Contos, crônicas e novelas.

terça-feira, maio 30, 2006

Dúvida

Sobre a bile dos revoltosos fez-se um corpo de fumaça. Aquela placa. A única coisa que se via em movimento na cena. Apenas um vulto sobrevivente no ruído cinza. Que dia. Foi ontem? Ano passado? Lembra do êxtase de ter segurado a placa que dizia: Nós morreremos por vocês. Eu já lembro. Tenho memória fotográfica e expressão poética. A bile. Corpo de fumaça. Mas é, toda a cena. Aquela ceninha toda. Quantos éramos? Mais de 40, né? Seguramente. Marcos, Hamilton, Luis, Robertos... O Roberto eu e o Roberto você. O Roberto todo mundo. Ah, esses Robertos. Cumpriram sua pena sem julgamento, juntos, no mesmo dia, na mesma cela. Tá todo mundo morto, eu pensei, pausadinho, como se falasse pra você de uma história que ouvi e pensei engraçada. Coisa de ator. Mas falei por falar, sem muita reflexão. Fui um ator de segunda, eu digo. É porque eu decorei o texto, não é? É por isso? Bom, que seja. Vamos dizer que não fui. Havia ao menos um cenário. Épico. Era um palco e no palco a morte cai bem. Como adorei ver a morte do palco. No palco. E eu sei que hoje todo mundo sente que é impuro pensar na morte. Uma chateação e uma obviedade. Mas digamos que é a primeira vez. Como se o primeiro hominídio fosse o próprio Ésquilo. E ele estivesse ali, naquele palco. E depois fosse escrever sobre o que viu para poder mostrar em todos os palcos do mundo a mesma coisa. Bom, eu sou esse Ésquilo arcaico e vou fazer isso, para a aeróbica do hipotético. Eu começo assim: Houve uma revolta. E os revoltosos, todos eles, foram massacrados. Mas, como nós estávamos lá, né Roberto, a gente se sente lesado por não ver uma motivação. O que era revoltante? Você sabe, melhor do que eu, e você foi o último a morrer. O mais forte, de certa forma. Como o mais forte e valente você pensa consigo que a razão da revolta era mais do que uma questão de vida ou morte. Era uma questão léxica. Do verbo. Então eu volto a Ésquilo e reformulo o meu início: Sobre a bile dos revoltosos fez-se um corpo de fumaça. Aquela placa. A única coisa que se via em movimento na cena. Apenas um vulto sobrevivente no ruído cinza. Segurando impávido os dizeres: Nós morreremos por vocês. Seguramente Marcos e Hamilton e Luis e os Robertos teriam concordado com cada linha desse novo começo. É uma suposição, mas eu sei, cá comigo eu sei, eles iam adorar. Como funciona, não? Eu te digo e você finge que não concorda. Eu tenho uma capacidade incrível de ser adequado. Eu fui adequado na hora da morte. Em cada momento da revolta eu fui adequado. Até como ator e lembrança. Vejo aquela fumaça ainda com textura e forma. Inexplicáveis buracos se formando e desaparecendo. Uma grande memória fotográfica. Pois então, eu não estou ignorando o fato de a morte ser um assunto gasto e chato e comovente e muito popular. Vende revistas. Vai vender meu livro. Só estou brincando de ser o descobridor do desconhecido de antigamente, evitando falar de como tudo o que já foi desconhecido tornou-se óbvio para alguns e almanaque para todos os outros que gostam de almanaques. E almanaques são estupidamente óbvios. Outra coisa: eu me lembro de tê-lo visto morrer. E me lembro de pensar com meus botões, como se falasse pra você de uma história que ouvi e pensei engraçada: tá todo mundo morto. E o mais engraçado é que ver alguém morrer, alguém que pode ser até você mesmo, como talvez seja o nosso caso, nunca é a mesma coisa do que ouvir falar da morte. Então há uma necessidade que eu não consigo evitar, pela qual me amotinei, que é a necessidade de falar para todo mundo como eu me senti e como eu acho importante falar da morte de uma maneira que não foi usada ainda. É tão complicado, porque pela primeira vez eu não sei se serei adequado, embora saiba que passei pelo caminho correto. A minha maior dúvida é se estou repetindo a coisa que me chateia nessa história de morte e de fim. Eu não queria ser escatológico, mas eu definitivamente não vou usar o sangue, então opto pela bile, que, sinceramente, nem sei se pode ou não aparecer nesse contexto. Então, há essa dúvida. Mas eu creio que é a dúvida certa, e não a dúvida errada. Antes da nossa revolta, eu lembro que era natural mimetizar as leituras e reproduzi-las e depois sentir aquele desconforto. Que era conseqüência e acabou sendo causa também, viu Roberto, foi causa da revolta, esse desconforto. Mas agora eu tenho essa teoria de que a morte só é compreensível depois da morte. Acha óbvio? Eu não sei. Essa teoria de que vamos entender a morte depois da morte e que aí vai ficar tudo mais claro e vamos conseguir vender mais livros e finalmente vamos nos livrar do desconforto. Acho eu, não posso ter aquela certeza, que você morreu por isso. Mas voltando ao que falávamos, eu, Roberto, preciso muito falar da morbidade como uma coisa nova. Porque foi isso que senti quando vi você morrer depois de ser tão heróico e valente. Foi aí que eu entendi como deveria me expressar. E notei que, desde quando adequadamente nasci eu sempre tive uma memória fotográfica absurda que eu simplesmente deixava de lado na hora de existir, mesmo quando existir era ter estórias para contar aos outros. Então você se viu naquela fumaça espessa e mesmo cego, com os olhos ardendo, não vá negar, mesmo cego ainda se lembra exatamente da minha pessoa dez passos adiante lhe observando como se você não precisasse de ajuda para viver, pois queria desesperadamente morrer com a ajuda que já havia recebido. Você se lembra como se tivesse acabado de chegar de lá. Foi agora há pouco. Minutos se passaram, você me viu e começamos a conversar. Não é isso? Claro que é, Roberto. Eu colocaria minha mão no fogo por você e tenho consciência de que a sua memória também é fotográfica. Sabe porque eu tenho certeza? Por que eu descobri que além de ter acionado minha memória fotográfica a revolta me mostrou como é fácil ter ouvido absoluto. Não é muito curioso que depois de tanto tempo com esse dom magnífico adormecido a gente descubra que basta ouvir? Ouvir você em silêncio, por exemplo. Eu preciso colocar isso no papel e preciso de sua ajuda, Roberto. Só você vai poder me dizer se estou certo ou errado em relação à minha abordagem nova da morte. Quando você se viu sozinho com aquela placa tão absurda por acaso você imaginou que ainda houvesse uma chance de continuar vivo mesmo já estando morto?

segunda-feira, maio 08, 2006

Uma cachorrinha e sua dona sozinhas em um domingo de sol

*Excerto auto-biográfico

A cachorrinha aproxima-se, lenta, andando no corredor curto de ardósia. Ela é pequena, tem passos cambaleantes, equilibrando um corpo roliço e negro sobre patas que parecem usar luvas de pêlo dourado, cujas garras fazem barulho solitário ao tocar a pedra. No chão do corredor do apartamento, estirada de bruços, com os braços abertos, está sua dona. A velha geme com dificuldade, longos suspiros sob roupas confortáveis de algodão. As persianas dos quartos filtram luz em faixas finas.


Cheira suas costelas e olha a sala vazia à frente. Em todo lugar, a marca da dedicação e do detalhe, cenário em cores frias. Dirige-se aos cabelos pintados de loiro, muito ralos, lambe-os, gruda poucos fios à pele arroxeada. Não há nada de diferente com a dona: ela está sozinha, deitada no corredor de seu apartamento. A cachorrinha anda até a cozinha, examina um canto do lugar, encosta em uma bolinha colorida, vira-se. Ouve o gemido da dona e toma um pouco de água. Vai até ela de novo, lambe um pouco do suor de seu pescoço e deita-se, encostando-se à carne ofegante. Ela quer dizer algo, a cachorrinha é toda ouvidos, mas apenas sussuros sem fôlego escorrem em solavancos.

Ninguém em lugar nenhum. A velha arfa ainda mais, bolhas de saliva formam-se em seus lábios. A cachorrinha olha para o corpo no chão e depois procura alguém pelos quartos, se estranha em espelhos, observa as camas altas e passa por baixo delas, procura algo no ar, faz uma rápida corrida até o banheiro, debruça-se sobre a privada, entra no box, procura. Encontra a enorme árvore vergando sob o vento, o movimento vegetal dezenas de metros abaixo. Ninguém em lugar nenhum, todos os cômodos esperando.

Aproxima-se, lenta, e deita-se de frente, no mesmo nível da dona. A cachorrinha, que nunca fora capaz de latir, começa a uivar, franzina, olhando as pálpebras para sempre pintadas de negro da velha, dando voz fina e irritante a seu apartamento impecavelmente morto, ao exílio sem história que ela condenou-se ao construir uma fortaleza de coisas - mobília recém tardia de memórias encenadas e encenadas e encenadas contra o esquecimento. Depois, deitado, estático, o animal urina.