Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, março 06, 2006

A Fogueira (1)

Das vias brota água. Vias de poeira e pedregulhos, secas, como as do deserto. Brota a água mais barrenta, ilhada entre as bordas dos buracos. Não chove há duas semanas, mas as cavidades que irrompem como feridas pelo trajeto estão como pequenos lagos de larvas. São milhares de buracos. Grandes e pequenos e ignorados. A lama beira os pés e o chinelo que deixam marcas entre as poças.

As vias são ladeadas por caminhos de grama verde e pedaços de madeira e folhas secas da cor da pele, mas uma pele mais rica em cor. Mais saudável. E os garotos procurando lenha precisam se equilibrar porque não querem pisar nos buracos, mas também porque dividem a atenção que devem à via com as guias. Passam por troncos pesados demais para carregar, galhos verdes demais para queimar. Quando encontram a lenha a vêem misturada com a sombra da noite e os braços apontam queimados do sol do dia que já se foi e todo movimento deixa um rastro sob a luz artificial dos postes de concreto e papel gasto. Um deles se aproxima de um tronco como quem é apresentado a um animal selvagem no Safári e se encolhe no banco do jeep enquanto o carro vai ao encontro do bicho que grunhe a uma distância suficiente para o som não se tornar assustador a ponto de acabar com qualquer chance de que o doméstico protegido e o selvagem acomodado se encontrem e descubram porque afinal devem estar juntos. Se devem. E o primeiro contato é feito com os pés. O tronco balança sem deixar sua posição. Os outros garotos formam um semi-círculo ao redor do objeto, como se um fogo frio e invisível o estivesse consumindo. Um deles segura um cigarro com a brasa viva no contato com o vento leve que, ainda assim, consegue quebrar a barreira das árvores e das casas. Está afastado. O joelho esquerdo flexionado, a mão esquerda sobre a coxa esquerda, posição que é cômoda por uns segundos, depois torna-se estranha, desnecessária.

Duas semanas sem chuva e parece que um temporal acaba de cair. É como aguardar em casa após a chuva que quase pôs tudo abaixo. Os gestos cuidadosos trazem a cortina para mais perto do corpo e o olho investiga o mundo lá fora - a chuva acabou, mas tudo é úmido agora. Só que não houve chuva, e, ainda assim, a via está úmida; e os garotos se esgueiram pelos micro-planaltos que se formam entre um lago de lama e outro catando a lenha que aparecer para fazer a fogueira e dançar a dança da chuva e descobrir se o fogo brota também.

O barulho do tronco caindo na areia da praia ecoa abafado pelo choque das ondas sobre a costa. A água toca as proximidades do tronco, mas perde força antes que possa encharcá-los e volta para o mar como se fosse um homem que escorrega lentamente de um penhasco deixando um rastro do seu sangue. Os dois garotos que o trouxeram sobre os ombros entreolham-se e voltam-se simultaneamente para o oceano, pouco mais escuro que o céu, de onde vem o som relaxante da água em movimento pontuado pelo batuque bruto da rebentação. A caminho dali, os outros carregam folhas secas e pedaços de caixotes que foram jogados no lixo para virar cinza algum dia - a folha do coqueiro sendo arrastada pela areia vai deixando um caminho animal, de um bicho ferido a bala que será assado para alimentar o cano de metal. Toda a lenha é amontoada em um ponto aleatório da praia e a brisa irregular do litoral refresca a cancha do abatedouro e os garotos estendem seus corpos fracos na cama de grãos de pedra, minúsculos seixos lapidados pela sofisticada impaciência do oceano Atlântico.

Como torres de observação armadas em cada extremo da pequena faixa de areia da praia, dois morros cobertos de arvores nativas da base ao cimo, ladeados de rochas, encobrem a parte menos estrelada do céu meridional. O Cruzeiro-do-sul repousa pouco acima da torre-oeste, Ursa Maior e Draco estão encobertas por um travesseiro gasoso que esconde todo o perímetro leste da gigantesca via-láctea. Uma fileira de coqueiros é a fronteira entre a areia da praia e a terra arenosa das vias que levam a ela. O mar admira-se no espelho: o campo de areia ondulado como o mar, por açoite do mar, que lambe onde quer, quando pode.

Toda a lenha já foi despejada sobre uma parte seca da duna. Mas a água continua se arrastando imperiosamente pelas proximidades a cada dez ou vinte ou trinta segundos. Vem sangrando e vai sangrando no penhasco plano. Os garotos conversam entre si decidindo a melhor estratégia para acender o fogo sem perceber que a lenha pode ficar inutilizável e sua discussão apodrecer no útero. Um estrepitoso tambor e os braços úmidos do oceano dão um tapa em toda a madeira, encharcando a possibilidade imediata, espontânea e natural do fogo, mas acendendo a busca por algum tipo de controle humano sobre ele, possibilidade que diferencia os garotos na praia da própria praia. O curto período de frustração que se seguiu ao acaso torna-se um réquiem deslocado para o allegro maestoso da busca pelo resultado artificial que o animal humano conseguiu sobrepujar à natureza, sua mãe bastarda, desde quando e sempre que a simpática natureza não faz questão de revogar a guarda de seu filho e engoli-lo com muito mais do que uma sobra de onda: um dos garotos gabou-se com 50 folhas de jornal e outro o coroou com um isqueiro Bic amarelo. Fizeram um buraco inconsistente no chão volúvel e abasteceram-no de papel-jornal. Alguns pedaços de madeira foram atravessados sobre o forno e, após breve estudo do pavio desajeitado, a chama inocente do isqueiro contamina a lista de notícias. O primeiro fogo não faz barulho, só dança ao som do mar. Os olhares sobre ele. O mais irrespondível das perguntas. Quantos segundos? Dez ou vinte ou trinta? Fogo-fátuo. Com a lenha úmida o jornal queima sozinho e rápido, sua chama quase não ataca o casco remediado da madeira. Mais jornal é contaminado. É visível e espetacular a negrura engolindo as palavras tal como o mar havia feito com a lenha. Só que o mar é o sádico misericordioso e o fogo o assassino. O sopro humano o provoca e tem resposta na brasa que reluz mais vermelha e faminta em pequenos pontos do combustível. O azul da fogueira almeja os pedaços de pau em intervalos indistinguíveis matematicamente, mas certeiros e aleatórios como a espuma do oceano surgindo depois das ondas.

Ironicamente, o líquido inflamável que abastece o fogo na lenha é o líquido reluzente que embeleza a mobília de madeira. Mais um subterfúgio da prole criado para ouvir os gritos da progenitora. Os garotos fartam-se de vê-lo infeccionando o coração do forno. Agora toda chama é azul quando nasce e festiva após tornar-se adulta. À noite, toda chama é de um azul ornamentado de vermelho e amarelo. Misturados ao mar, ao vento e à terra, os garotos só conseguem olhar para o fogo.

Um comentário:

JC Vieira disse...
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