Contos, crônicas e novelas.

sábado, dezembro 27, 2008

Dr. Rodenti

Estávamos na sala, meu abdomen encostado no parapeito da janela, olhando os carros e um grande outdoor de calçados de couro, e meus dois amigos sentados no sofá, com o doutor Rodenti encravado na almofada do meio. Não há nada sobre o mal que não esteja nos meus livros, dizia, enquanto espalmava as mãos, friccionando até extrair algum suor, se há um assunto do qual eu 
conheça absolutamente tudo, esse assunto, minha gente, é o mal. O encarei, sozinho, sem a ajuda de nadie. O sotaque era argentino, outros diziam uruguaio, espanhol, venezuelano. Pouco se sabia no Conjunto Habitacional Circular sobre sotaques. Havia quem já houvesse estado na tríplice fronteira, comprando computadores e porta-retratos eletrônicos em Ciudad Del Este, mas isso não signficava nada em termos de aprendizado sobre as diferentes pronúncias do castelhano. Eu, o pequeno Ivan Cascudo e John Pablo Escobar, cujo rosto era ameaçado por uma genética de criatividade espantosa, cagávamos para a origem do velho. Tinhámos não mais do que 18 anos. Da minha parte, gostava de som automotivo. Cascudinho era um punheteiro doentio. Pablo, até onde eu sabia, não gostava de nada em especial, afora vagar conosco, calado, fumando sem parar seus sky's superlongos, sempre de boné, berma e chinelo de dedo. Quando percebi que o mal não era só uma palavra, rapazes, tinha uma idade aproximada à de vocês, e eu vi o mal, como estou vendo cada um de vocês aqui, e eu juro que ele era simpático. Rodenti vivia sozinho, mais um solitário ali, um dia farmacêutico, um dia casado, então abandonado por mulheres e filhos e toda a família. Ou fora ele que os abandonou, não era certo. O homem nunca fizera questão de solucionar a dúvida que rolava, vagarosamente, entre os condôminos. Às vezes uma mulher jovem aparecia e, dizem, subia até seu apartamento, mas o doutor não a deixava entrar e tinham uma conversa quase inaudível pelos vãos da porta. Não se sabia sobre o que falavam. Eu mesmo nunca presenciei a cena. Comentava-se que era uma amante, uma sobrinha, uma cobradora. Não acreditava. No apartamento havia muitos livros, sim, é verdade. Mas nunca pudemos ver, nem ele nos mostrou, algum dos que dizia ter escrito. Eu conheço o mal por que o mal, essa pessoa, virou meu amigo, frequentou minha casa, me contou sua história e ouviu a minha história, gente, e fiz muitas perguntas a ele, e ele respondeu a todas minhas perguntas com cuidado quase excessivo, falava. Era a terceira ou quarta vez que vínhamos ao doutor. Ele nos dava comida congelada e servia licor de laranja, que guardava em uma garrafa embrulhada em papel alumínio. Não havia taças, e usávamos o mesmo copo de plástico grosseiro. Ele gostava de nos ver beber assim, juntos, como irmãos, e ria. Vínhamos os três por que eu, Ivan e John não sabíamos viver um sem o outro. Não sei dizer o motivo de termos nos tornado amigos. Não acho que tenha motivo nenhum, se é que me entende. Só éramos vizinhos desde a infância. O John eu conheço da época em que a gente passava a madrugada toda sentado no chão do meu quarto jogando mario bros. Depois que roubaram o video-game, ele parou de falar comigo. Só voltou quando sua feiúra começou a aparecer, quando sua estranheza física se tornou tão aparente que as pessoas simplesmente se afastaram. Ainda me pergunto: por que ele se voltou a mim? A cara dele tinha todos os problemas possíveis. Para começar, não havia queixo. Sua boca, uma coisinha pequena, um ânus rosado, quase que encerrava o rosto, aberta e obscena, como a de um deficiente mental. Às vezes, vou dizer, dependendo do ângulo com que eu olhava, se estávamos debaixo de um dos postes do playground, com a luz amarela criando sombras estranhas, parecia que sua boca estava no pescoço. Só imagine uma boca no pescoço, e você vai começar a entender do que eu estou falando. Mas posso fazer uma lista: nariz gordo, com narinas muito abertas, uma testa curta demais, com cabelo ralo tal pêlo de rato, crescendo em tufos já em extinção, olhos caídos e grandes que nunca abriam ou fechavam no mesmo momento, que estavam sempre e descompasso, mãças do rosto afundadas. Cobrindo tudo, a pele avermelhada, descamando por inteira e diariamente com a ação de um produto anti-acne que ele usava desde os 13. Eu achava engraçado, começava a rir e não explicava ao John por que estava rindo, e acho que isso me tornava imune à sua feiúra. Como era o mal, meninos, vocês poderiam me perguntar, como ele se parecia? Era uma criança e tinha aquele sorriso cálido que as crianças confiantes têm, percebem?, disse o doutor Rodenti, e ele vivia gargalhando sozinho, mesmo quando não estava brincando. Ele gargalhava muito alto, súbito, como se estivesse pregando em todos uma surpresa. O Cascudinho, o pequeno Ivan, o Ivanzinho ou Ivanzico, tinha parado de crescer lá pelos 16 anos. Tomava hormônios com a esperança de que um dia ao menos tivesse barba, coitado, mas o pouco desenvolvimento nunca o afetou. Era um moleque virado, teve seus momentos com a galera do bloco 4, tipos como o Caroço ou o DVD, que não demoraram a ganhar fama de ladrões e craqueiros, que viveram seus momentos de glória na metade da adolescência e que já estavam presos ou mortos ou crentes, de qualquer maneira apaziguados, e o Cascudo era tão esperto que anteviu esse apaziguamento forçado que sofreria e, da noite para o dia, voltou a interfonar lá em casa para fumar um baseado tranquilo na Casa da Árvore. Falávamos de mulher e de punheta. Cuspindo e fanho como era, metralhava sem parar, já com a brisa na cabeça, técnicas e experiências da masturbação frenética que praticava. Eram ao menos três por dia, dizia. Ele gostava de bater punheta na mesa de jantar, na aula de física, quando era escalado de quarto zagueiro no campo semi-profissional da E.E. Ulisses Lima, olhando ou pensando na irmã, mãe, tia, colega de sala, em bocetas de vacas e de celebridades internacionais. Ele batia punheta com as duas mãos, com dois dedos, com um dedo enfiado no cu, segurando o saco, apertando bem forte os próprios testículos, tinha até já tentado o uso de frutas. Também me contava que tinha um tesão especial com o destino de seu sêmem. Carteiras escolares, cortinas da sala de aula, calcinhas de parentes, mouses, latas de refrigerante fechadas, sanduíches, maçanetas. Todos empesteados pelos espermatozóides agonizantes. Um dia o Cascudo teve uma coleção de revistas e filmes pornográficos que o tornaram popular, mas hoje estava tudo no computador, na internet. A coleção, teve a incrível idéia de doar para a biblioteca da escola _que, ainda mais incrível, aceitou. O que eu respondia a esses relatos banais da mais pura intimidade? Eu falava de som automotivo, do que é possível fazer com subwoofers e potências e caixas e graves, da relação entre cada uma dessas peças, de que tipo de música é aceitável para cada modelo, lhe explicava a destruição provocada por um sony e minhas teorias sobre os pioneers e sua altíssima fidelidade à midia, falava sobre mídia e encontros de sons automotivos, sobre as gostosas de biquini desses encontros e das explosões de pára-brisas, da força das ondas. Dávamos risadas, os olhos trincados, e enrolávamos outro. Meninos, vocês conhecem a bíblia? Nem eu. Mas lá está escrito, em algum lugar, que o mal não é o agente da desgraça, e sim que ele é o facilitador da desgraça. Ele a torna possível, sem nunca precisar operá-la. Eu sei disso mesmo sem ler a bíblia por que eu conheci o mal, percebem, minha gente? O menino, essa criança da qual estou falando, ele fazia com que o mal acontecesse, ele tentava os outros e conseguia que esses outros praticassem o mal. Ele, com uma mãe que claramente estava ali apenas para agenciar seu próprio filho, para facilitar a entrada do Facilitador na vida dos outros, mostrava-se só uma criança no início, uma criança tão inteligente que alguém poderia confundi-la com um prodígio, muito curiosa, falante, que contava aos outros detalhes de suas experiências infantis e abria os ouvidos com muita graça para ouvir as experiências dos outros também, percebem? Um menino magnético, sabem do que falo? E aos poucos ele se mostrava. Foi a punheta de Ivan que nos levou ao doutor Rodenti. Sentados sobre o muro baixo do grande estacionamento, Ivanzico disse que o velho tinha uma antiga coleção de vinis pornôs. O que eram vinis pornôs, eu e Johnny perguntamos. Ah, falou Ivan, são umas mulheres que ficam dizendo o que tão fazendo, tá ligado, "Feu folho para seu pênis efeto e o foco com a ponta do meu fedo", haha, falou o Ivan, o cara mais fanho que já conheci, imitando como seria a voz da narradora. "Eu firo seu pênis da fermuda e o coloco in-fei-ro na boca", hahaha. Rimos também. Aquilo era engraçado. Com ele dizendo ficava mais engraçado ainda. Não conseguíamos parar de rir. Perguntei: quem se excita com isso, e os dois ficaram calados. Logo Cascudinho disse que havia pego dois desses discos. Ao devolvê-los, o doutor não queria que ele fosse embora. O doutor queria falar, disse Ivan. E falou durante ao menos duas horas a um Ivan que, na verdade, queria é voar dali, quem sabe chegar em casa e se trancar no banheiro. Mas foi difícil escapar, e ao final desse tempo, em que, segundo disse o Casca, o velho contou apenas histórias estranhas que estavam em seus supostos livros, Rodenti disse obrigado e lhe pagou cinquenta pratas. Dinheiro. Por ouvir alguém falar. Com direito a licor de laranja e lasagna de molho branco. Casca nos disse, sentado no muro, que voltou algumas vezes para ouvir o gringo delirar e ganhar cinquenta pratas e que, na última delas, ele lhe perguntou se, por acaso, o Ivan não conheceria alguns amigos que também gostassem de ouvir histórias de um farmacêutico aposentado. E fomos, é claro, porque tínhamos 18 anos e nada na cabeça. O que eu conto aqui é a boa e antiga coisa do demônio, falou o doutor. Sobre suas faces. Por que seria diferente? As pessoas enjoaram desse jeito antigo de falar do mal. Elas querem que ele tenha rostos desconhecidos, querem que ele seja assim, comum, qualquer, querem que o mal seja portanto um mistério. Mas o mal não é misterioso. Quando ele está perto, você sabe. E quando ele lhe tenta, você pensa: "O mal está me tentando", e isso não impede que a gente caia na tentação, rapazes. Por que se tem uma coisa verdadeira sobre o mal é que ele não pode ser detido com a cabeça. Estava com meu abdomen ainda encostado no parapeito da janela, e observava duas pessoas, duas mulheres, acho, que entravam num monza marrom, havia uma senhora gorda correndo e cachorros se cheirando timidamente. Uma cena na periferia de São Paulo, minha consciência perdida no reino da banalidade. Pois então, essa criança espantosa, que com a mãe mudou-se para o lado de casa, e que passou a frequentar minha casa, que era ainda a casa da minha própria mãe, ela e suas gargalhadas súbitas gostaram de mim. Como eu disse, se tornou meu amigo. Um adulto amigo de uma criança. Ele chegava em casa quando não havia ninguém, sozinho, talvez trazendo sua solidão para meu quarto. E falava e me inquiria sobre os mais diversos assuntos. Me chamava de amigo, um adulto que era amigo de uma criança, uma criança que não tinha menos do que sete anos, talvez cinco, e que só aceitava conversar comigo se estivesse no meu colo, com seu corpo como que de... brinquedo sentado sobre o meu colo. O meu colo, gente. Comecei a ter medo, eu, um idiota de 18 anos, uma cabeça esburacada, escapando ar, fazendo água, naufragando. Dava pulos com suas gargalhadas, olhava fixamente seus dentes, para seus olhos, e esse meu olhar fixo era... vocês sabem do que eu falo?, sentir que não é possível parar de olhar para algo até esse algo se tranformar em outra coisa?, em uma idéia, em um sentimento, em uma memória, e essa memória criar uma viagem estranhíssima, como a de um sonho, sem que a gente esqueça que estamos acordados pensando no fato de que estamos sonhando e no quão isso é estranho, e nesse pesadelo nosso objeto fala conosco, nos dá ordens, entendem?, e foi a partir daí que eu comecei a pensar que se sentir hipnotizado pelos olhos e pelos dentes de um menino de seis anos, ou coisa que o valha, que isso não era normal, que o menino não era normal. Isso não é normal, eu pensava. Esse menino está escondendo algo, percebem? Seu corpo esconde algo horrível, podre, há coisas dentro dele que não parecem ser o que são. E entender que alguém lhe esconde algo é o primeiro prenúncio da presença do mal, isso eu escrevi num dos meus livros, vocês podem ler, essa frase exacta. Casca olhava para o teto, as pernas apoiadas num pequeno tamborete na frente do sofá. John Pablo chupava as unhas, as costas curvadas para a frente e uma veia saltada na testa curta. Tinha medo do menino, alguém incapaz, fisicamente incapaz, digo. E temia os momentos em que ele chegaria, tinha medo do relógio e do meio da tarde e de sua bundinha esquálida, nada mais do que um envoltório de algo bem diferente do que chamamos de comum. Eu sabia que era ele que chegava pela maneira que tocava a campainha, vários toques ininterruptos, aflito para me perturbar, para me tentar, de que outra maneira posso dizer? Casca me olhou, eu olhei para o Pablo, Pablo olhou para mim e depois para o Casca, que estava olhando para ele no mesmo momento. Casca se levantou e olhou as estantes e interrompeu o velho perguntando onde estava esse livro da tal frase exata mas o velho, ainda pressionando as mãos com força, o bigode rodeado de gotículas de suor, a barriga deformada pela gordura, queria falar, fazer valer as 150 pratas que gastaria conosco, com seus jovenzitos, como dizia. Jovenzitos, meus jovens, minhas crianças, falou, com uma voz pastosa. De que outra maneira eu posso dizer? Aquele menino queria que eu fizesse coisas com ele. Quando vemos na TV a história de que um homem foi com um menino, o que pensamos? Que esse homem, sempre um ser solitário, é um monstro abjeto e degenerado, que ele manipulou um ser pouco desenvolvido para introduzir-se em seus oríficos e com isso ter um prazer simples, brutalmente simples, brutalmente covarde. Pensamos na iniquidade e na complexidade, e que deus não nos fez iníquos ou simples, e que por isso devemos respeitar sua suprema ordem divina e incorpórea da busca da justiça e da dúvida. Pensamos no sexo e na indissolúvel vontade que o envolve, e pensamos que o sexo com alguém pouco desenvolvido destrói qualquer possibilidade de escolha ou de vontade, pensamos que o sexo com crianças não é sexo, é violência pura e infinita, o Inferno. E o que dizem os malfeitores? Dizem que foram tentados, só isso, candidamente, ainda mais terríveis. Agora, com toda a humildadverdad que tenho comigo, com a minha alma, vou perguntar: e se, pelo menos uma vez, esses homens que vão com meninos tiverem razão, falarem a verdade? E se aquele tachado de repulsivo estiver seguindo ordens? E se o mal se alastrar de um, digamos, pólo ativo, mais forte, em direção a um pólo passivo, mais fraco? E se a detestável desigualdade e a odiosa manipulação for produto da criança, e se essa criança estiver preparada, for antiquíssima? E se uma criança não for uma criança?, esse é o meu ponto. Sem cinismo, sem ironia. Eu quero tentar ser completamente aberto aqui, falar de igual para igual, dizia abrindo os braços, só buscando um ponto de vista diferente, minha gente. Jonh Pablo Escobar, o rapaz feioso do bloco 1, se levantou. Eu olhei para ele, que olhava o velho, e o Ivan Cascudinho, o rei da putaria, também olhava o velho, e por isso eu também olhei o velho. Aquele menino queria que eu fosse com ele, disse o doutor, ele ria no meu colo e me apertava e dizia que éramos melhores amigos. Eu sabia. E pensei: "Se eu sei que isso é o mal, o mal já não está em mim", pensei: "Basta compreender o mal para já praticá-lo?", pensei: "Então essa é maior tentação"? Aquele menino gargalhava e se apertava no meu colo, crianças, no meu colo. Ivanzico falou Ah, tio, vai se fuder, e começou com um chute no queixo que silenciou Rodenti. Pablito, com alguma calma até, esperou sua vez e afundou seus pés calçados de sandálias no peito do homem. Eu fui mais radical e joguei, sem pensar, a garrafa de licor de laranja na testa, onde um ponto de sangue começou a escorrer, grosso e escuro. Inspirados por mim, John e Casca pegaram duas cadeiras de madeira que estavam à mão e, alternadamente, as bateram contra a cabeça e o pescoço do doutor, do velho doutor Rodenti, careca, gordo, aposentado. Nenhuma das cadeiras quebraram, e por isso eles repetiram os gestos, mirando também nos braços e nas pernas, até uma das cadeiras se partir em três. Pablo pegou um desses pedaços e me deu. Eu peguei esse pedaço e tentei enfiar com um golpe na boca do velho. Senti alguns dentes se partirem e algo mole se rasgar. Ao mesmo tempo, Ivan o tirou do sofá com um puxão. Ele caiu no chão e em torno dele se criou uma poça de sangue. Não dava para saber de onde o sangue vinha. Daí Casca deu um pulo bem alto e martelou os dois pés juntos nas costas do homem e surgiu um barulho engraçado. Eu repeti seu gesto, e o John Pablo também, e também surgiram barulhos engraçados. John tentou levantar o sofá e jogar em cima do velho, mas não conseguiu. Cascudinho tirou sua camisa e começou a chutar a cabeça de Rodenti. Eu tirei minha camisa e Escobar tirou sua camisa. Todos sem camisa, começamos a chutar diferentes partes do corpo imóvel no chão e a dar pisões em suas mãos. Peguei o telefone preto que havia na sala, me agachei e passei a batê-lo contra a cabeça, até ela se partir como uma fruta. Senti que estava batendo contra uma fruta e parei. Pablo tentava virar o joelho esquerdo ao contrário, mas não conseguia. Casca foi à cozinha e pegou uma faca de cabo de madeira. Deu a primeira estocada e parou. John pegou a faca de sua mão e deu várias estocadas e parou. Eu percebi que estava com a roupa cheia de sangue e parei. Olhamos, posso dizer, durante mais de cinco minutos o que havia no chão. Estávamos suados e com as mãos na cintura. Pegamos alguns vinis pornôs, um ou dois livros grossos, e saímos. 

    

domingo, dezembro 14, 2008

Gomorra, Periferia e Sardela


places, originally uploaded by giancarlo rado.

 Este ensaio não nasceu ensaio: nasceu trabalho acadêmico. Este conteúdo não é o mesmo apresentado: foi alterado. E esta epígrafe portant não nasceu epígrafe: nasceu paráfrase. 


     Desde criança me sinto atraído por filmes sobre gangster e máfia. Um em particular marcou minha adolescência, Era uma vez na América, de Sergio Leone. Daria ainda para listar outros: Scarface, de Brian de Palma; Os Bons Companheiros, do Scorsese. Dele tenho uma admiração por Taxi Driver, um filme especialmente louco.

     Recentemente assisti algo diferente, que mudou minha noção sobre máfia e afins. Confesso que pouco sei sobre como as coisas andam por lá, na Itália, ou como tudo começou. Quando penso sobre isso, sou – e acredito que a maioria de nós – sempre influenciado pelos blockbusters hollywoodianos.

     O filme começa num salão de beleza. Onde todos são aparentemente grandes amigos. Corpos se bronzeando, unhas sendo cuidadas. A vaidade é interrompida com tiros secos, sem silenciador, ainda com o sorriso no rosto. Pow! Pow! Pow! e os corpos já estão no chão. A música, um pop dançante que nós brazucas chamamos de brega, é de um cantor nascido em Nápoles, terra que tem outra filha ilustre, a Camorra.

     Já tinha ouvido falar sobre a Camorra, mas nunca tinha me interessado em saber sobre ela. O filme de Matteo Garrone, por mais que seja um drama ficcional, foi roteirizado com base num livro de raízes jornalísticas e tem atores não profissionais da própria região, como Fernando Meirelles fez em Cidade de Deus, por isso tem um tom quase documental. Um pormenor pessoal é que o filme colocou por água abaixo a glamorização imagética dos mafiosos da minha adolescência.

     Gomorra é um retrato realista e anti-herói da Camorra, cujo os tentátulos espalham-se pela sociedade italiana em um misto de atividades suspeitas e ilegais. Mostra a estruturação da organização e seus sustentáculos de familiares que mantém negócios lícitos, como o dono de uma fábrica de alta-costura que é financiado pelos criminosos, e ilícitos, como o controle do tráfico de drogas e aterros de lixo industrial. Foi baseado no livro de Roberto Saviano, um jovem jornalista e escritor, também de Nápoles, que anda com escolta armada desde 2006 por causa das ameaças de morte.

     Não foi o exótico que me atraiu no filme, nem o glamour. Porque não há romantização. Aquilo que me atraiu foram as possíveis aproximações e diferenças com a realidade que conhecemos no Brasil. Aliás, nunca tinha visto um filme de máfia que ficasse ecoando nossos próprios problemas tupiniquins.

     Os badaladíssimos Cidade de Deus e Tropa de Elite são da mesma linhagem: ficções baseadas em livros que retratam histórias de comunidades que convivem com criminosos e autores que foram parte integrante da realidade da qual escrevem. Saviano é jornalista, da região, então dá para dizer que ele meio que está falando da sua própria casa. Li que ele infiltrou-se por anos na Camorra e fez bem o dever de casa do jornalismo investigativo.

     Se permitem-me fazer uma comparação – e podem discordar se quiserem – na periferia de Nápoles, em Gomorra, assim como no Rio de Janeiro, as crianças ficam maravilhadas com a força que os integrantes de grupos criminosos têm na comunidade. São detentores de um prestígio, mantido na base do medo, e controlam a região em família. Claro que, em qualquer lugar do mundo onde há a ausência de poder público, facções criminosas surgem para preencher esse vazio deixado pelo Estado. Ou elas tornam-se parte do próprio Estado, como o Hamas. Isso deveria ser mais desenvolvido, eu sei, porque o Hamas tem originalmente raízes na resistência Palestina. Seria uma grande cruzada me aventurar nessa comparação. Mas, não agora.

     Apesar de nas favelas cariocas, ou em qualquer favela brasileira, o crime não ser exatamente controlado por famílias durante anos e anos, as relações sociais que eles mantêm são baseadas na união e irmandade, onde o respeito hierárquico é similar como na máfia napolitana. Claro que em guardadas proporções. Acho que Cidade de Deus, apesar de propagandístico, mostrou um pouco isso.

     Gomorra tem uma fotografia bem crua. Precisa e direta algumas vezes, como no contra-luz do diálogo entre Ciro e a mãe de um garoto que mudou de lado e sente-se ameaçada. Filmado em closepróximo à janela de um dos cômodos desses apartamentos populares, que conhecemos bem. Tem a dramaticidade que a situação pede. Outras vezes é bem aberta e areja o olhar com uma beleza geométrica e plástica. Com sequências de pans e pontos de vista passeamos de carro, moto ou a pé pelo vasto cenário de abandono e vazio da província napolitana. Com certeza, sem a estética de fotografia de turismo, nem de clip MTV, que seria um caminho fácil para agradar a massa de jovens espectadores que passam os fins de semanas nos Shopping Centers.

     Garrone passeia com a câmera tensa e realista na nuca dos personagens. Não é nada novo, mas foi bem aplicada. Finalmente um filme sobre máfia sem charutos, chapéus e gelo seco saindo pelas bocas de lobo. Os chefões andam sem camisa, de bermudas e chinelos. Usam anéis e correntes pesadas. Alguns têm tatuagens de prisão, daquelas tipo Amy Winehouse. Empunham armas. São sórdidos como qualquer criminoso. Alguma semelhança com os criminosos que controlam as periferias brasileiras é mera coincidência.

     Na Camorra, os mafiosos que controlam os aterro de lixo industrial estão lidando diretamente com normas e leis estipuladas pela União Europeia, assim fica subentendido, e isso é que é assustador, a profundidade das influências na esfera política, seja pela ameaça ou pela corrupção. Isso também acontece no Rio, onde as comunidades transformam-se, muitas vezes, em currais eleitorais, nos quais os traficantes forçam a eleição de determinados candidatos para dar continuidade às relações estreitas que mantêm com o poder público. Isso já se conhece e como disse ironicamente o mestre Geraldo Pereira: “carne de vaca no açougue é mato”. Na última eleição tivemos até teatrinho militar para garantir a segurança e o voto limpo. Será?

     Há cerca de dois meses li que a Camorra declarou “guerra contra Itália”, segundo o Ministro do Interior italiano, Roberto Maroni. Seus integrantes estão eliminando qualquer tipo de oposição ao poder que exercem nas comunidades que controlam. Para dizer que não é brincadeira, assassinaram juízes e integrantes de facções de imigrantes, em sua maioria provenientes de países africanos. O governo italiano já demonstrou que está tentando atuar mais fortemente no controle da região, mas nenhuma força policial parece resolver quando o problema é uma cultura de anos e anos na forma de fazer negócios, de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico. Novamente, qualquer semelhança com nossa realidade brazuca é mera coincidência.

     Em relação aos mais jovens, nos morros do Rio parece falar mais alto a completa falta de opção que o meio em que vivem pode oferecer, por isso fazer parte de grupos criminosos significa ter mais visibilidade, prestígio e o dinheiro que a civilização do capitalismo moderno não consegue oferecer-lhes. Coisas que os Racionais já falaram bastante.

     Mas, na Camorra não é somente isso. É também ser parte de uma família, um determinado clã, um grupo social, onde o sobrenome tem o peso determinante. Os personagens parecem estar a procura do seu espaço ou fazem de tudo para garantir e ampliar o espaço já conquistado. Somente desta forma sentem-se parte de algo grande, algo que oferece-lhes uma identidade, principalmente.

     Há uma passagem interessante no filme que mostra o oposto disso. O funcionário de um mafioso não consegue aceitar fazer parte dos negócios ilícitos e sente-se moralmente afetado. Pede para sair. Ele não é parte da família, é uma pessoa na qual o mafioso via um futuro profissional e deu-lhe um emprego. Para ele, sem relação familiar, sem o peso cultural diretamente relacionado, não houve uma identificação. Nesta cena há um simbolismo da relação do fruto com a terra muito interessante. Com esses pormenores que o filme ganha seus contornos subjetivos. Quem já viu sabe do que estou falando.

     A cultura italiana está muito embutida na nossa cultura. Quem já não foi obrigado a ler Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado? Lá ele escreve: "Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo". Em Gomorra tive a sensação de que Garrone estava repetindo isso a cada cena, a cada inter-relação das histórias que filma. O problema do filme é a difícil tarefa de retratar mais de 300 páginas do livro de Saviano. E claro, a síntese cinematográfica, em termos de conteúdo, não ajuda. A narrativa das histórias, que vão se correspondendo, parece dispersa e fica às vezes confusa com muita informação. Mas não deixa o filme difícil.

     Em termos metafóricos, de quem conviveu com descendentes italianos no cruzamento do Bom Retiro com a Barra Funda e perdeu a conta das vezes que enfrentou as filas da Festa da Achiropita para comer sardela, fogazza e polenta frita, fica a impressão, ao terminar o filme, de ter cruzado com uma Ferrari sem motor, com estofamento rasgado, com a pintura vermelha desbotada, com as rodas roubadas, abandonada num terreno qualquer da Brasilândia. Rodeada de mato e lixo. Sabemos que é uma Ferrari, mas não é como estamos habituados a ver.

     Gomorra é um recorte muito preciso, com uma mão que sabe onde pressionar. Sem dramas psicológicos profundos. Um drama sem as estilizações de Cidade de Deus. Sem heróis. Sem histórias de amor. Ok, tem o amor de mãe, mas sutil, sem catarses e choramingos. Uma Itália, por exemplo, diferente da filmada por Silvio Soldini, no saboroso Pão e Tulipas. Um outro ponto de vista, talvez mais próximo daquilo que afeta os italianos no dia-a-dia, nos noticiários locais. Social, economica e culturalmente. 

     Soube que o filme passou pelo Brasil na 32ª Mostra Internacional de Cinema, em Outubro, e que deve estrear por aí até meados de Dezembro. Aqui no Porto, estreou há poucas semanas, mas já saiu de cartaz. E acreditem, não é nada fácil achar uma cantina italiana por aqui, não como as do Bexiga. Então, qualquer tentativa de insinuar que a máfia pode estar envolvida é mera teoria da conspiração.


Por Keiny Andrade

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Keiny Ensaia Sobre a Cegueira


Paulista Avenue São Paulo, originally uploaded by KEINY ANDRADE.

Enfim fui ver o aclamado Ensaio Sobre a Cegueira. Não sei dizer se gostei do filme. Há coisas interessantes e outras não, são como deslizes que a experiente equipe de Fernando Meirelles não conseguiu ver.

Vamos começar pelo ponto que achei interessante. O filme é fiel à essência daquilo que Saramago procurou demonstrar no livro. Não sei se Saramago quis evocar um apocalipse hobbesniano, isso me soou como oportunismo crítico de plantão, para deixar de lado os deslizes estéticos do filme e focar em teorias sociológicas. Pura preguiça da dita crítica especializada.

Li diversas críticas nas quais os autores pareciam retirar da gaveta empoeirada os anos de estudos de pós-graduação para mostrar uma análise inteligente e filosófica. Mero pedantismo conteudista. Olha, nada contra isso, mas poucos conseguiram falar do básico: analisar como o filme, no seu conjunto de imagens, diálogos, luz, fluidez, sons, constitui-se como obra. É aí que vejo os deslizes.

Alguns críticos insistem em chamar os filmes do Meirelles de "filme de autor". Com Ensaio foi a mesma coisa. Em qual filme dito de autor o símbolo da Volkswagen é esfregado na nossa cara logo na primeira cena? Digo mais, quem leu e acompanhou na imprensa o pré-lançamento do filme, o blog do diretor, sabe que o próprio Meirelles declarou que fez concessões para se entender com os produtores. Meirelles fez sessões teste para ver qual a reação do público, como era para agradar a todos, teve de "suavizar". Opa, vamos continuar insistindo que Ensaio é filme de autor? Para mim, não é, e Meirelles não é esse tipo de cineasta. Ele pode agir assim, ter essa intenção, porque é uma pessoa sensível e institiva, mas entre ter a intenção e realizar há uma leve diferença. No fim ele teve de fazer concessões para apaguizar os "outros realizadores" e não sair da boa fatia do mercado internacional de diretores que ele conquistou. Andrei Tarkovski deve estar se revirando no caixão por essas bobagens.

Vamos lá, deixa eu falar daquilo que interessa. Ensaio é confuso. Não porque uma sociedade que perca a racionalidade tem de ser confusa. O conjunto de imagem não flui com a simplicidade que Meirelles desejou. Após a apresentação em Cannes, o diretor mexeu no filme, tirou, acrescentou cenas, encurtou falas, e declarou “ficou mais simples”. Não tem nada de simples e, em certo ponto, é até pretencioso demais. As cenas fora, na cidade já destruída, são tão perfeitas, preparadas, arrumadas para estetizar o caos que irritam. É um misto de falsa fantasia caótica, cores pálidas e publicidade de automóvel. Faltou passar um NewBeetle e estaria como num comercial.

Há coisas inexplicáveis e fora de contexto no filme, como a câmera que dá o ponto de vista da bengala dos cegos. Ela surge do nada e vai embora do nada. Não há a mínima conexão com a narrativa, não lhe acrescenta nada. É apenas uma grande angular para impressionar. Não faz sentido. Outro exagero que Meirelles percebeu, e também alterou após Cannes, é que a narração de Dany Glover estava explicando demais o filme. Eu, particularmente, fico com pé atrás com filmes que se auto-explicam. Para evitar isso poderia ter investido mais minutos nas cenas fora, do começo, de como o Estado lidou com a situação e entrou ele mesmo num caos. Quando acontece o início das explicações, aparece o Glover ouvindo uma estação de rádio em português? Hã? Era para ter uma mensagem qualquer aí? Saramago, literatura portuguesa? Era isso? Tudo bem, a fotografia tem alguns méritos, mas abusou demais do desfoque. E por outro lado, tinha momentos tão polidos que não fazia sentido com o resto, principalmente quando todas as técnicas e artifícios para causar a sensação de cegueira praticamente somem quando os personagens são libertados. Poderiam continuar, digo, essas cenas de vultos e brancos estourados, que o diretor usa e abusa, poderiam seguir na segunda parte do filme, já na cidade, de alguma forma, para dar continuidade à sensação de caos interno. Sem isso, a fotografia parece não ter conexão de uma parte com a outra, a não ser pela palidez. Meirelles optou pelas representações miméticas. Se o filme tivesse usado uma fotografia mais dura, com mais tensão nos enquadramentos e desfoque nas cenas da cidade talvez teria resultado numa conexão com o caos interno das pessoas, com a parte do manicômio (90% do filme) e o mundo do lado de fora. Mas sua fórmula foi clichê: trânsito e impaciência (na primeira parte), lixo, mortos, gente desorientada andando pelas ruas (na segunda parte).

Na cena de sexo entre o oftalmologista e a prostituta de luxo, que já havia sido anunciada antes numa outra cena – não entendo porque tanta obviedade – Meirelles se repetiu. Meu amigo Rodrigo Dionísio [1] gostou da forma como foi filmada, diga-se de passagem, e concordo. Mas, ele usou a mesma fórmula da cena de sexo usada em O Jardineiro Fiel. Sexo no branco. É poética. Mas, para mim, isso é apostar em fórmulas, um lapso de criatividade. No ato de criação artística, padronizar pode ser um problema.

Aliás, tudo parece tantar ser criativo demais, bem sacado demais, usando fórmulas já testadas pelo próprio Meirelles ou pelo cinema. Assim é mais fácil não errar, certo? Na cena de Julianne Moore no mercado, quando ela desce ao depósito e enfim fica cega porque está tudo escuro (uau!!), ela pega um salame e devora-o exageradamente. Desculpem-me se perdi alguma coisa, mas não tinha percebido que eles estavam fisica e mentalmente com fome pelos traços deixados nas suas atuações. A fome, exagerada na cena, não é construída ao longo do filme no comportamento dos personagens, vem apenas pelos diálogos. O exagero dela é reflexo, de como disse um amigo, da mão pesada de Meirelles.

A cena dos cachorros comendo um corpo na rua poderia ser uma grande homenagem ao Zé do Caixão, cineasta deixado no limbo do cinema nacional por anos que ressurgiu recentemente, chocando sempre com seu estilo ímpar, sem concessões. Mas, Meirelles teve de suavizar. E como, nas cenas de rua, o tratamento de cores é carregado e usam esses artifícios que deixam a fotografia com o falso ar de surreal, essas partes ficam mais parecidas com comerciais de produtos sofisticados.

Nada contra tentar criar sensações usando cores pálidas, mas nas cenas de rua de Ensaio, a forma de filmar e a direção de personagens são incoerentes com essa estética. Acho que já vimos muita coisa para cair nessas armadilhas e ficar espalhando por aí que isso é uma sacada genial. Falta alguma ousadia, alguma forma de dirigir os cortes, enquadramentos, que fossem coerentes com a luz e as cores escolhidas. Como ele conseguiu na maioria das cenas internas.

Sobre usar luz estourada, brancura, em fotografia de cinema veja "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes. A história, brevemente falando, fala de um europeu vagando pelo sertão nordestino. Tudo é estourado porque os olhos claros do personagem (sei disso porque minha mulher tem olhos claros e sempre reclama) são sensíveis à luz intensa do sertão. Isso no filme é um fio condutor, o mesmo que Meirelles e seu diretor de fotografia, César Charlone, tentaram fazer, e fizeram bem em algumas partes, mas tenho dúvidas, como disse, se acertaram em outras. Algumas cenas estão escuras demais, como os estupros. Apenas para suavizar e não chocar o público em geral? Quando há o sexo consentido como no caso do doutor e Alice Braga é tudo branco? E quando há o estupro é tudo preto? Soluções fáceis, nada genial como andam dizendo por aí.

Em Irreversível, de Gaspar Noé, o espectador é duramente incomodado desde o começo, por isso a cena do estupro faz sentido, tanto dentro do que representa o persongem que o faz, como na narrativa na qual o filme é fotografado. Mas, claro, isso choca as pessoas e para um filme com pretensão de grandes bilheterias não é nada bom.

Ensaio é, como disseram alguns críticos, "entretenimento popular". Ou eu diria, a suavização e estetização do caos. Então vamos parar com esse discurso de "genialidade", "obra de arte" e "filme de autor". Para quem gosta, compre sua pipoca e vá ver o filme. Vale a diversão. E se se sentir afetado, perca seu tempo discutindo sobre a falta de moral e racionalidade num Estado caótico. Quer mesmo discutir nossa loucura? Veja Os Idiotas, de Lars von Trier. E convenhamos, já não somos caóticos o bastante para discutirmos sobre isso diariamente?

Para mim, conteúdo só funciona com a forma coerente, do começo ao fim. Digam o que quiser de "Tropa de Elite", mas José Padilha filmou de uma maneira muito precisa, com a fotografia fazendo sentido com o conteúdo, em todos os aspectos. Sua luz, sua forma de andar com a câmera entre os personagens são contundentes com todo o conteúdo da história. Quem quiser saber mais sobre isso visite as obras de Lars von Trier, principalmente Dogville, uma obra que mistura com maestria forma e conteúdo. Outra é O Rolo Compressor e o Violinista, de Andrei Tarkovski. Outra? Three Times, de Hou Hsiao Hsien. O resto é bobagem, pretencionismo e puro delírio estético. Ou, como já disse, diversão.

Keiny Andrade

[1] O jornalista Rodrigo Dionísio escreve no blog Haja Saco.

terça-feira, outubro 07, 2008

A Invisível Brisa (2ª Versão)

Os sapos são animais horríveis que não consigo tocar.

Seus globos oculares brotam do corpo como duas bolhas que brotaram de um caldo espesso fervente e, quando no auge de sua fuga centrífuga, desistiram simplesmente de arrefecer, permanecendo como dois campos arredondados de acrílico, condenados em uma metade àquela superfície e em outra ao subterrâno mais asqueroso. Seus olhos em si não é fácil saber para onde olham, mas também não é necessário. Como todos os animais inescrutáveis capturados em nosso campo de visão, os sapos olham para nós: humanos; ou nem tão humanos assim, como julgo, ou, ainda, humanos de jeito nenhum, pois não poderíamos nomear-nos tendo de frente a óptica indescritível desses saltitantes monstrinhos. Então que nome dariam para nossa inominável estrutura quando topassem com a ponta de um de nossos pés? Não há classificação que aguarde ao paradoxo de se estar de um jeito tão próximo e de outro tão distante. E se há, inexiste ao momento.

Não sei porque estou a pensar nesses animais, em como eles se alimentam, como procriam, respiram e vivem em seu corpo miúdo. Temo que fui tomado pela idéia de que esses bichos horríveis compartilham meu prato de comida fria, meus filhos, meu ar e meus pés. Que sou eu aqui, e eles aqui, onde estamos eu e eles sozinhos em nossa ruidosa meditação. Os anfíbios a coaxar, eu, não tão humano quanto gostaria, a discutir em voz íntima comigo mesmo.

A madrugada está avançada, imagino, e o que suspeito ser um vão entre minha barraca e o chão duro de terra deixa vazar ao meus pés uma fria corrente de vento. Aos poucos sinto perder o sentido dos dedos, que vão ficando tão frios que enfim quase se repelem uns aos outros. Sem me levantar, procuro às cegas, com o braço esticado, uma meia ou um pano, algo para cobrir os pés. Quando já sinto a mão encostar na mesma meia que uso todos os dias e que quando cheguei à barraca, no ermo final da tarde de ontem, joguei em qualquer canto, sinto uma súbita vontade de desistir, de deixar meus dedos nus enregelarem-se com o ventinho da madrugada. Acho até que me veio uma idéia interessante, mas não penso mais sobre isso e relaxo, deixando o braço onde estava. Encosto a cabeça e volto a pensar nos bichinhos. Retomo um até então remoto aroma de creolina. Azedo e verde (e porque verde?), com um definitivo buquê de desinfetante industrial. Lembro de um sapo inerte sobre o asfalto do meio-dia, com o sal a lhe queimar as costas. Aí aparecem algumas crianças em volta, de mim e dele, segurando gravetos com os quais começam a fazer uns cutucões no bicho moribundo, talvez já morto, enfim morrendo. Sem demora, dão-lhe um banho de creolina. Aparenta ser um espetáculo refrescante, mas é outra coisa. Não crueldade infantil, sadismo infantil. Trata-se de um procedimento. Indolor, incontestável. Nem bom, nem ruim. E o animal-ingrediente se dissolve, seu corpo assimila um matiz de asfalto e a creolina prevalece em presença, azeda e verde.

Começo a ter sono, perco velocidade, mas ainda sou capaz de fazer uma mea-culpa e rodeá-la com pensamentos que tão logo surgem já se perdem: ora, a mim os sapos aparecem sempre em situações de uma negatividade tão abtrata, e nunca saberei se criada por eles ou a eles reduzida (e isso não pode ser a mesma coisa). Eu devia ser uma criança iliterada quando os vi pela primeira vez, inominados, objetos cor-de-sabão cuja agilidade, ou simples movimentação, superava a capacidade dos meus olhos de se fixarem em algo significável. Uma sombra petrificante, mais ou menos idêntica àquela que seríamos frente a eles. E então ocorreu que os sapos se transformaram nos sapos e, entrementes, alheia à minha sincera vontade, a decisão de desgotá-los tomou conta. Para isso aí está a cena da creolina, a cena típica, retornando sempre, como uma etiqueta atada aos fortuitos encontros com o anfíbio. Penso nisso até perder o controle dos olhos; e já estou quase concordando que os sapos não são assim tão asquerosos, até lembrando de alguém -alguém bem idiota- me dizendo que eles são muito mais limpos do que os cachorros, ou do que nós, nômades semi-humanos. Mas aí eu talvez já esteja dormindo e sonhando e encontre um sapo do tamanho de um elefante, com quem converso sobre alfaces grandes como paraquedas e pântanos tão fundos quanto nossos pensamentos, sem bem que os pântanos, habitados por sapos-elefantes ou não, são rasos, e é justamente isso que faz deles lugares horríveis também (tão rasos, tão fundos). É possível, perfeitamente possível, que eu esteja sonhando com outra coisa (ou, mais possível ainda, que nada, nada mesmo, esteja acontecendo comigo nesse exato instante... pois de fato adormeci, e o sonho, se houve, na manhã seguinte foi imediatamente esquecido por obra de um encontro real que tive).

Quando acordei, vi que um sapo, sim, um sapo, me encarava de um dos cantos da barraca. Por alguns milissegundos imaginei que ele fiscalizava os movimentos dos meus pés, já aquecidos depois de longa -e, convenhamos, fácil- batalha contra a invisível brisa, mas logo tive certeza de que ele prestava uma atenção anfíbia à minha totalidade. Ao menos eu poderia e deveria até dizer que sim, que ele olhava para mim, e de uma forma tão intensa que parecia meditar no verso do que eu próprio meditava: na estranheza desse animal. Como teria ele entrado ali? E, divago, não teria aquele sapo aventuroso se aproveitado da minha dormência para auscultar e invejar minha pele? O que pensaria ao notar pelos, unhas, cartilagens... Aproveitei que o meu braço permanecera encostado à meia para usá-lo para um ataque. Sim, iria arremeçar alguns gramas de pano sobre o bicho. Não tão estranhamente quanto possa parecer, procurei evitar movimentos bruscos, pois sabia que qualquer gesto largo o faria pular em direções imprevisíveis, entre as quais estavam as dimensões do meu corpo. Com a delicadeza que eu não teria usado para acariciar as tetas de uma dama, peguei a meia e projetei uma mira quase sem mover um fio do algodão. Eu planejava atingi-lo com a meia usando-a como uma rede, não queria machucá-lo assim, não apenas, digo, mas prendê-lo para ganhar um tempo durante o qual sairia em busca de um pedaço de madeira grande o bastante para ser usado como instrumento na morte de um animal de 15 centímetros preso sob minha meia suja de terra e sangue. Eu preparava o lançamento quando fui interrompido por uma nota de rodapé algo aleijada: meu medo dos sapos é inexplicável. Era, na verdade, uma revelação que teve início na noite passada e agora chegava ao seu conveniente fim. Os sapos são realmente asquerosos, sou dessa opinião, mas e quantas coisas há que tão asquerosas e ainda assim não me saltam aos nervos? Com o animal a alguns centímetros, senti o desconforto de ter uma fragilidade das mais sensíveis exposta, como se ele pudesse ouvir meus pensamentos de algum tipo de vantage point, de onde ele podia extrair conclusões que eu mesmo era incapaz de supor. Não posso dizer que foi uma epifania, que encontrei uma luz, um entendimento, mas súbita e convenientemente percebi que eu estivera conversando com aquele animal a noite inteira. Conversando pode não ser a palavra correta, mas o que de fato notei, ainda, creia, com a meia armada para o ataque, foi que a sua presença na barraca, até há pouco ignorada por mim, fora essencial para direcionar meus pensamentos. Como não há língua comum entre nós, usamos minha aparentemente aleatória meditação para trocar uma idéia, bater um papo no limite de cada uma de nossas consciências: porém, um papo maior do que nossa compreensão. Ao menos maior do que a minha, é o que posso dizer. Larguei a meia e me sentei, flexionando por reflexo os joelhos. O sapo não se moveu, como eu imaginara; ele permaneceu no mesmo canto, fitando-me. Tentei enviar-lhe alguma mensagem, uma saudação, mas me senti um pouco ridículo, ainda que tenha repetido o esforço: cheguei a fechar os olhos e pressionar a mandíbula, inclinar o corpo em sua direção, como se empurrasse uma frase semi-humana, uma meia semântica, me permito dizer, para cima do animal. Ele se mantinha silencioso, numa atitude que, a princípio, era apenas sua íntima e úmida sensação de ser sapo, mas logo se impregnava de uma grandeza de espírito, uma força além de qualquer força conhecida por mim e quiçá pelos Homens. E então vi naquele animal uma verdade. Nunca poderia deliberadamente saudá-lo, pois qualquer esforço consciente nesse sentido, partindo de mim, seria infrutífero; o ser humano, semi-humano, calculando ou não suas palavras, faz uso de uma ferramenta de humilhação silenciosa e, para além da própria humilhação, inútil. E principalmente o silêncio é inútil em ocultá-la. E meus olhos haviam de sangrar creolina se eu pensasse em algo que fizesse sentido. E se meus pensamentos foram seus pensamentos, eu estava tanto alheio quanto interessado em sua existência. E vice-versa. E o atingi com um chute e o vi morrer esmagado pela minha súbita violência, uma violência que eu tinha, mas que ele nunca entenderia; mesmo, ou principalmente, se o quisesse.

Uma vez fora da barraca, comi algumas frutas que havia guardado no dia anterior e me sentei para redigir um epitáfio: seus olhos eram como duas pequenas bolas de gude que em si encerravam universos.

domingo, agosto 10, 2008

Lixo


Sabe, filho, em 2007 eu tinha a sua idade e dois conjuntos de roupas memoráveis. O primeiro era o uniforme escolar, a calça com duas tarjas brancas correndo por fora das minha coxas pré-adolescentes e uma camiseta de um número maior do que o que eu usava à época, com o símbolo do colégio estampado atrás, seu silk-screem borrado e mal composto. Esse conjunto de roupas eu detestava e por isso não era raro que eu o rabiscasse, dilapidasse e até mesmo, em acessos de tédio, queimasse suas pontas ou bordas com fósforos ainda em brasa na cozinha do apartamento onde morava com minha mãe, hoje sua avó. O outro conjunto, que lembro muito vagamente como composto apenas de meu jeans velho e do agasalho de náilon todo preto, era o que eu usava para andar pelas ruas asfálticas com o Pedro e visitar os terrenos esquecidos que proliferavam pela cidade como os loucos que todos os mundos deixam crescer cegamente para poder neles se espelhar.

Lá vinha eu, nos idos de setembro de 2007, andrajoso com meus cabelos levantados pelo vento, magrelo, voltando de alguma aula em que a professora de longos cabelos castanho-lisos havia nos obrigado a juntar palavras que ela julgava importante conhecermos, eu e os outros coitados cuja paciência estava além de qualquer limite, sim, lá vinha seu pai, então um meninão como você, carregando essa roupa de fábrica incrivelmente ruim que esquentava no verão e paralisava no inverno, que te fazia suar, mas não absorvia sequer uma gota de seu suor, talvez também com uma mochila de plástico cinza irremediavelmente manchada de sabe-se lá que tipo de fuligem duradoura, andando pela rua, voltando para casa e pensando: "preciso alimentar os peixes".

Seguia pela Xavier, uma viela assustadora e repleta de maloqueiros que restavam nas marquises conversando por meio de gritos, passava pela Augusto Pestana, a grande avenida que saía de um túnel vermelho-azulado e entrava em um outro vermelho-esverdeado, seus carros inofensivos à distância, caía em um emaranhado de vias que terminavam rápidas umas na outras e continuava reto então na rua que eu mais gostava, a Magno de Carvalho, onde não havia nada que não o lixo industrial de uma velha fábrica e alguns deteriorados móveis que ficavam lá por meses, estragando provavelmente durante à noite, quando não podiam ser vistos, numa solidão muito triste que só era consolada, imaginava, pela maneira como eu e as outras pessoas que passavam por lá nos afeiçoávamos a cada um deles, inscrevendo-os em nosso itinerário diário, sonhando por vezes com alguns e, no meu caso, sempre lembrando, ainda agora, dos que mais tempo esperaram ali _o armário sem portas mas com curtas pernas torneadas, o outro armário inteiro branco de três portas intactas, a mesinha com um tampo de vidro estilhaçado que servia de cemitério a alguns insetos que caíam já mortos de uma árvore pintada de cal.

Andava por essas ruas e por fim descia até o pequeno viaduto ao fim do qual estava o prédio onde alugávamos um apartamento. Antes de chegar, acho, olhava sozinho sem muita expressão o eterno congestionamento que havia na avenida abaixo, uma do século XIX, desfigurada por placas publicitárias pequenas e de cores berrantes pregadas aos muros sujos que a ladeavam como deprimentes bandeiras nacionais; costumava ser o final da manhã, talvez detivesse meu olhar em alguma das insectas manchas que haviam crescido nos de fato incontáveis prédios que havia por todos os lados, manchas de sujeira ou de água infiltrada que nunca significaram nada de objetivo para mim e que mesmo assim ainda estão claras em minha memória, e depois de alguns segundos continuava em frente. Abria a porta do apê com minha chave colorida e, puxa vida, eu me lembro bem desse momento, os horrorosos barulhos do mundo estavam lá como se fossem minha família. Enrolados nas cortinas. Usando o chuveiro. Pregados nas paredes. Correndo ou se arrastando pelo corredor. Não só as máquinas, mas essencialmente o burburinho daqueles milhões de moradores, com tantos problemas para resolver e apenas a voz para intermediar suas resoluções. Era uma espécie de tremor que chegava ao meu peito, uma vibração de poder desproporcional que dava uma grande vontade de chorar e de escrever um bilhete de adeus à minha mãe e àquele lugar.

Em meu quarto estavam os quatro ou cinco aquários que eu mantinha espalhados pelas prateleiras, disputando o espaço ou se escondendo ou mesmo compondo cenários inusitados com os cones, canetas, tubos de PVC, velhos pára-lamas, porta-retratos vazios, seringas manchadas de sangue, roupas, lápis, pedras brilhantes, garfos, chaveiros, pequenas caixas de papel, impressos com frases pela metade, fotos, tênis e imagine quantos objetos mais quiser que eu trazia de minhas andanças por terrenos abandonados com o Pedro e largava no chão. Havia os pequenos e redondos e grandes e quadrados aquários, ou pelo menos assim imagino hoje, cada um com uma quantidade fixa de peixes, mas nem sempre com os mesmos peixes. Eu gostava de misturá-los, formar diferentes equipes, ver como um se relacionava com o outro e observá-los interagir nessa interação característica e meditativa que é a interação dos peixes. Você pode achá-los animais retardados, filho, mas eu tinha cerca de vinte deles, e, se bem me lembro, ao menos um foi diferente dos demais. Dei o nome de Verde para este. Verde parecia um animal à frente de sua espécie. Nas minhas noites iluminadas apenas pelas lâmpadas brancas subaquáticas de cada um desses potes de vidro e pelos reflexos difusos que chegavam de longe pela janela, deitado na cama e tendo ao fundo o ruído da televisão ligada de sua avó, pude perceber que ele raramente estava acompanhado, que seus colegas costumavam se isolar dele e, se começava uma de suas longuíssimas voltas ovais pelo cárcere, era comum que os outros ficassem aglomerados em um canto, no lado oposto ao da sua trajetória, como se precisassem manter dela a distância mais segura possível. Quando ele voltava-se para o grupo _posso até hoje lembrar de seus olhos enraivecidos, bastava prestar verdadeira atenção e se percebia que ele de fato possuía olhos enraivecidos_, todos se dispersavam movendo-se atabalhoados para todos os lados _e posso também lembrar que havia, sim, alguma expressão corporal de vergonha nesses outros, provavelmente as barbatanas abaixadas ou o nado rápido em curtos círculos, disfarçando-se de animais muito ocupados para perceber o próprio vexame. Talvez fosse um medo primitivo do corpo de Verde, que era um pouco menor do que a média dos peixes que costumamos ter em casa e tinha a coluna em uma inclinação horrenda, em "S", possível resultado de uma violência brutal sofrida durante sua vida selvagem, da qual ele nunca se recuperou por completo, ainda que tivesse, de maneira difícil de acreditar, sobrevivido para chegar até mim. Havia ali uma clara deformação, filho, faltava algo ao corpo de Verde, e esse algo tinha sido retirado dele à força, digo. É por isso, acho, que ele começava a fazer parafusos e mesmo a dar com tudo no vidro durante algumas de suas travessias tranqüilas, descontrolado e rápido, tal não soubesse que havia aquele limite ali, pobre, ou não pudesse controlar seu corpo fuseforme da maneira que os outros faziam. Hoje tenho uma espécie de delírio na cabeça, que é o de que Verde tinha completa noção dessa sua deformidade, e que isso, esse sentimento de diferença e de incompletude o tornavam um peixe atormentado, algo não realizado como animal, e que se era comum, nessas noites em que eu passava solitário com meus aquários, vê-lo se bater contra o vidro a ponto de fazer um engraçado barulho oco rondar meu quarto, era porque havia uma clara vontade de suicídio ou de liberdade em Verde, algo que ele deveria simplesmente deixar ir, sair dele por inteiro. Aquele peixinho, hoje deliro, tinha uma vontade (cuja natureza não é possível a mim descrever) de terminar o serviço começado por quem o mutilou.

Achei-o na JC Vieira, aquela rua que sai da Têxtil Wilson Costalarga e termina no Largo da 25 de Dezembro, na qual havia uma quadra só com lojas de animais de estimação e rações ou utensílios para eles, onde algumas galinhas perdidas ou independentes de seus donos ciscavam bitucas e cacos de lâmpada ao redor de grossas árvores retorcidas pela fumaça e agressividade do meio urbano. O impacto dele sobre os outros _que eu me refiro aqui como um grupo de velhos companheiros, mas que a mim são hoje variações de um mesmo tema, um tema também já perdido _foi imediato. Desajustado mesmo dentro do saquinho com água suja. Isolado, febril, debatendo-se. E havia a maneira como ele agia quando alguém aproximava-se: postava-se frente à uma das parede dos aquário e nadava lentamente, balançando as barbatanas em câmara lenta ou em extremo esforço, seguindo não meu dedo ou o próprio reflexo, e sim meus olhos, mesmo quando eu já tinha me esquecido disso, e, acho, mesmo quando eu dormia. Sob a luz branca, enquanto os outros singravam aqueles pequenos oceanos artificiais tal zumbis, Verde estava lá, desperto, esperando resolver, com sua movimentação incessante, algo ou angústia que nenhum peixe que já conheci pareceu carregar. Pedindo ajuda, hoje penso.

Acredito que, seja lá o que fosse esse sentimento, essa diferença (podemos dizer isso, essa diferença, essa curiosa diferença) o carregou consigo no dia em que se passa esta história, pois entrei para alimentar os peixes de cada um dos meus quatro ou cinco aquários e Verde estava morto. Tinha vivido a misteriosa morte dos animais domésticos. Agora, os outros haviam se aproximado dele, um corpo não flutuando, mas caído próximo da ponte levadiça do castelo em miniatura, e davam voltas em torno de seu cadáver, criando um ínfimo torvelinho e levantando infimamente o morto, o que parecia ressuscitá-lo e matá-lo de novo e de novo. Tive uma imediata ojeriza desses covardes, gozando coletivamente do indivíduo que não poderia mais se defender, daquele que nunca entenderam e que agora havia, no mundo dos peixes, perdido a única batalha que eles podiam qualquer dia lutar _mas, que, para ele, nunca foi a que de fato importava, penso. Enfiei a mão ainda quente do dia de fora, o enlacei entre os dedos, tirei o que restava de Verde (então um minúsculo peixe, apenas feio e morto), coloquei-o num saquinho plástico com água, dei um nó e guardei-o em um bolso do casaco preto, que, tal a calça jeans, já estava sobre mim como um manto. Desci então à casa de Pedro, dois andares abaixo da minha, pela escada escura grudada de poeira velha, imaginando que ele poderia saber o que fazer.

Antes, devo dizer, filho, que naquela época, eu passava a maior parte do meu dia _ou do meu tempo, de fato da minha vida mental_ à procura dos tais terrenos abandonados. Minha área de atuação era limitada pela capacidade então não muito prodigiosa de andar e por uma ainda poderosa dependência familiar, de minha mãe, que costumava se dizer "muitíssimo preocupada", essas eram sempre suas únicas palavras, com minhas andanças. Hoje vejo como nada se perde em uma relação entre pais e filhos, filho, nada se perde nunca, pois, em um ritmo radicalmente diferente do meu, sua avó também tinha um gosto particular por migrações: de pequeno comércio para pequeno comércio, de lojas de conveniência em postos de gasolina para caixas de mercados de bairro, com algum dinheiro para o ônibus e pernas ainda longe desse emaranhado azul de fios fibrosos que os médicos intitulam "um caso grave de varizes", sempre brigando com os patrões em noites de silêncio e sempre comemorando comigo e um bolo de chocolate industrializado os novos uniformes das novas empresas, normalmente pequenas franquias ou multinacionais do segundo setor da economia. Eram comemorações sombreadas de artificialidade, e durante elas, em um átimo de consciência, tinha certa vontade de também me dizer preocupado com os rumos de sua vida.

Pois, bem. Eu gastava quase toda minha vida exterior a andar pelo centro dessa cidade. Mesmo em dias quentes, vestia minha calça e meu agasalho e com esse uniforme de peregrinação procurava locais que, embora dentro da violência do movimento da cidade, continham silêncio, terra, mato, restos do conhecimento, povoamento e construção, detritos que eram os elementos característicos daqueles relativos vácuos urbanos, que existiam apenas enquanto eram ignorados. Uma espécie de umbigo e de ânus de todo os prédios, barracos, casas, viadutos, parques e congêneres que haviam, de maneiras que eu preferia fantasiar, sido paridos pela raça humana ali vivente. Era um local de paralisados, injustiçados, expatriados e malditos. Quando saía, buscava me esquecer das direções, me esforçava por apagar o mapa daquele centro, ainda que, naturalmente, restassem as imagens de outdoors e de cadeiras de plástico espalhadas por certas ruas, das roupas usadas pelas pessoas que andavam em um ou em outro lugar, a lembrança de vazio olfativo em que por toda a minha infância essa região esteve envolta. Eram só imagens e sons, como no cinema. Nas vezes em que tive pleno sucesso, em que consegui andar tal forasteiro em minha própria cidade, fui incapaz de ajudar qualquer um que se julgasse perdido, já que eu, mesmo estando a poucas quadras de casa, não raro tive de me reportar a outros passantes para conseguir estar de volta antes das 19h, o meu auto-imposto toque de recolher. Simplesmente andava, nessas oportunidades, cego, virando aleatoriamente para a esquerda e para a direita, seguindo reto, sem planos, contando apenas com o acaso, pois me envergonhava, uma vez terminada a jornada, perceber que já conhecia onde estivera, que por lá havia passado tantas vezes e olhado para o terreno com o idêntico desencanto de todo o mundo.

Nunca me lembraria desses momentos de minha pré-adolescência se não tivesse sido acompanhado na maioria das vezes por esse vizinho que se chamava Pedro e que posso dizer que foi, dentre todos os meus grandes amigos, aquele com quem por menos tempo convivi. O Pedro, até onde sabia, havia sido gerado e vindo ao mundo real naquele apartamento para onde me dirigia neste dia. Ele e sua casa eram elementos idissociáveis, digo, um estava atrelado ao outro como membros de um mesmo corpo. Na sala havia um grande tocador de CD preto, ultrapassado e tomado pela poeira que voava casa adentro sem nunca parar, todo quadrado e com pequenos buracos no tecido de suas caixas de som, ladeado de uma torre de vinis protegidos com sacos plásticos arranhados e embaçados. Penso naquelas peças e lembro de uma capa, que, repassando como era a realidade daquela época, reunia, mesmo que de maneira oblíqua e insondável, as características de meu amigo com perfeição _ou assim isso se afigura hoje. Era um senhor bigodudo, vestido de terno justo azul-claro e camisa quadriculada vermelha-e-branca, sentado em uma cadeira impossível de ser vista a não ser por seus pés de metal modulado, com os cotovelos apoiados em uma mesa de tampo branco, os antebraços peludos ligados a mãos que seguravam o queixo, a cena fotografada em uma cozinha ou banheiro cujos azulejos me lembro serem apenas esverdeados. Ele sorria, tinha as pálpebras quase fechadas e uma expressão malévola em seu rosto anguloso e envelhecido de caubói, a pele amarelada e homogênea como a de um desenho animado recobrindo um crânio opaco; sorria e olhava para cima, onde havia a frase "Vamos pegar a estrada?", possível nome do álbum de algum cantor (ele?) hoje desaparecido.

Era comum essa minha trajetória que ora narro: chegava da escola, descia pela escada e com Pedro passava um bom tempo naquela sala onde ficava o som e suas caixas, uma sala que imagino que você já tenha percebido o quão acanhada era, um pé direito de não mais do que dois metros e meio, dando a impressão de que eu e meu então melhor amigo éramos maiores do em realidade éramos naquele momento de brutal transição corporal. Dentro daquela salinha, com os joelhos dobrados acima do assento do sofá forrado de plástico, os cotovelos a tocar as paredes frágeis e sujas, dobrados e encurvados como aranhas mortas, nossas peles tinham o aspecto artificial que precede o sebo adolescente, e de nossos buços iluminados pela luz da janelinha alguns pêlos irrompiam.

Nunca, durante o tempo que durou minha amizade com Pedro, conversamos sobre qualquer assunto que não futebol e terrenos abandonados, e isso sempre nos bastou. Gostávamos de times rivais, e tínhamos portanto sobre o que discutir, magoar, vingar-se e, por fim, buscar algum tipo de reconciliação. Digamos que eu torcesse por X e, ele, por Y, X era sempre inferior a Y em minha memória, pois, naquele mundo, quando eu existia daquela maneira (muito diferente da atual) e ele existia de sua própria maneira, seu time, o do Pedro, era muito melhor do que o meu. Mais rico, mais jovem, mais tradicional, com uniformes mais brilhantes, melhor cortados; seus jogadores tinham nomes duplos, seus técnicos usavam roupas mais adequadas, seus torcedores eram mais numerosos, mais fortes e, ainda assim (ou mesmo por isso) mais civilizados que os da minha torcida. O time pelo qual o Pedro torcia dava a ele uma eterna vantagem, com a qual me acostumei sem nunca contestá-la de maneira sincera, em parte porque a escolha de um time ou de outro fora natural a nós dois, e não o produto da intervenção de familiares ou da pressões de jornais, revistas ou televisão. Seguimos apenas nossas vontades puras e intuições pueris, e nada mais. Não havia desculpa ou justificativa externa para o fato de eu torcer pelo time ruim e ele, pelo bom. Essas escolhas, achava, eram como que o resultado natural de quem era ele e o resultado natural de quem eu era e, assim, falavam sobre nós mais do que poderíamos articular. Durante o todo o tempo que fui seu amigo interpretei o papel de satélite natural, digo,
admirando-o e seguindo-o e concordando com suas decisões. Não como se eu e ele estivéssemos disputando uma corrida e eu (seu pai) sempre chegasse por último, ou como se ele fosse o senhor e eu seu servo, não isso, nunca isso, e sim como se ele tivesse a razão, e com essa razão, inerente a ele e indiferente à vontade dele, eu concordasse e dela fosse incapaz de discordar, como se ele tivesse a razão que era minha, mas que em mim eu não encontrasse e que por isso dele eu a precisasse extrair.

Por que nos tornamos amigos de certas pessoas, filho? Eu e ele, Pedro, tínhamos apenas mãe, não um pai. Humanas solitárias e esmagadas pelo rótulo da normalidade. Ainda que não comprendesse quais eram as conseqüências desta questão e como a suposta existência dela nos fazia parecidos, sempre achei que a simples congruência de situações familiares nos aproximava, nos colocava no mesmo vagão, o que em parte justificava nossas andanças, dava mais sentido a elas, purgava ligeiramente a vergonha por ter esse desejo de ver e explorar terrenos abandonados, tocar em suas peças e levar algumas para casa, objetos que um dia significaram, no limite, algo para alguém e que nós, Pedro e eu, nós dois juntos, como uma equipe, dávamos outra vida, resgatávamos do completo ocaso, tirávamos da condição de refugos industriais desimportantes do mundo e trazíamos, solidariamente, de volta à existência, à nossa existência. Compartilhávamos um tipo de poder: se apropriar da memória alheia e, assim, poder fantasiar sobre como tudo aquilo tinha sido usado e deixado de lado, semelhantemente a um amor passado. Não adorávamos o lixo, como pode parecer. Nós detestávamos o lixo, tínhamos horror aos sacos plásticos de supermercados recostados em postes e supurando chorume, e por isso fazíamos o possível para que eles, os detritos, voltassem a receber um pouco de atenção e deixassem, portanto, de serem simplesmente lixo. Da mesma maneira que diversas pessoas acolhem animais, amigos e bebês para ouvirem e participarem de suas histórias, para junto a eles serem importantes e aumentar, assim, a própria importância, juntávamos objetos pois tínhamos essa idéia muito clara, que não deve ser confundida com um mero espírito ecológico, da responsabilidade de nós, homens, para com eles _podíamos tentar nos enganar, mas cada lata de alumínio tinha em seu DNA existencial a força, a dedicação e o tempo humano, não muito estranho, formalmente, a qualquer filho; eu não seria o primeiro a olhar uma fornalha siderúrgica, prateada e vomitando fagulhas, e ver nela um útero industrial.

As mães não se sentiam muito à vontade com aquelas peças sujas a forrar nossos aposentos classe média baixa, como se diz. Não que houvesse briga ou discussão, mas apenas uma frase, largada em uma tarde de domingo ou após o escovar de dentes de manhã, pronunciada quando entravam ali. Se bem me lembro, a genitora de Pedro era a mais persistente nesse quesito. Sabe, filho, é natural para mim hoje pensar nela e ter a certeza que já está morta, ainda que não tenha ido a seu enterro. Seu rosto, desde quando era ainda uma mulher que mal havia chego à meia idade, tinha as bochechas estriadas e encovadas, seios inexistentes e todo o corpo recoberto por uma pele excessiva, cinza e curiosamente pendurada nos músculos dos braços e do queixo, sempre balançando-se levemente, talvez intencionalmente tentando se despregar de uma hospedeira pouco promissora. Trabalhava como organizadora assistente de eventos de uma empresa que beneficiava algodão, e não raro levava para casa os restos de sua jornada _copos de papelão, crachás de proeminentes pessoas do setor algodoeiro, facas, garfos e pratos de plástico, grandes cartazes povoados pelas assustadoras imagens do mascote da Golden Cotton, sua empresa, uma nuvem ou floco de algodão de olhos enormes, pernas azuis e sapatos parecidos com feijões. Normalmente ao lado dessas ilustrações havia um balão com falas sobre um encontro do setor algodoeiro, ou o slogan da companhia, que já não me recordo qual era, em uma tentativa gráfica de nos dizer que o mascote não apenas existia como era capaz de se comunicar e, ainda mais aterrador, que ele gostaria de se comunicar comigo sobre um assunto que não era do meu interesse, o que sempre me levava a pensar que ele estava de fato escondendo algum outro objetivo mais escuso e perverso, que ele tinha comigo intenções não declaradas e, também por isso, necessariamente repugnantes. Seu nome era Jerônimo, tenho certeza, pois um dia a mãe do Pedro o pronunciou com incontido orgulho durante um jantar, enquanto comíamos algo congelado, após alguma tarde de andanças. Ela estava confidenciando um segredo industrial, uma palavra-código ou termo sagrado, algo que não deveria sair daquela cozinha por motivo nenhum, ou que, se saísse, nós dois estaríamos sujeitos a um castigo que nem ela tinha coragem de pronunciar. Lembro de ter olhado por alguns segundos para Pedro, buscando uma confirmação daquilo, mas ele tinha imergido na lasanha degelada, seu prato preferido.


Não posso reconstruir a cronologia daquelas tardes com precisão, mas o que restou em mim afirma, categoricamente, que, por mais que gostássemos de futebol, este esporte e seus problemas técnicos, táticos e mesmo morais eram apenas o prólogo para nossa grande conversa, aquela mais curta, repleta de poucas lembranças de tardes anteriores e que definiria para onde iríamos. Era assim: depois que nos sentíamos de alguma maneira apaziguados com as ligeiras ofensas mútuas, havia um momento de silêncio. Aquele vazio anterior ao que realmente interessa, voce sabe do que falo, filho, quando os barulhos que se dão em grandes cidades apresentam-se em seu mais profundo absurdo, a flutuar em nossas direções vindos de um entorno complexo, repleto de detalhes, os montes deles acontecendo ao mesmo tempo, nunca repetidos com exatidão, mas ainda assim a acontecer repetidamente, de maneira decisiva, longe de nosso olhar ou conhecimento completo, a nos lembrar que estamos perdendo muito, que algo deve ser feito. Então eu, sentado no sofá, dizia "E aí?" e Pedro retrucava "Massa..." e se levantava. Ele sempre se levantava, sem muito para onde ir, batia uma mão na outra, fazia que entraria na miúda cozinha, mas voltava e arqueava com força as sobrancelhas finas antes de comunicar nosso destino.

E, neste episódio que conto, quando cheguei carregando o saco com Verde dentro da jaqueta de náilon, Pedro olhou para o peixe deformado e naufragado no saco e soltou uma frase, uma conjunção de palavras banais das quais ainda hoje não posso me esquecer. "Vamos sair à noite." E eu tive a súbita certeza que nós iríamos enterrar Verde em um lugar abandonado e que era isso o que Pedro queria dizer, ainda que não houvesse dito, e que seria desnecessário para mim confirmar o que significavam as palavras, pois se eu perguntasse a ele porque afinal sairíamos à noite, o estaria repetindo como os malucos repetem frases sem sentido.

A imagem que me vem à cabeça quando penso em Pedro foi forjada nessa tarde de junho de 2007, na sala de seu apartamento, ele de pé com o saquinho plástico nas mãos pequenas e alongadas que tinha, partes de uma criança muito pouco crescida para a sua idade, menor do que eu ou do que você hoje, cabelos grossos levemente encaracolados caídos nos ombros e uma expressão anormalmente séria em seu rosto oval ainda infantil; o dono de uma boca que assemelhava-se a um rasgo, de um nariz quase imperceptível, de um corpo frágil e esbranquiçado como o de uma pequena lagartixa, com olhos circulares e negros. Ele estava parado ao lado do som e dos vinis, mirando o saco, apertando-o, sentindo seu peso ou sua textura plástica, como se fosse capaz de extrair prazer disso.

-A gente pode sair agora e esperar chegar a noite e daí ir até lá, sem sua mãe saber.

-Mas ir aonde?, perguntei.

-Ah, tá... hm, tava pensando em sair pela Cônego, entrar no metrô, descer lá na Joana d'Arc e andar até chegar àquele supermercado, aquele grandão mesmo, que deixaram pela metade, que não terminaram de construir. Nem sei como é o nome do bairro...

-O Blaster? _perguntei, pronunciando a palavra "Blaster" como uma criança pronuncia qualquer palavra em língua estrangeira, quero dizer, sem nenhum acento diferente do que haveria se a palavra fosse escrita e dita em nossa própria língua, tal um mal
entendido desimportante.

-Isso, mano, o Blaster_ele dizia, apertando mais e mais o plástico, puxando seus bicos, testando sua elasticidade, quase fazendo a água derramar. "Sim, cara, é isso mesmo", disse. "Esse lugar é longe, né? Porque tem que ser muito longe, a gente tem que levar ele o mais longe possível, mas tem que ser num lugar que não é só longe, sabe? Tem que ser num lugar muito longe e muito grande, um lugarzão que a gente possa se perder lá dentro, coisa do tipo... Um lugar em que a gente desaparece de tão grande que ele é, sabe?, porque... Tipo, você não acha que ele merece isso, desaparecer?"

O peixe não era um assunto nosso. Pedro o conhecia das vezes em que esteve em nossa casa, dos momentos em que passou observando meus aquários, quando eu ia até a sala falar algo com minha mãe, talvez quando eu estivesse no banheiro. Embora nunca o tivesse visto percebendo Verde como eu o percebia, tinha essa fantasia de que Pedro também o entendesse, escondido, tal um segredo conhecido por ambos mas nunca desvelado por nenhum dos lados. Após uma noite muito agitada do animal, não pude mais suportar e relatei minhas opiniões sobre Verde a ele, dei a entender essa teoria que já lhe expliquei, esperando que ele, Pedro, me contivesse a qualquer momento para dar sua própria explicação, como era comum que fizesse. Mas Pedro não me interrompeu. Ele continuou a ouvir, tal não tivesse opinião nenhuma e precisasse de mim para compreender melhor o que era aquele peixe. "Nada mais nada menos do que um peixe muito estranho", eu lembro ter dito a ele, e enquanto me ouvia falar, seus os olhos se fechavam, não da mesma maneira que alguém com sono faz, mas da mesma maneira que alguém muito interessado faz, tal quisesse enxergar melhor o que eu dizia, como se captar melhor o que alguém pensa fosse um ato visual. Ele ficou parado e foi escondendo seus olhos, apenas me ouvindo e quando terminei, possivelmente no momento em que dizia que Verde era um animal muito solitário, onde minha teoria pôde parar, de onde nunca evoluí por toda a minha adolescência, Pedro esperou um momento, um momento muito pequeno mesmo, estávamos no estacionamento subterrâneo do prédio, sob uma luz azulada, posso lembrar, umas partículas ridículas flutando por todo o ar, provindas possivelmente de alguma das infindáveis obras nunca acabadas daquele lugar, negras e brilhando mesmo assim, e ele me disse, quando terminei, com uma mão em meu ombro: "Isso é muito legal". Ele usava um tom de voz solene que remetia a filmes de cavaleiros e de cavalos, eu lembro que ouvi o que Pedro estava dizendo e pude vislumbrar nós dois num campo de grama, com nossos cavalos todos paramentados ou vestidos de dourado e verde escuro, e ele, meu mestre, reconhecendo em mim seu justo herdeiro. Começamos a andar intuitivamente e em silêncio pelo estacionamento, cada um com as mãos entrelaçadas nas costas e de cabeças baixas, dando voltas como as que eu relatei que Verde dava pelo aquário, cercados por paredes trovejadas de canos de descarga e gás domiciliar. Nesse silêncio, pensei que que a história de meus pensamentos sobre Verde tinha-no de fato instigado, e que isso nunca havia ocorrido antes, e era por ser um ato inédito, por nunca ter visto isso acontecer, que não entendi por completo o que havia ocorrido de súbito, como quando testemunhamos pela primeira vez um grande acidente, um capotamento inacreditável, no qual o carro voa metro acima do solo e, ao cair, produz ruídos dos quais é possível distinguir com perfeição os barulhos horrorosos do aço e do concreto se batendo, e imaginamos que aquilo seja encenado, pois muito mais fantástico do que qualquer filme. E quando Pedro afirmou depois que Verde merecia desaparecer, simplesmente deixar de estar aqui, com a voz ridícula que toda pessoa tem aos 11 ou 12 anos, foi uma espécie de continuação do filme que vimos e no qual atuamos naquela tarde no estacionamento subterrâneo. Pedro falava como eu tantas vezes falei a ele.


-Sim, Pedro. Ele merece desaparecer, disse devagar, a voz quase falhando.

-Vamos fazer assim, então. Esperamos as mães dormirem, pegamos as chaves e saímos. Mas você tem que ter cuidado, não pode assustar ela, não pode fazer barulho. Sabe como fazer isso, sair sem fazer barulho?


Aquela tarde e o início daquela noite foram banidas de minha memória quase que por completo, não fosse essa foto, essa fotografia mental que tenho de eu, seu pai, sentado no chão e remexendo no entulho que havia em meu quarto, tirando tesouras, garrafas pet de dois litros e jornais velhos de cima de um cartaz amarelado anunciando o lançamento do Blaster. Havíamos encontrado aquilo em um dos terrenos visitados e nos surpreendemos com o ano do lançamento malfadado, coloquemos assim. O Blaster, "o maior supermercado de todo o mundo", deveria ter começado a funcionar em 1984, e era obra de uma construtora chamada G.M.A.P, ou só GMAP, um barulho estranho quando dito em voz alta, cujo logo era uma coruja piscando no "P" de GMAP. As letras estavam formatadas como uma coruja, esse animal que nunca vi em lugar algum, e essa coruja, a Coruja GMAP, era alongada, suas penas estavam desenhadas em locais improváveis, com traços toscos, seus olhos lúgubres colocavam-se em letras diferentes. Era tremendamente feia. Não só o lançamento tinha sido um fracasso, como o seu plano de mídia também, pensei, e me parecia francamente impossível que aquele símbolo levasse quem o olhasse a uma sensação de segurança, grandeza ou vontade de consumo, pelo contrário, tudo levava a crer que os autores de tal obscenidade eram despreparados e desatentos aos detalhes, e a Coruja GMAP, o arauto do vergonhoso fracasso em que tudo aquilo terminou. Nessa fotografia mental olho por muito tempo esse cartaz, com as pernas cruzadas sobre o assoalho de pedra fria de meu quarto, e tento com força adivinhar sua mensagem, por assim dizer, o mistério que o retângulo de papel plastificado encerrava. Havia a palavra Blaster centralizada, como o logotipo de uma nave espacial, suas letras prateadas, arredondadas e estufadas, ligeiramente caída para a esquerda ou subindo tal um foguete para a direita, deixando um rastro de traços que queriam nos dizer que estava em alta velocidade. Abaixo dela, uma ilustração em três dimensões, feita à mão, da fachada do supermercado, de como ele deveria ser se tivesse sido terminado e trazido consigo, à área onde estava, todo o crescimento e prosperidade econômica que a própria imagem prometia. Nela, havia uma grande caixa prateada com outras pequenas caixas saindo dessa principal, toda perfurada por vidraças em forma de semi-círculos, e ao lado direito um estacionamento infindável, cujos limites não estavam claros. Por toda parte, andavam homens e mulheres padrões, vestindo ternos, gravatas e tailleurs, e também crianças, acompanhadas por homens de bonés e por mulheres e cachorros, formando famílias padrões. Todos como fantasmas aprisionados. Afastei o cartaz de meus olhos, olhei de novo para a corujinha GMAP, lembrei-me de Jerônimo e imaginei se ambos não pertenciam ao mesmo plano de existência, tão específico e tão triste.

Por volta da onze horas, pude perceber que nenhum ruído surgia do quarto de mamãe. Com Verde no saquinho, já paramentado, esgueirei-me até a cozinha, mexi ligeiro em sua bolsa e abri a porta, com o cuidado de deixar as chaves do lado de dentro. Pedro me esperava fora da prédio, fitando o viaduto de onde nossa apertada rua saía, distraído. Cumprimentamo-nos com um meneio de cabeça, silenciosos, e partimos. Andava rápido, o saquinho balançando ruidosamente na mão, um pré-adolescente caminhando na noite paulistana, deixando para trás não apenas sua casa e proibições, mas também um mudo e profundo medo de repentinamente se perder, de ficar preso a um mundo novo, falso e atraente. Era essa a sensação, filho, e até hoje me maravilho, desconfiado com a capacidade de pequenos momentos concentrarem tantos significados, de uma simples caminhada na rua possuir tão poderosos resultados. Era isso possível ou essas encruzilhadas, nascidas nas mais despropositadas situações, são criadas posteriormente, apenas para que possamos justificar, organizar e dar significado lógico às veredas que por fim acabamos trilhando, para que de nossos destinos não tenhamos o mais absoluto horror? Teríamos essa compulsão de tornar o que chamamos de "estar vivo" sempre uma narrativa? Com personagens principais e secundários, pontos de tensão e relaxamento, viradas calculadas, causas e consequências? Ou essa nomeação incessante é o único caminho e a sua negação uma espécie de explosão desapaixonada e vazia? Perguntas antigas. Sei, ou hoje imagino, que eu me sentia naquela noite navegando uma das principais "causas" que já tinha conhecido, talvez a primeira e a única, de fato andando sobre essa causa, materializando-a nas calçadas, em meus passos pesados, no suor escorrendo pelas minhas costas, nas luzes borradas, nos barulhos mecânicos amortizados pelas distâncias. Não era uma idéia, uma palavra. Era meu corpo e os objetos, o mundo que surgia conforme caminhávamos, subitamente destituído de sua função comum. Podia sentir de maneira anormal como meus músculos se retesavam, os latidos sofridos de um cão que não via, olhava com assombro qualquer construção tal elas fossem esfinges. O ar que eu rasgava e a força que utilizava, minha respiração e esse algo indefinível que é a visão em movimento, cada um desses elementos estava carregado de uma pequena fração causal, posso dizer, de gatilhos invisíveis que me impulsionavam à frente no exato momento em que os tocava. E a soma de todas essas irupções, ocorridas no escuro da minha mente e, mais importante, no escuro do que me guiava, era a própria Causa, cujos efeitos começariam a ser vigentes quando estivéssemos de volta para casa. Disso tinha consciência.

Seguia Pedro, ombro a ombro, sem olhar em seus olhos, seguia o caminho que meu duplo abria à frente. Saímos do viaduto, subimos pela Cônego até o antigo Teatro Municipal, hoje já demolido, cruzamos sua praça, caímos nas pequenas ruas que chamávamos de Teatro Baixo, todas em leve descida rumo à Estação Bolaños, e durante esse trajeto não cruzamos com ninguém. Apenas eu, Pedro e o peixe morto, uma coisa irreal, uma peça absurda. Conforme eu andava e não encontrava nem sequer uma sombra ao longe, mesmo um carro ronronando, aumentava minha angústia sobre a importância de nossa caminhada. É algo encenado, pensei, todos abrem caminho para nossa caminhada, pensei, quão dispendioso foi tornar isso possível, e apenas para enterrarmos Verde, para que possam observar-nos de dentro de suas casas, ver com ansiedade os resultados de nossas passadas.

A Bolaños era uma das mais bonitas à época, ainda não haviam construído o horrível Quadrado do Comércio à sua volta, cujos usuários alguns anos depois acabaram por englobar e emporcalhar a entrada modernista da estação, que imitava um longo canudo secccionado, riscado por espirais vermelhas e brancas, feito de concreto e vidro, projetando-se de dentro da terra e convidando os passantes a escorregar dezenas de metros em direção ao subsolo, sob o ruído confortável de sua vertiginosa escada rolante. No vale onde estava, ladeada de edifícios grossos e respeitáveis, o sol não chegava. Era só durante a noite que a arte de seu criador mostrava-se plena, quando os canhões de luz que já haviam substituído as luminárias do centro apontavam para ela e seus veios vermelhos e brancos criavam vida e projetavam sobre as paredes internas ecos coloridos de luz, impregnando o ambiente com suas espirais e jogando as pessoas em uma sensação de alarme e estranho amparo, tornando-as seguras de bombardeios fantasiosos e de suas sirenes visuais. Era estupendo. Uma vez dentro da Bolaños noturna, convidativa e uterina, pensava-se no tempo em que populações inteiras corriam para debaixo da terra buscando algum tipo de mísera proteção do mundo externo e da história. De repente, estávamos no caleidoscópio da Bolaños, aliviados, separados por alguns degraus, Pedro abaixo e sem me dirigir o olhar. Ainda antes de pegar o trem, com o corpo cortado por faixas vermelhas e brancas, em aparente situação de perigo, de expressão tão calma, ele pediu o saco, sem nada falar, apenas estendendo as mãos.

Foi uma transação rápida até nossa chegada à Estação Joana d'Arc, uma viagem desperta, na qual me limitei a olhar pela janela parte de meu reflexo e parte do muro da escavação por onde passávamos. Me lembro de como meus olhos eram atravessados pelo que havia além do vidro. A imagem de mim mesmo amalgamando-se com os tubos de fios elétricos, as manchas e os buracos imcompreensíveis que apareciam e deixavam-me em poucos segundos. Eu parte daquilo e aquilo parte de mim; uma mesclagem de coisas. O estrépito tímido das rodas raspando o metal e o sacolejar seco da fibra de vidro. Vozes eletrificadas pelas caixas de som e destino. Estávamos em banco separados e continuamos calados, como costumávamos ficar em nossas andanças diurnas. Pedro tinha uma alegria contida. Sorria e mirava o chão com olhos absortos e vazados. Lembro de ter pensado que estava tudo bem.

Descemos na Joana d'Arc e rapidamente estavamos na superfície de novo. Paramos, olhei em volta e me dei conta de que não sabia onde estava, que nunca havia estado naquele lugar. Era como a cidade que eu conhecia, saturada de sinais, mas obliterada. Havia um céu metalizado, entre o azul e o vermelho, quase roxo, com falhas descomunais escurecidas diluindo-se em direção ao norte. Os prédios de poucos andares com longas janelas de madeira estavam ainda mais sujos que os do centro, cheios de uma sujeira tão velha quanto eles, e as placas publicitárias, apagadas durante aquela noite, pareciam em branco ou repletas de letras intraduzíveis, dirigindo-se a consumidores inexistentes. As construções, casas de comércio misturadas com as habitadas por televisores ligados, espremiam-se a menos de um metro da rua. Juntas, assemelhavam-se a um retângulo, um bolo construído e dividido em partes igualmente apertadas, entortando conforme a rua se curvava e desaparecia do olhar. Em algumas delas, havia um carro novo e caro que mal cabia na garagem descoberta. Estávamos num largo cimentado e por ele pessoas se espalhavam, paralisadas. Um pipoqueiro logo à frente debruçava-se com lentidão doentia ao vidro de seu carrinho, turvo pela luz amarela do lampião pendurado. Um homem e uma mulher sentavam-se em bancos à volta de uma mesa de concreto na qual um tabuleiro quadriculado havia sido pintado. Uma criança, em um balanço, gritava à alguém. E um homem, de barba crescida e com uma coroa de cabelos na cabeça, estava encostado na única árvore que podíamos ver. Manipulava um livro muito grande, uma lista telefônica. Afora o grito do menino, não se ouvia nada que não o ruminar longínquo de uma máquina difícil de identificar, que parecia criar um sopro mecânico, um chiado de ar correndo entre nós e os objetos, interrompido por vezes como que por um enguiço de engrenagem. Respirei fundo e não havia cheiro algum. Minhã mãe já tinha dado pelo meu sumiço?

-Você está ouvindo o vento?, disse.

-Vento?

-É, tem um vento... tipo de um ventilador, um bem grande.

-Sei lá, não tô ouvindo nada. Acho que não tem vento nenhum.

-Não?

-Não, ele respondeu, e houve uma pausa.

-E é aqui?, continuei. Pra onde a gente vai?

-Não tenho certeza. Cadê o endereço?

Vasculhei o bolso do jeans em busca de qualquer coisa parecida com um papel amassado. "Rua Sebastião de Melo, 1982", disse. Ele me olhou e inclinou o rosto levemente, como se não tivesse entendido. Repeti o nome da rua.

-Não, eu entendi, ele disse.

-O que é então?

-Nada...

-Ah...

-É... acho que esse era o nome do meu pai, mano. Sebastião de Melo.

-Você sabe o nome do seu pai?

-Não é que eu sei, tipo... sabe, sei lá... eu às vezes mexo nas coisas lá em casa.

-Ah...

-É... _e percebi imediatamente que estava tocando em um assunto que era estranho a nós dois, como dupla, como equipe. Mesmo as crianças sabem muito bem dissimular pensamentos, filho, mesmo elas. Acredito que por toda nossa amizade, eu e Pedro sempre pensamos em quem era o pai do outro, e como isso havia acontecido _nosso abandono. Pois não éramos filhos de mães divorciadas, éramos filhos de mães abandonadas. Mas em nenhum momento tínhamos falado disso. Não posso dizer que era um tabu, aliás eu nem saberia lhe explicar qual a diferença entre um tabu e um assunto que nos envergonha, simplesmente. Só que desse segredo não nos era permitido dizer nada, tal era sua extensão, como a morte é para crianças muito pequenas.

-Mas _continou ele_, ah... então... é... isso nem quer dizer nada. Tá, é o mesmo nome do cara que é meu pai. Mas e daí? Não quer dizer nada. Qualquer rua pode ter qualquer nome, o do meu pai até, quer dizer, sei lá se o meu pai tem esse nome mesmo, não tem nada a ver com esse Sebastião aí, meu pai era um cara fodido pra caralho na vida, mano.


Observava-o, mas me retraía. Pedro pôs-se a andar, de repente ele sabia a direção, e continou falando. Uma barreira de segurança havia se rompido, uma lembrança e uma permissividade tinham vindo à tona com aquele nome, Sebastião Melo, duas palavras, elementos que de súbito passaram a existir e a criar em Pedro uma vontade de confissão, filho. Ele gesticulava e aumentava o tom de sua voz, sem me olhar. Seguindo o bolo recortado pelas casas e comércios, andávamos pela calçada e observei um pássaro empoleirado sobre o muro, um papagaio que nos acompanhava com apenas um dos olhos conforme íamos descendo a ruela maltrada e repleta de postes e de fios, onde caudas das pipas retalhadas tremulavam com o que parecia a chegada de uma chuva fina distante.

-Meu pai era um cara foda, mano, minha mãe dizia que ele era um maluco, que ele pirou total quando eu nasci. Ninguém pira assim com nada, saca?, tipo, as pessoas são sempre malucas e só ficam mais malucas com o tempo. Hoje tem uns remédios, né? Mas meu pai era pobre, mais pobre que minha mãe, ele mexia com borracharia, parece que até teve uma borracharia uma época, quando conheceu a minha mãe. Ela dizia que... sei lá, que ele adorava ficar no lugar lá, sujão, cheio de graxa, acho que era na Duque a parada, que ele tinha uma coisa muito forte com os pneus que ele colocava numa banheira velha pra ver se estavam furados. Que um dia ela chegou lá, grávida, tá ligado?, e todos os pneus estavam dentro da banheira com a água suja, sujona. E ele ficou dizendo que estava afogando os pneus, hahaha. Você acha, cara, afogar pneus? Sei lá... Acho que gostaria de ter conhecido ele, porque a gente também tem essas manias, né? Tipo, eu e você. Mas acho que mais eu do que você. Porra, não to dizendo que eu gosto de afogar pneus, haha, mas é que às vezes... eu olhos pras coisas, tipo qualquer coisa, mas tem que ser coisas, coisas mesmo, e fico pensando sobre elas. Acho que é isso o mais legal de quando a gente vai pra esses lugares, tipo esse aqui, eu lembro de que... não sei, nada está morto, manja? Tem que ter alguma parada nessas coisas, tipo um sentimento mesmo, não sei. Por que elas tão na nossa vida, tem muito mais coisas do que pessoas no mundo, e o mundo é tudo, não é? E nesses terrenos só tem coisas, e as coisas estão juntas, e elas tão lá, estão juntas, sabe, e ao mesmo tempo sozinhas. Como tem gente que fica assim. Tudo o que existe é tipo vivo, mano, é isso que não sai da minha cabeça. Tipo aqueles filmes em que os máquinas da casa ficam doidas, saem andando sozinhas. Eu não tenho medo, nenhum. Porque a gente tem que entender essas coisas. Elas ficam o tempo todo dormindo, eu acho, elas só ficam dormindo, de boa, tá ligado? Só que a gente não consegue entender isso, a gente acha que porque a gente comprou elas, a gente entende elas, e, tipo... não entende nada. Daí, quando elas acordam, a gente morre de medo. Mas elas só tão acordando! Então, mas o meu pai, esse Tião, o Sebastião, minha mãe disse que ele começou a ter umas nóias quando me viu, que ele já era bem maluco quando minha mãe engravidou dele, mas ela dizia que isso era legal, que ele enchia a cabeça dela com umas frases estranhas, ela me disse que eles tavam vendo televisão e ele ficava dizendo que, tipo, o cara da TV não era quem ele era, que ele era uma outra pessoa, que ele estava usando uma fantasia, umas máscaras, sei lá, e que na verdade quem tava na TV era, tipo, a mãe dele, o pai dele, que a família dele vivia dentro da TV, mas fingindo que eram esses apresentadores e pans, só pra atormentar ele, enganar ele. Ela me disse que isso era super-engraçado, que vivia dando risada dessas paradas que ele dizia e que só depois de um tempo começou a ficar estranha a coisa, porque era de verdade, cara. O Tião, o meu pai, ele tinha várias merdas desse tipo na cabeça. Olhava pra uma coisa e achava que era outra. Mas não é que ele só achava, ele tinha certeza, haha. Então, mas daí eu nasci, sei lá, estranho dizer isso. E ele tava no hospital e tal e ele me viu e ele disse que eu não era filho dele, ele só ficava dizendo "Esse não é o meu filho, isso nao é o meu filho, essa coisa não é o meu filho". Daí já viu. Minha mãe pirou junto, começou a chorar, saiu direto do hospital pra casa da minha vó, tipo novela. Só que ele no começo não dizia porque ele achava que eu não era o filho dele, ele só dizia "Isso não é meu filho", tipo, ele não dizia "Ele não é meu filho" ou "Esse não é meu filho", ele começou a dizer "Isso não é meu filho, essa coisa não é meu filho". E meio que sumiu no mundo. Minha mãe dizia, tá ligado, que nunca tinha transado com nenhum outro homem, que o Tião tinha sido o primeiro dela, sei lá se isso é verdade, mas é que ficava parecendo que ela tinha chifrado ele com um outro, pelo o que ele dizia, que meu pai era outro cara, e isso não era verdade. Foi o que doía mais pra ela. Daí um dia, eu já devia ter uns dois meses, e meu pai apareceu na casa da minha vó, porcão, fedendo a pinga, o cabelo todo encarapitado da sujeira da rua. Tipo um mendigo, ta ligado?, esses caras que ficam na rua enchendo a cara o dia inteiro e batendo punheta na frente de todo mundo, xingando quem passa, sei lá também. E daí ele começou a dizer que queria ver minha mãe, mó situação, tá ligado?, e minha vó dizendo que não, que não, mas minha mãe apareceu comigo no braço e ele explicou que eu não era uma criança, haha, mas que eu era um objeto, saca? Que eu era uma coisa. E minha mãe disse pra mim que a cara dele tava nojenta mesmo, toda inchada, que não parecia ele, que era outra pessoa, mas com as mesmas idéias, tá ligado? E ele disse pra ela que ela tinha parido uma coisa morta, um pedaço de plástico, que quem tinha engravidado ela não era um homem, ou vários homens, que ela tinha engravidado da cidade inteira, e ele tava dizendo isso, tipo, não como se fossem todos os homens da cidade, mas como se a cidade fosse um homem, haha, e esse homem, a cidade,é que tinha trepado com a minha mãe e engravidado ela, mas de um objeto, eu, sabe?, uma coisa que ia crescer mas que seria sempre um objeto, uma coisa. Foi isso que o Tião, meu pai, falou pra ela. E depois ele sumiu, foi por aí, morreu, sei lá.

-Tô ligado, repliquei. Em nenhum momento trocamos olhares enquanto ele falava, como se ouvíssemos uma voz alheia a nós dois. A história toda me fascinou, e o que mais me lembro até hoje é das risadas que ele soltava no meio de sua fala, como elas eram verdadeiras, começos de gargalhadas não realizadas. Senti que não era meu direito comentar.

Quando por fim ele e eu nos calamos, nos vimos na mesma rua, que por todo o tempo estivera apenas a descer e a fazer uma longuíssima curva, um caracol que não entendíamos por completo. Procurei por uma placa, mas meu amigo insistia que estávamos na rua certa, mesmo sem conseguir me explicar porque estávamos na rua certa, já que há pouco ele mesmo não sabia como chegar ao Blaster. Estávamos parados, cercados de casas de luzes apagadas, já devia passar da uma da manhã daquela terça-feira de junho de 2007. Olhamos ao redor e o segui por um corredor entre dois muros altos, cheio de mato e latas de tinta amassadas, mal cabia uma pessoa. Ao fim dele, o terreno e a ruína de uma construção nos esperavam, sombras gigantescas à distância, iluminadas pelo o que havia fora dali. Caminhamos lentamente, sem saber no que pisávamos, esperando nossos olhos se acostumarem com a escuridão. Entendi que estávamos no estacionamento, ainda com as marcas das vagas no chão cheio de rachaduras, entre as quais fortes plantas com flores, se bem me lembro, cresciam já altas. Ao longe, uma longa e extensa parede, filho, com as mesmas janelas semi-circulares que vi no cartaz, mas sem mulheres, homens, crianças, cachorros e famílias. Delas, um tênue ar amarelo refulgia, e me pareceu então, caminhando silencioso com Pedro pelo maior terreno abandonado que já havíamos conhecido, que não havia teto para aquele muro. Ele está erguido, mas não há sentido pra isso, pensei, ele não protege, suporta ou arquiteta nada. Demoramos ao menos dez minutos para atravessar o plano aberto, parte de uma ilha que havia sido tomada e englobada, mas não digerida, pelo crescimento do que havia em volta. Passamos por um carro velho, cheio de terra esparramada por uma porta aberta; pelo esqueleto do que parecia um caixa-eletrônico; por postes de luz amassados ou caídos; por manequins deitados, caixas-de-papelão da altura de pessoas, um trator antigo, orelhões esverdeados, lâminas de madeira empilhadas e encimadas por uma privada e por uma quantidade considerável de lixo doméstico. Tudo delimitado por muros, com entradas semelhantes à que usamos. Imaginei quem os havia construído, se a G.M.A.P ou a prefeitura ou os moradores, quem queria se isolar de quem. No chão, pequenos objetos eram esmagados por nossos pés. Chegando à parede, ambos a tocamos quase simultaneamente, tateando para melhor compreender o que havíamos visto de longe. Sua pintura, descascada, dava lugar a um cimento ainda quente, depositório do calor do dia. Nos esgueiramos por ela, em direção à entrada, tropecei no que reconheci serem os restos mortais de algum animal e me apressei a pisar onde Pedro, que tinha Verde em mãos, pisava, a literalmente seguir seus passos com todo o cuidado possível, tendo certeza de que só assim estaria seguro.

No que parecia a frente do lugar, por onde espalhavam-se o que eu achava serem roupas infantis e embalagens plásticas indefiníveis, a iluminação exterior, quem sabe do luar e das ruas vizinhas, chegava plenamente e se espelhava em uma placa de metal sobre a qual caberiam dezenas de carros enfileirados, supostamente caída do pórtico. Sobre seu pó acreditei ver desenhada uma versão manual da terrível imagem da Coruja Gmap, ou assim entendi então. Havia também as marcas e furos dos desaparecidos parafusos que seguravam as desaparecidas letras de alumínio, provavelmente as que diziam "Blaster - O Maior Supermercado de Todo o Mundo", mas era impossível saber com certeza se era isso o que antes estava dito, mesmo se aquilo havia caído do pórtico ou sido levada até ali. Possivelmente haviam sido roubadas, as letras, assim como os parafusos, carregadas por descobridores anteriores a nós. Pedro subiu sobre essa placa, e, parecendo ainda mais pequeno, balançou levemente, jogando seu peso para baixo e produzindo um ruído de duas coisas duras raspando, e esse ruído viajou e voltou na forma do eco de algo vivo. Atrás dele, podia ver a entrada da ruína, sem telhado, apenas quatro paredes altíssimas, esburacadas, expostas, nuas, miseráveis, dignas de piedade, que se estendiam em direção à escuridão total. Ele pulou da placa e entrou. Caminhamos no início por um corredor com lojas de vidraças despedaças, os cacos se misturando com objetos enegrecidos no chão. Em uma delas, uma larga estante com caixinhas apoiava-se desesperada sobre o vidro intacto, tal tivesse tentado por anos fugir dali, sem sucesso. Ao chegar no galpão, percebemos, eu e Pedro, ao mesmo tempo, que o lugar não era tão grande quanto gostaríamos que fosse. Um supermercado é apenas um galpão grande, filho, e era aquilo que víamos ou acreditávamos ver, com a luz que a noite proporcionava. Intermináveis pilastras grossas e lisas, sem qualquer tipo de adornos, saím do chão e não alcançavam nada, longas filas delas, mais pedaços de papelão e de isopor. O vento artificial que ouvira antes ali corria com toda a força, soprando uma poeira sobre nossos rostos. Mais do que memórias desimportantes ou coisas a serem colecionadas e revividas, recebíamos essa poeira, inodora, que se colava em nossas pupilas. Apenas ela. Lembro de ter pensado que, se aquilo um dia fora o projeto do maior supermercado já construído, em 1984 o mundo era muito menor do que em 2007.

-Espera aqui, Pedro disse, quando a luz já rareava ali dentro.

-Por que?

-Espera aí que eu te chamo se tiver alguma coisa, disse, e me deu o saco com Verde.

Ele desapareceu à minha frente, e a partir da quinta ou sexta fila de colunas pude apenas ouvir seus passos calmos chocando-se contra alguma poça de chuva que não havia percebido existir. Vi-me sozinho, cercado pelos sons das televisões, de onde pessoas grunhiam ruídos elétricos e plasmados, não identificáveis, e pelo vento, como que canalizado por uma grande estrutura que eu não podia ver, miraculosamente ainda funcionando depois de tantos anos de abandono. Uma imagem plantou-se em mim: Pedro caminhava sozinho e cego rumo ao grande ventilador, às suas pás afiadas e submersas na falta de luz. Era uma espécie de armadilha ocasional. Ele estaria caminhando e o barulho aumentaria gradativamente e, sem que meu amigo fosse sequer capaz de imaginar o que tivesse ocorrido, uma dessas pás o feriria gravemente, e logo depois, ainda sem entender o que saído do escuro o atingiu, sangrando e provavelmente já amputado no chão sujo há decadas, em milésimos de segundos outra pá o encontraria, dessa vez de maneira mortal, e mesmo morto, seu cadáver continuaria a ser cortado em fatias cada vez menores por essas lâminas grandes como armas de gigantes, tornando-se por fim um emaranhado de carnes e vísceras que escorregariam lentamente até o motor invísivel da engrenagem, paralisando-o por fim, após tanta energia gasta sem motivo algum, juntando-se às ruínas. E quando algum barulho estranho irrompesse no galpão onde eu esperava por Pedro, um engasgo talvez, e o ar sujo parasse de ser empurrado em minha direção, então eu estaria de fato sozinho. E gritaria por Pedro por horas, ouvindo a minha própria voz e as programações televisivas da madrugada, sinais de vida próxima, mas inalcançável.

Pedro parou, percebi depois de alguns minutos, e uma luz fraca e difusa acendeu-se muitos metros além, sem iluminar nada reconhecível. Ouvi sua voz, mas não era a mim que ela se dirigia. Falava baixo, e havia também outra voz, em uma conversação tão incompreensível quanto as saídas das TVs da vizinhança. Não consegui distinguir se eram cumprimentos, reconhecimentos ou uma discussão. Só algo que defini como vozes humanas surgindo de maneira intercalada. Achei ter ouvido meu nome duas vezes, e quase comecei a caminhar, mas me mantive parado, esperando o terceiro chamado que só veio após um silêncio. Era Pedro que dizia meu nome? Como podia ter certeza de ter ouvido meu nome? Ou como poderia saber que aquilo era produzido por pessoas?, perguntava-me enquanto caminhava na escuridão, com os braços estendidos à frente, tateando as pilastras. A luz vinha de um cômodo nos fundos do galpão, notei, e o que agora era visível estava completamente vazio. "Pedro?", disse, muito baixo, e depois de novo, "Pedro?", me esforçando para gritar, sem conseguir. "Aqui", ele disse, também com a voz muito baixa, e pude suspirar. Fui até a porta entreaberta, tão grossa como a de um freezer, e dentro dali Pedro, de pé, observava minha chegada, todo o facho de luz concentrado sobre sua cabeça esbranquiçada, que flutuava na escuridão e parecia separada de sua pessoa. Demorou algum tempo até eu perceber que a luz vinha de uma lanterna, manejada pelo o que se assemelhava a um homem deitado a seus pés.

-Ele mora aqui, mano, afirmou Pedro, e, tal uma encenação, o pequeno holofote foi parar no rosto do homem. Havia olhos, uma boca, um nariz, mas nunca mais, meu filho, fui capaz de me lembrar de algum traço característico dele. O que via à minha frente era uma máscara deformada por suas sombras, outra cabeça pendurada no nada, com uma peruca de cabelos tão pretos e encaracolados como os de Pedro.

-Quem é você?, disse a máscara, jogando a luz contra o meu rosto.

-Eu sou amigo dele.

-Que tipo de amigo?

-A gente veio enterrer meu peixe.

-Que peixe?

-Esse aqui, e exibi o saco invisível.

-Não tou vendo peixe.

-Esse aqui, e levei o saco até meu rosto, criando reflexos estranhos.

-Tem um peixe aí?

-Tem.

-Deixa eu ver, dá pra mim.

E antes que eu pudesse falar algo, Pedro veio em minha defesa.

-Calma, cara, a gente só veio enterrar ele. O nome dele é Verde. Aqui não é aquele lugar, o Blaster? Então...

-Não!, o homem gritou, aqui não é o Blaster não! Blaster? Isso aqui não é blaster nenhum.

-É sim, um super...

-Esse lugar é a minha casa, ele continuava gritando, eu construí esse lugar. Cada tijolo desse lugar fui eu quem construí, eu quem botei. O que vocês estão fazendo na minha casa?, afirmou, em um tom mais baixo, como se fosse uma pergunta verdadeira, e a lanterna saiu do rosto de Pedro e ficou largada no colo do homem deitado e percebi que ele vestia um terno colorido, vermelho ou rosa, e por toda a parte ele estava pontilhado por sujeira, talvez marcas de cigarro, e no bolso desse terno havia um lenço azul escuro e não pude deixar de fitar o lenço azul de seda, irretocável. "Essa é a minha casa, e vocês estraram na minha casa, essa é a casa do Tião, do Sebastião", voltou a gritar.

Ao dizer que ele se chamava Tião, Sebastião, olhei para onde achava que Pedro estava, sem saber se ele estava ali, sem poder observar a reação de seu rosto ao ouvir o nome de seu suposto pai enlouquecido e abandonado à própria sorte no mundo, com a mão direita tremendo, não de medo, ainda não tinha medo, Pedro estava ali, comigo, e não havia o que temer enquanto ele estivesse comigo, mas de excitação, de uma pavorosa excitação. Ah, meu filho, eu era tão novo. Acreditei que o que estava à minha frente era a confirmação de minha fantasia, sua transmutação em verdade: aquela era de fato nossa peregrinação mais importante, e aqueles meus passos logo que saí de casa tinham sido definitivos, e eles só foram possíveis pois um dia resolvemos andar por aí e visitar terrenos abandonados, hábito que agora tinha seu sentido final revelado, e eu era o dono daquela frase dita pelo homem, percebe, meu filho, é isso que entendi no momento, que a minha capacidade mental de pensar em uma história, de concatenar o mundo exterior em uma narrativa própria, foi o que a tornou possível. A vontade de fazer continuar o que eu mesmo havia criado me obrigou a perguntar, em voz clara e alta, confiante, séria:

-É o seu pai, Pedro?

-Pai? Que pai? Eu não sou pai de ninguém, o homem me interrompeu, voltando aos gritos, tão mais altos ali, no quase total silêncio, do que em qualquer outro lugar.

-Quê? Pirou, mano?, concordou Pedro, da escuridão. Meu pai, tá maluco? Meu pai...

E a luz voltou a ele, e Pedro endureceu como se o facho o machucasse. Sua expressão estava fechada, preparada para algo pior. E a luz rondou todo o meu amigo, voltou para seu rosto, tornou aos braços e pernas, finos e frágeis, o corpo de uma criança.

-Não... não... eu me enganei, afirmou o homem, quase rindo. Você é meu filho, sim. É, você é o meu filho. Que fugiu de casa. O meu filho.

-Cala a boca, tiozinho maluco. Não sou seu filho, não.

-É sim.

-Não! Eu não sou seu filho, tá ligado?!

-Você é o meu herdeiro, e veio se juntar ao pai. O homem falava e quase gargalhava, felicidade ou humor, impossível saber.

-Cala a boca!, disse Pedro, e ele falava duro como um homem fala com um animal, não havia nada de aterrador em seus olhos, apenas confiança e raiva. Pedro pôs-se então entre mim e o homem. Apertou minha mão e disse: "A gente acha outro lugar pro enterro", mas antes que pudéssemos sair, o homem segurou a perna de Pedro e a puxou para si e Pedro caiu e o homem jogou a lanterna sobre seu rosto e alisou seu cabelo. Meu amigo debatia-se, mas não conseguia se soltar do carinho daquele que se dizia seu pai.

Que estranho fim minha fantasia teve. Me virei e corri, filho, abandonando Pedro, batendo-me em pilastras, escorregando nas poças, saindo daquele bairro onde havíamos parado em nossa fantasia. Corria, e quando me cansava andava, mas não parei. Por todo o tempo estive a sonhar, em uma realidade abstrata, descolada da cidade que revia, de olhos abertos, claro, mas por inteiro atrelado à sensação de responsabilidade universal que sobre mim se abateu. Eu havia pensado em tudo, filho, era o criador involuntário da totalidade de coisas, pessoas e fatos. Isso explodia em mim, desapaixonadamente, e continuei correndo. Tinha sido o pai de Pedro, do homem, das ruínas; havia tornado possível aquele abraço horrendo do qual meu melhor amigo foi vítima. Acreditei entender que o único medo possível era o medo dessa minha propriedade, dos resultados monstruosos que a minha existência anterior trazia a ela. E cada um de nós carrega isso, não é?, o botão de fuga, a possibilidade de se evadir da própria história que construiu _ou será isso o que há de mais aterrador?

Cheguei em casa ao final da madrugada, imundo, machucado, meu conjunto de roupas preferido lavado em suor, imprestável, e não disse nada à minha mãe, que ainda dormia, nem à mãe de Pedro, dois andares abaixo. Coloquei Verde, morto, de volta em seu aquário e deixei-o ali o tempo necessário para que um dia se confundisse com os objetos submersos, e fosse esquecido. Houve um inquérito, creio, mais um menino desaparecido nesta cidade, sem presos ou suspeitos. Sumido como as coisas acumuladas em meu quarto que, no dia seguinte, joguei fora. Deixo as pessoas para trás, isso é um dado do meu caráter, filho. Pedro foi apenas o primeiro a criar em mim o temor absoluto daqueles que, mesmo sendo minha propriedade, mostram-me aquilo com o que não posso lidar, relembram a mim que há uma matéria escura flutuando, e que para ela escorregarei. Não chamo o que houve depois de mudança, não tenho certeza de haver um ponto inicial de onde saímos e para onde podemos voltar; não há plataforma de lançamento, apenas um fluxo contínuo. Eu não era de um jeito antes desse episódio e hoje sou de outro, apenas descobri alguns limites desse fluxo na noite em que o apaguei de minha narrativa. Quando receber essa carta, meu filho, e eu já não estiver aqui, não se esqueça de fazer isso comigo também.