cujo fim se confundia com o horizonte, ele parou e me disse que aquilo era o shopping e que eu poderia descer as escadas que encontraria logo à frente. Paguei-lhe, desci e achei a escada talvez depois de caminhar cinco ou dez minutos em linha reta sobre o grande cimentado e era uma escada escondida na qual por pouco não caí, já que não havia nenhuma indicação ou mesmo uma pessoa para ajudar os possíveis clientes a entrar. Eram também degraus de cimento, de fato uma escavação dentro e para dentro do cimento, o que me fez pensar quanto de cimento havia sido gasto naquela camada colossal e fabricada e colocada sob a terra. O shopping subterrâneo se mostrou logo após uma porta dupla de madeira, e vi que de fato era apenas uma grande loja de departamentos, o taxista não havia mentido, uma loja cujo tamanho não pude então imaginar, ao andar uma, duas horas, pelo corredor com talvez dez metros de altura, um contêiner repleto de araras de roupas e de senhoras (apenas mulheres) mexendo nos produtos. Não vi caixas ou gabinetes para experimentar as roupas, e sim as clientes que tiravam as calças e camisetas ou echarpes ou meias, as olhavam e as colocavam de volta no lugar e comentavam entre si a péssima qualidade do tecido. Como disse, eu andei durante um bom tempo, apreciava o ar fresco e condicionado que era soprado de artifícios arquitetônicos em forma de bocas de silicone nos cantos altos da loja, bocas esbranquiçadas e com talvez mais de um metro de largura, verdadeiras esculturas que abriam-se e fechavam-se simulando um sopro contínuo de ar gelado, o que me tranqüilizava e aumentava o meu prazer na caminhada, fazendo com que eu imaginasse, quando fechava os olhos, ser sugado por elas, uma deglutição disfarçada de beijo que me levaria para dentro das entranhas do edifício. Mas sabia que só haveria cimento, e portanto, abria os olhos e continuava a caminhar e a observar as mulheres, suas péssimas condições _aquilo era um centro de baixo consumo, de vendas para pessoas muito pobres ou mesmo sem qualquer posse. Não tinham bolsas, usavam shorts esburacados, andavam em grupos de cinco ou de dez, resmungando e puxando uma as outras para verem certa peça. Mas eu não me incomodava com aqueles monstros, simplesmente seguia, tirando prazer da minha superioridade, considerando-me especial e único, mesmo que ninguém me olhasse ou desse mostras de perceber que eu estava lá. Eu mesmo não olhava roupa nenhum, já que todas eram femininas e realmente mal feitas, e eu não tenho mulher, mãe ou filhas, não tenho fêmeas no meu restrito círculo de relações, e sim homens velhos e ricos e que sequer como suvenires da minha viagem aceitariam uma daquelas calcinhas endurecidas. Andava, portanto. Depois de três horas do meu aprazível passeio, no qual também rememorei o sonho da noite anterior, no qual a irmã de um grande amigo de infância morria e no qual eu acabava por consolar sexualmente a mãe que havia perdido sua filha, sob os olhares rigorosos de seu marido, quando por fim ficávamos sozinhos na casa, eu, a mãe e o pai de meu grande amigo, que no sonho era adulto como eu. Não havia nada para tirar daquele sonho, nunca há, sempre chego a essa conclusão, são apenas histórias que nos contam e que não podemos nos esquivar de ouvir, como os fragmentos de frases ouvidos pelas ruas ou como todas as histórias que ouvimos durante a vida _não é possível dizer não, não colecionarmos essas histórias, já que não há nada que não seja uma história, de forma que reconheceremos nossa morte quando mesmo os personagens ou cenários dessas histórias cessarem. Grandes idéias, então, enquanto singrava o shopping, confirmando tudo o que eu havia ouvido falar dele, sua majestade e singularidade. Por fim, com os músculos inferiores doendo e ardendo com todo aquele bater de pernas, encontrei uma espécie de praça com dois bancos de cimento e no centro uma camionete maior e mais grotesca do que qualquer outra que já tinha visto. Era muito alta e por isso uma escada de madeira, como a usada por pintores, estava encostada nela. Me aproximei e percebi que não conseguia tocar no final dos pneus raiados como os de um trator. Sua parte inferior, aquela que deveria ser escondida pelo solo, tinha canos da grossura de mangueiras de incêndio entrelaçados em ângulos retos ou de quarenta e cinco graus, conectados e tão erráticos quando um tecido vascular ou uma placa mãe orgânica. Senti uma atração imediata por aquele veículo e olhei para os lados afim de perguntar o que ele fazia ali e, quem sabe, até como ele havia chegado ali. Mas nenhum funcionário estava lá e os bancos estavam vazios e naquele momento as clientes não estavam paradas a olhar as araras e sim andando continuamente, quase correndo, dirigindo-se à direção da escada por onde eu tinha entrado e por isso continuei a percorrer o largo círculo imaginário que tracei à volta da camionete, procurando qualquer sinalização ou mensagem. Encontrei uma folha em branco dobrada e colocada no chão tal um calendário piramidal, na qual estava escrito que aquele era um presente para os visitantes do shopping, um presente de primeiro aniversário, e que quem quisesse ganha-lo deveria subir e permanecer nele. Não dizia quanto tempo era necessário ficar em sua cabine nem como seria decidido o ganhador. Mesmo assim, comecei a galgar os velhos e rangentes degraus, de fato respingados por tinta, e o fiz conforme a lataria prateada a ponto de refletir meu rosto claramente feliz se mostrava e reluzia. Encostava na máquina, alisava sua pele lisa, sentia-me excitado, tive uma ereção. Por fim cheguei à sua gigantesca maçaneta, parecida com o cunho de uma caravela, tentando achar uma maneira de abri-la e logo, sem que isso fosse minha responsabilidade, a porta se abriu quase a me derrubar e, de uma vez, pude entrar. Uma voz ao fundo me chamava. A altura era mais do que necessária para ficar em pé, os móveis tinham o aspecto de antigos e refinados, com bordados orientais em seus estofamentos etc. Caminhei e rapidamente pude ver um homem sentado no sofá preto de couro, em forma de U, que antecedia a cabine propriamente dita e ele me deu as boas vindas e me disse para sentar. “Que bom que chegou”, afirmou, “agora podemos resolver isso”. Ele me disse que realmente a camionete seria dada de presente para quem ficasse ali dentro, mas que isso não se relacionava em nada com alguma prova de resistência, jejum ou cárcere continuado. Ele me disse que, quando o segundo competidor entrasse (eu), o primeiro (ele) deveria desafia-lo para um duelo mortal. Havia muita tranqüilidade e conforto na sua voz, e portanto não me assustei, tomei como uma brincadeira. Ele me disse: “Essa camionete é a última das minhas esperanças”, no que eu retruquei que não era preciso tal dramaticidade, até porque eu era um homem rico e que, dependendo do quanto ele precisasse do veículo, se fosse um caso de vida ou de morte, se houvesse alguém doente ou mesmo algum tipo de loucura incurável e angustiante em sua família, e se para ele o dinheiro provindo da venda da camionete fosse assim necessário para buscar alguma cura ou interromper alguma infelicidade paralisante, eu simplesmente a daria para ele, expliquei, “posso viver sem isso”, disse, “e se subi até aqui foi por pura curiosidade filosófica, como se diz, perante tal obra humana”. Ele ouviu, mas não deu nenhum tipo de resposta. Em vez disso, passou a falar. “Você pode não notar, mas fui um homem bonito. Minha beleza chamava atenção e até dava a mim algum tipo de vantagem inicial, era o meu grande talento, o início de todas as minhas relações. Pois bem, de maneira um tanto medíocre, nunca neguei essa condição. Sempre usei, sem medo e limites, a atração e a bondade inatas que todas as pessoas tinham por mim como uma ferramenta injusta e desproporcional para conseguir o que queria. E fiz isso mesmo quando criança, com minha mãe e meu pai, e posso dizer que tinha consciência completa dessa minha auto-exploração, ao contrário daqueles que cediam seu carinho, tempo ou dinheiro às minhas vontades. Mas, até por isso, nunca tive grandes planos que não saciar essas minhas vontades imediatas, tais como comida, atenção e sexo. E sempre vi essa limitação de horizontes (também consciente, ainda que imovível, como as de um animal consciente), como um mal necessário, quase um fardo dessa felicidade da qual eu não poderia viver sem, que logo se tornou minha principal característica. Minha vida se resumia, no início de minha maturidade, com vinte e poucos anos, a ganhar algum dinheiro para comer bem e a estar com o maior número possível de mulheres ou mesmo de homens dispostos a me dar unicamente prazer, apenas prazer, nenhum tipo de discussão, quase nenhuma conversa, sem que fosse necessário conhecer quem eu não quisesse ou fazer algo que não fosse meu mais expresso desejo, tudo isso concedido por gente que, sem que eu não precisasse fazer nada, tornavam-se meus melhores amigos e amantes, que dariam _mesmo que por pouco tempo_ sua vida pelo mais imbecil pedido meu. Gosto de me imaginar naquele tempo não um ser humano, mas uma peça luminosa, por vezes penso em mim como apenas um foco de luz nunca visto, um meteorito radioativo, e as outras pessoas como mariposas. Era muito agradável. Então _e vou resumir isso da maneira mais curta que puder_, sofri um horrendo acidente que me desfigurou. Não queira saber detalhes de meu rosto fatiado pelo afiado painel do carro onde estava. Isso não importa e não há nada nesse relato que você não possa imaginar, ainda que pouco de seu resultado seja compreensível para qualquer que não eu, claro. Imediatamente, meus pais sacrificaram bens para restituir o filho que sempre os cegara com sua beleza incompreensível, pais que sempre arrancaram orgulho de se escravizarem por mim, que por mim também foram cegados. É justo que eles tenham empobrecido ainda mais, que tenham mesmo deixado de ter o que comer, que tenham se afastado de parentes e amigos que reprovavam tal abnegação, que por fim tenham precisado viver de favor em casas de quase desconhecidos para reconstruir, por meio de dezenas de cirurgias plásticas pagas a preços altíssimos, a melhor obra que nunca pensaram poder criar? Eu digo que sim. Consegui voltar às ruas, a ter feições de gente de novo. Um olho era mais baixo do que o outro, minha boca não se abre como antigamente e uma das orelhas tornou-se curva pra sempre, como a de um cachorro vadio. Mas os insuperáveis médicos, a quem tenho em alta conta até hoje, foram capazes de, me cortando ainda mais, preservarem minha identidade facial. Assim, tive de reformular minha vida e passei, não sem grandes dificuldades, a aceitar que a era de prazeres gratuitos tinha acabado”, me disse. “Era um homem comum, sem grandes habilidades ou formação, a quem pouquíssimas pessoas se dirigiam, até porque de minha época áurea ninguém havia sobrado. Solitário, confundido com qualquer um, precisava urgentemente arranjar um emprego, não para só ajudar meus pais, já velhos e necessitados, e sim para ter, eu mesmo, o que comer e vestir. Na busca pela antiga pessoa que era (nunca me livraria dessa memória, da necessidade de reviver, ainda que por instantes, a sensação solar que um dia havia me acompanhado), me tornei muito vaidoso, passava horas em academias baratas do centro da cidade onde morava tentando tornar meu dorso, minhas pernas e braços um reflexo dos olhos que um dia foram os meus. Os resultados mostraram-se apenas moderados. Não havia a carga genética certa para esse tipo de transformação, eu, que fora sempre apenas e só magro, esbelto. Mas o cuidado com a saúde e a estética ao menos facilitaram minha reentrada no ramo dos restaurantes, nos quais havia feito, durante a juventude, alguns bicos como garçom. Fui trabalhar em um hotel, mais especificamente no imenso deck do último andar de um hotel. Engravatado com um terno alugado mensalmente, servia coca-colas e fazia drinques muito doces, que não seriam apreciados por ninguém se o hotel onde me arranjei não fosse decadente e freqüentado pelo mesmo tipo de pessoa que eu, funcionários medianos de multinacionais ou secretárias em viagens ou famílias em férias. Como nunca havia aprendido a seduzir as pessoas com minhas palavras, como essas palavras foram para mim sempre desnecessárias, não posso dizer que era um grande profissional, já que não há nada mais valoroso em um garçom do que a simpatia, acompanhada de uma enorme carga de subserviência. Naturalmente, encarnar esse papel, que sempre fora o papel das pessoas que me cercavam e que lutavam pela minha atenção, era para mim intragável, e mesmo logicamente impraticável. Tentava, mas por fim, quando chegava o momento de me calar ou de simplesmente ir embora, ou de deixar o drinque sobre a mesa e me calar, ou de falar amenidades ou elogios sem que a recíproca fosse verdadeira, sem que meu pagamento não ultrapassasse os monossílabos e algumas moedas, não agüentava e soltava algumas verdades àqueles seres brutalizados, que nunca souberam ou vão saber o que é ser diferente. Ainda hoje não sei como não fui despedido, talvez ninguém mais se dispusesse a agüentar a monótona vida de estar a todo momento ao lado de uma piscina, sob um sol imperturbável, e nunca poder sequer molhar os pés. Talvez ninguém ligasse. Num dia, servi uma dessas famílias e me chamou a atenção o menino, o filho mais novo, uma criança que deveria ter então sete anos, um garoto que parecia ter justamente a mesma unicidade que um dia havia pertencido a mim. Sua beleza, a reconheci na hora, no mesmo infinitamente pequeno instante em que cruzamos olhares. E ele, também imediatamente, reconheceu a mim como um dos dele. Da mesma estirpe. Da mesma classe. Da mesma espécie. Quando terminei de colocar as frituras gordurosas sobre a mesa de seus rudes pais, me sentei no balcão e ele, muito altivo, dirigiu-se a mim. Conversamos, ele como um adulto e eu como a criança que um dia havia sido, durante ao menos uma hora. Falamos sobre ginástica olímpica (seu sonho era ser um campeão esportivo, o que me parecia francamente possível ao ver sua compleição irretocável), e a felicidade que me invadiu quase obliterou a imagem que não podia deixar de ver de meu rosto no espelho do bar. Durante toda a semana em que ele esteve lá, conversamos todos os dias, mesmo quando seus pais não estavam ali, mesmo à noite, o que logo gerou desconfianças do gordo pai e de meu chefe, o que não diminuiu nem por um segundo nosso gosto um pelo outro, nossa empatia imediata que, a cada dia, tornava-se mais profunda; quanto mais ele me contava sobre seus planos de se tornar ginasta, sobre os diferentes aparelhos cujos nomes lhe eram já familiares e sobre seus ídolos, todos aqueles eslavos de nomes atraentes, que pareciam prenunciar algum tipo de realização sobre-humana muito parecida com as que ele um dia seria capaz de fazer, mais nos sentíamos próximos. Você será famoso, eu lhe dizia, um lindo ginasta olímpico que todo o mundo aplaudirá de pé e será também lembrado muito tempo depois de morrer, rico e cercado de pessoas queridas e equilibradas como você é, mas logo depois dessas frases sentia-me fisicamente derrubado por tudo o que eu poderia fazer e nunca havia feito com minhas características especiais, sentia-me fustigado pela ação da desgraça em minha trajetória, como tudo havia se perdido quase sem que eu me desse conta; no menino eu via minha própria ruína, aparada apenas por uma esperança muito sincera de que, longe de mim, quando a época de veraneio terminasse e sua vida promissora se desenrolasse, ele de alguma maneira levaria a nossa espécie à frente, e, quem sabe, diria em alguma entrevista televisa sobre o garçom que tanto o incentivou, em conversas noturnas regadas a refrigerante roubado do bar, sentado em meu colo, com os cabelos alisados por mim como eu alisaria meus próprios cabelos de criança luminosa que fui. No último dia de sua estada, quando seus pais faziam compras ou brigavam no quarto, ele veio para se despedir e mergulhar um pouco. Era um verão raro, não chovera nos últimos trinta dias ou coisa assim, e naquela tarde também as ondas de calor tornavam o ar mais líquido e pegajoso e ele então simplesmente pulou na piscina e começou um dos seus grandes passeios por debaixo d’água, ele dizia que deveria treinar os pulmões se queria mesmo ser um grande atleta e por isso o deixei solitário como um peixe em seu aquário. O único funcionário ali era eu, mas não foi esse o motivo (o senso de dever) que me moveu a correr o máximo que pude quando, ao passar pela piscina, vi seu corpo perfeito sob a água, imóvel e sem bolhas; o menino estava se afogando ou havia se afogado, soube imediatamente, e corri e pulei diretamente na água, empapando meu terno, tornando-me ridículo em meu heroísmo (tive esse pensamento na hora). Tirei sua cabeça para fora, os lábios estavam azulados. Quando por fim coloquei-o sobre a pedra amarelada da borda, ele abriu bem os olhos e piscou um deles ao mesmo tempo em que me deu um sorriso de canto. Fiquei imensamente aliviado e virei o rosto para chamar alguém, gritei talvez por menos do que cinco segundos pelo outro garçom, e quando voltei a olhar para ele parecia desfalecido e distante. Algumas pessoas chegaram, me afastei, não havia médicos, sabiam apenas que a criança não mostrava pulsação nem reflexos nem respiração. O que veio a seguir foi uma das minhas mais dolorosas fases, um longo processo no qual tentei mostrar que não havia nada mais entre eu e o pequeno morto do que uma especial fraternidade e, que, portanto, mata-lo seria a última das minhas vontades; um processo que tornou ainda mais insuportável perder um dos meus, o único que havia encontrado em toda a minha vida, veja só. Por fim, defendido por um advogado público e exposto à degeneração moral pela imprensa, fui considerado inocente, não sem passar noites em claro a pensar o que afinal tinha significado aquele encontro e aquela ruptura, que a mim havia sido até então um de meus mais importantes encontros e rupturas, se não o mais significativo para um homem que nunca tinha alcançado qualquer sentimento que não o de orgulho e o de auto-comiseração. E nessas noites, ouvindo o arfar doentio de meu pai no quarto ao lado, pensei que a única solução para minha perturbação era declamar ininterruptamente, quase como um mantra, uma ordem superior ou uma filosofia secreta, a frase que me veio enquanto via televisão: nada nunca morre para sempre*.” O homem me disse isso da mesma maneira como a transcrevo, em um gole. E, como com o taxista, passamos alguns momento em um silêncio que parecia ser definitivo, mas cuja força eu interrompi ao perguntar como tudo aquilo se relacionava com o carro, no que ele respondeu: “Isso? É só pelo dinheiro”, enquanto segurava o que parecia ser uma faca.
*isso não foi pensado por mim