Contos, crônicas e novelas.

terça-feira, outubro 07, 2008

A Invisível Brisa (2ª Versão)

Os sapos são animais horríveis que não consigo tocar.

Seus globos oculares brotam do corpo como duas bolhas que brotaram de um caldo espesso fervente e, quando no auge de sua fuga centrífuga, desistiram simplesmente de arrefecer, permanecendo como dois campos arredondados de acrílico, condenados em uma metade àquela superfície e em outra ao subterrâno mais asqueroso. Seus olhos em si não é fácil saber para onde olham, mas também não é necessário. Como todos os animais inescrutáveis capturados em nosso campo de visão, os sapos olham para nós: humanos; ou nem tão humanos assim, como julgo, ou, ainda, humanos de jeito nenhum, pois não poderíamos nomear-nos tendo de frente a óptica indescritível desses saltitantes monstrinhos. Então que nome dariam para nossa inominável estrutura quando topassem com a ponta de um de nossos pés? Não há classificação que aguarde ao paradoxo de se estar de um jeito tão próximo e de outro tão distante. E se há, inexiste ao momento.

Não sei porque estou a pensar nesses animais, em como eles se alimentam, como procriam, respiram e vivem em seu corpo miúdo. Temo que fui tomado pela idéia de que esses bichos horríveis compartilham meu prato de comida fria, meus filhos, meu ar e meus pés. Que sou eu aqui, e eles aqui, onde estamos eu e eles sozinhos em nossa ruidosa meditação. Os anfíbios a coaxar, eu, não tão humano quanto gostaria, a discutir em voz íntima comigo mesmo.

A madrugada está avançada, imagino, e o que suspeito ser um vão entre minha barraca e o chão duro de terra deixa vazar ao meus pés uma fria corrente de vento. Aos poucos sinto perder o sentido dos dedos, que vão ficando tão frios que enfim quase se repelem uns aos outros. Sem me levantar, procuro às cegas, com o braço esticado, uma meia ou um pano, algo para cobrir os pés. Quando já sinto a mão encostar na mesma meia que uso todos os dias e que quando cheguei à barraca, no ermo final da tarde de ontem, joguei em qualquer canto, sinto uma súbita vontade de desistir, de deixar meus dedos nus enregelarem-se com o ventinho da madrugada. Acho até que me veio uma idéia interessante, mas não penso mais sobre isso e relaxo, deixando o braço onde estava. Encosto a cabeça e volto a pensar nos bichinhos. Retomo um até então remoto aroma de creolina. Azedo e verde (e porque verde?), com um definitivo buquê de desinfetante industrial. Lembro de um sapo inerte sobre o asfalto do meio-dia, com o sal a lhe queimar as costas. Aí aparecem algumas crianças em volta, de mim e dele, segurando gravetos com os quais começam a fazer uns cutucões no bicho moribundo, talvez já morto, enfim morrendo. Sem demora, dão-lhe um banho de creolina. Aparenta ser um espetáculo refrescante, mas é outra coisa. Não crueldade infantil, sadismo infantil. Trata-se de um procedimento. Indolor, incontestável. Nem bom, nem ruim. E o animal-ingrediente se dissolve, seu corpo assimila um matiz de asfalto e a creolina prevalece em presença, azeda e verde.

Começo a ter sono, perco velocidade, mas ainda sou capaz de fazer uma mea-culpa e rodeá-la com pensamentos que tão logo surgem já se perdem: ora, a mim os sapos aparecem sempre em situações de uma negatividade tão abtrata, e nunca saberei se criada por eles ou a eles reduzida (e isso não pode ser a mesma coisa). Eu devia ser uma criança iliterada quando os vi pela primeira vez, inominados, objetos cor-de-sabão cuja agilidade, ou simples movimentação, superava a capacidade dos meus olhos de se fixarem em algo significável. Uma sombra petrificante, mais ou menos idêntica àquela que seríamos frente a eles. E então ocorreu que os sapos se transformaram nos sapos e, entrementes, alheia à minha sincera vontade, a decisão de desgotá-los tomou conta. Para isso aí está a cena da creolina, a cena típica, retornando sempre, como uma etiqueta atada aos fortuitos encontros com o anfíbio. Penso nisso até perder o controle dos olhos; e já estou quase concordando que os sapos não são assim tão asquerosos, até lembrando de alguém -alguém bem idiota- me dizendo que eles são muito mais limpos do que os cachorros, ou do que nós, nômades semi-humanos. Mas aí eu talvez já esteja dormindo e sonhando e encontre um sapo do tamanho de um elefante, com quem converso sobre alfaces grandes como paraquedas e pântanos tão fundos quanto nossos pensamentos, sem bem que os pântanos, habitados por sapos-elefantes ou não, são rasos, e é justamente isso que faz deles lugares horríveis também (tão rasos, tão fundos). É possível, perfeitamente possível, que eu esteja sonhando com outra coisa (ou, mais possível ainda, que nada, nada mesmo, esteja acontecendo comigo nesse exato instante... pois de fato adormeci, e o sonho, se houve, na manhã seguinte foi imediatamente esquecido por obra de um encontro real que tive).

Quando acordei, vi que um sapo, sim, um sapo, me encarava de um dos cantos da barraca. Por alguns milissegundos imaginei que ele fiscalizava os movimentos dos meus pés, já aquecidos depois de longa -e, convenhamos, fácil- batalha contra a invisível brisa, mas logo tive certeza de que ele prestava uma atenção anfíbia à minha totalidade. Ao menos eu poderia e deveria até dizer que sim, que ele olhava para mim, e de uma forma tão intensa que parecia meditar no verso do que eu próprio meditava: na estranheza desse animal. Como teria ele entrado ali? E, divago, não teria aquele sapo aventuroso se aproveitado da minha dormência para auscultar e invejar minha pele? O que pensaria ao notar pelos, unhas, cartilagens... Aproveitei que o meu braço permanecera encostado à meia para usá-lo para um ataque. Sim, iria arremeçar alguns gramas de pano sobre o bicho. Não tão estranhamente quanto possa parecer, procurei evitar movimentos bruscos, pois sabia que qualquer gesto largo o faria pular em direções imprevisíveis, entre as quais estavam as dimensões do meu corpo. Com a delicadeza que eu não teria usado para acariciar as tetas de uma dama, peguei a meia e projetei uma mira quase sem mover um fio do algodão. Eu planejava atingi-lo com a meia usando-a como uma rede, não queria machucá-lo assim, não apenas, digo, mas prendê-lo para ganhar um tempo durante o qual sairia em busca de um pedaço de madeira grande o bastante para ser usado como instrumento na morte de um animal de 15 centímetros preso sob minha meia suja de terra e sangue. Eu preparava o lançamento quando fui interrompido por uma nota de rodapé algo aleijada: meu medo dos sapos é inexplicável. Era, na verdade, uma revelação que teve início na noite passada e agora chegava ao seu conveniente fim. Os sapos são realmente asquerosos, sou dessa opinião, mas e quantas coisas há que tão asquerosas e ainda assim não me saltam aos nervos? Com o animal a alguns centímetros, senti o desconforto de ter uma fragilidade das mais sensíveis exposta, como se ele pudesse ouvir meus pensamentos de algum tipo de vantage point, de onde ele podia extrair conclusões que eu mesmo era incapaz de supor. Não posso dizer que foi uma epifania, que encontrei uma luz, um entendimento, mas súbita e convenientemente percebi que eu estivera conversando com aquele animal a noite inteira. Conversando pode não ser a palavra correta, mas o que de fato notei, ainda, creia, com a meia armada para o ataque, foi que a sua presença na barraca, até há pouco ignorada por mim, fora essencial para direcionar meus pensamentos. Como não há língua comum entre nós, usamos minha aparentemente aleatória meditação para trocar uma idéia, bater um papo no limite de cada uma de nossas consciências: porém, um papo maior do que nossa compreensão. Ao menos maior do que a minha, é o que posso dizer. Larguei a meia e me sentei, flexionando por reflexo os joelhos. O sapo não se moveu, como eu imaginara; ele permaneceu no mesmo canto, fitando-me. Tentei enviar-lhe alguma mensagem, uma saudação, mas me senti um pouco ridículo, ainda que tenha repetido o esforço: cheguei a fechar os olhos e pressionar a mandíbula, inclinar o corpo em sua direção, como se empurrasse uma frase semi-humana, uma meia semântica, me permito dizer, para cima do animal. Ele se mantinha silencioso, numa atitude que, a princípio, era apenas sua íntima e úmida sensação de ser sapo, mas logo se impregnava de uma grandeza de espírito, uma força além de qualquer força conhecida por mim e quiçá pelos Homens. E então vi naquele animal uma verdade. Nunca poderia deliberadamente saudá-lo, pois qualquer esforço consciente nesse sentido, partindo de mim, seria infrutífero; o ser humano, semi-humano, calculando ou não suas palavras, faz uso de uma ferramenta de humilhação silenciosa e, para além da própria humilhação, inútil. E principalmente o silêncio é inútil em ocultá-la. E meus olhos haviam de sangrar creolina se eu pensasse em algo que fizesse sentido. E se meus pensamentos foram seus pensamentos, eu estava tanto alheio quanto interessado em sua existência. E vice-versa. E o atingi com um chute e o vi morrer esmagado pela minha súbita violência, uma violência que eu tinha, mas que ele nunca entenderia; mesmo, ou principalmente, se o quisesse.

Uma vez fora da barraca, comi algumas frutas que havia guardado no dia anterior e me sentei para redigir um epitáfio: seus olhos eram como duas pequenas bolas de gude que em si encerravam universos.