Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, setembro 18, 2006

Texto velho

Trabalho em casa. Minha casa na verdade é um apartamento. Um apartamento bem pequeno, que tem um quarto, uma cozinha, um banheiro e um corredor. Esse corredor teve os tacos descolados algum dia antes deste apartamento ser meu. Meus pés são marcados pelas pequenas e duras colinas da cola que antes grudava os tacos de madeira. Os tacos de madeira ainda resistem no quarto, no qual se entra pela porta que fica no corredor, à esquerda. Esta porta é simetricamente oposta à da direita, onde fica o banheiro. No banheiro, o chão é feito unicamente de azulejos. Azulejos também fazem o piso da cozinha, mas não são como os do banheiro. No banheiro são azuis, na cozinha amarelos. Um amarelo apenas um pouco mais vivo do que o que impregnou a porta de entrada. A entrada do meu apartamento se dá através de um extenso hall. Este haal nunca me pareceu muito diferente dos outros que já conheci : é escuro durante todo o dia, tem um extintor coberto de poeira e o piso um pouco grudento. Grudento não a ponto de fazer barulho quando se anda por ele, mas o suficiente para crer que alguma bebida doce caiu ali a mais ou menos um dia. Um dia tem, como se sabe, vinte quatro horas, mas basta trinta segundos para se chegar no meu andar, desde que se pegue o elevador. O elevador é antigo como o prédio mas suficientemente moderno e decorado para que meus clientes não achem que estão entrando em algum tipo de submundo. O submundo é o início meus negócios. Meus negócios começaram em um ano ruim. Ruim como levantar-se pela última vez da cama de quem se ama, ruim como o vazio, ruim como nada sentir sempre que se vê o reflexo do próprio rosto.
Se crê que o próprio rosto é o reflexo corporal do tempo, e se sabe que o tempo não entra pela porta amarelada deste apartamento, logo entende que aquele ano ruim não morreu. Morreu a paixão, enterraram-se os ponteiros do relógio, procriou-se o que sobrou. E se crê que o que sobrou é o que há de mais fiel e essencial, e se sabe que esta sobra compreende o trânsito constante de rostos e vozes pela porta amarelada deste apartamento, logo entende que é na passagem onde me encontro. Encontrei-me sempre talvez fosse a expressão mais acabada para o que quero dizer, mas não creio que tempos verbais façam tanta diferença aqui. Aqui, deste apartamento herméticamente vazio de onde quase nunca saio. Saio do quarto todas as manhãs com os olhos bem abertos pois devo dizer que minhas janelas foram lacradas. Lacradas de forma a não deixar mais do que lâminas de luz entrarem pelas frestras entre os madeirites. Madeirites que desconheço a origem. A origem de quase tudo neste apartamento é para mim misteriosa. Misteriosa como o rosto dos porteiros e moradores, com quem nunca troquei mais do que monossílabos, cujos nomes nunca precisei me esforçar para esquecer. Esquecer o ano ruim, foi por isso que não me arrisquei a comprar novos móveis. Os móveis - uma cama de estrado maleável,um sofá de tema jovem, uma estante vazia, 2 panelas e um conjunto de talheres e pratos - vieram junto com a chave. A chave entra pela fechadura apenas após um pequeno tranco. Tranco-me todos os dias e só abro a porta quando sei quem vem. Vem gente, vem muita gente. Gente cinza, gente que não aprendeu a se vestir, gente que é paga por mim para que venha. Venham, toquem a campainha duas vezes e meia, me mostrem seus rostos, me digam o que viram lá fora, me passem o dinheiro molhado por mãos molhadas - que eu te passo o que querem. Querem tudo, mas sabem, como eu também sei, que são por demais otimistas. Otimismo que não se lê nos rostos e olhos, nas mãos amareladas, nas bocas quentes. Quentes como o sangue, como as palavras que me dizem - quentes e rápidas. Rapidamente percebo que o otimismo é para eles tão etéreo como endógeno - sendo esta segunda qualidade preponderante sobre a primeira. Primeiro me dizem rapidamente sobre os outros como eles, depois sobre os outros como eles que já se foram e então sobre o tempo, sobre as mulheres, sobre tudo que lhes possibilite acharem que estão conversando. Conversar nunca foi do meu gosto, mas talvez um dia eu tenha conversado muito. Muito provavelmente por que devia. Devendo falar, nunca dizia o que queria. Queria mesmo me calar. Calar as bocas dos outros. Os outros, esses seres
imaginários. E imaginava como calaria cada boca. Bocas pequenas e feias, como anus, bocas pequenas feias e peludas, como anus peludos, bocas carnudas e bonitas, como anus inchados por uso devido, bocas carnudas e feias, como anus inchados por desuso, bocas carnudas, pequenas, feias, bonitas, essas bocas todas. Todas pedindo para ser caladas, como cicatrizes abertas esperando pela sutura. Suturadas de todas as maneiras possíveis. Possivelmente nunca conversei muito, mas meu medo de bocas interpõe um talvez. Talvez a memória não valha a pena ser rememorada. Pois se rememorar é lembrar de novo, e se o ato de lembrar por si já uma forma de falsear os fatos, rememorar não passa de uma dupla falsificação. Falsificar, alguém poderia dizer, não me pode ser alheio - pois é das alegrias falsas que sobrevivo. Mas de
uma sobrevivência ao menos espera-se algum tipo de vida, e as memórias nada me trazem mais do que morte, incômodo. Incomodo-me então com aqueles que insistem em me cobrar vidas já passadas, memórias. Pois se a memória é também verbo, e se não me cansam de dizer que no início era o verbo, logo minha origem perdeu-se em alguma boca-anus odioso. Odeio quem
insiste em me lembrar que não sei de onde venho. "Venho por meio deste...". Destas cartas exalava o bolor vivo do ano ruim, que insistiam em me lembrar de onde vinha,que me encontravam sabe-se lá de que maneira, e por tudo isso também as odiava. Odiava assim a idéia de ser obrigado a pensar sobre o passado, ainda que fosse sua negação. Não passava assim de suas quartas palavras, as deixava no chão sem ao menos me dar ao trabalho de amassá-las e jogá-las no lixo. Lixo que, sob diferentes formas, acumulava-se no piso do apartamento e que se não excitavam os bichos que vivem sob nós era por algum tipo irracional de desprezo ou de ignorância. Ignorava também os nomes dos que apresentavam seus rostos e corpos na minha porta. Porta que se tornava ainda mais amarelada a cada toque de mãos engorduradas,
a cada cigarro queimado na espera pela mercadoria já comprada, a cada perdigoto invisível lançado pelas bocas frenéticas em abrir-se e depois ficarem fechadas. Fechava a porta lentamente e só a trancava quando os passos no corredor cessavam e o barulho da porta do elevador terminava. Terminar o negócio é algo que só se realiza plenamente quando sei que não verei mais aquela pessoa. Pessoas que me diziam : volto amanha, quero mais, posso entrar, quem é você, de onde isso veio. Vinham com conselhos sobre clientelas fixas mas a eles respondia a verdade : eles viriam de qualquer maneira. De maneira que, perante a prova incontestável, apenas resmungavam. Resmungos que insistiam em não me sair da cabeça. Cabeças e rostos que não duravam mais do que alguns segundos na memória. Memória que insistia em lembrar apenas de resmungos inúteis. A inutilidade, às vezes penso, é a única constante de tudo. Mas todo esse realismo me deixava sempre alerta, como que esperando o dia que essas certezas sobre a inutlidade de tudo ruísse. Ruido oco, passos cambaleantes e toques incessantes na campainha na tarde de um dia terminaram por desmoronar toda aquela inutilidade, descrença e invisibilidade. Meus invisíveis olhos se abriram, meus pés magros pisaram a cola e minha boca lacrada resmungou involuntária - voluntário, queria quando
criança ser algum tipo de voluntário apaixonado. A paixão às vezes bate à porta, poderia muito bem ser o nome de um filme. Filme de final feliz, com ternos bem cortados, chapéus que nunca vi, falsas paixões, olhares mortiços e beijos em aeropostos vazios. Vazia e tímida, com seu sofá enjoativo, a sala, assim como eu, parecia ter sido pega de surpresa pela sombra que se pronunciava embaixo da porta. E mesmo a porta não estava muito a vontade com aquilo. Aquele seu amarelo habitual se escondia atrás da mancha quadrada toda branca que descoloria sua personalidade. Pessoa desconhecida, mas não apenas desconhecida, pavorosa e iluminada, cuja o dedo, imaginava, apertava forte a campainha e gritava o que não entendia. Entendia-se, ou ao menos devia se entender, como alguém desesperada, pronta a arrombar minha fortaleza e comer pelas beiradas meu exílio. Exilada no mundo de fora - todo o barulho e sombra que fazia em mim, em meus olhos despertos. Desperteram-se também as madeirites e as lâminas de luz, que vibravam desculpadas por um vento fraco lá fora, mas que respondiam mesmo ao que vinha do corredor. Corri os dedos por meu rosto frio e sem traços e perambulei até a origem como que levado pela lufada de estranheza e ódio momentâneo que aquilo lá fora soprava. Soprando e respirando como um lobo sem pêlos, era uma mulher que na porta se agarrava. Agarrava os cabelos bem pretos com uma das mãos e com a outra segurava o próprio ombro, que não permitia à alça do vestido vermelho se fundir ao chão sujo do haal. No haal, com a luz automática ligada, ninguém. Nenhum tipo de vizinho curioso e os elevadores pareciam ter sumido dali, por respeito á privacidade de nosso momento. Momentaneamente, por puro tédio, acreditei ela ser uma da outra semana, que tinho os olhos roxos e a boca como que rasgada tristemente, mas ela não tinha nada disso. Daquilo, apenas o vestido. Vestido com a roupa das tardes, com os olhos que há muito não vejo e com minha pele fosca, perguntei-lhe o que havia, que a noite era grossa e que não a conhecia. Conhecia um conhecido, disse, conhecia um conhecido que havia dito que eu teria o que precisava."Preciso" seus olhos quase fechados e entornados para a direita, algo se desfazendo dentro dela,as paredes internas aproximando-se, quase colando-se de sangue e vísceras - "demais, agora.". "Agora" - meus pés, observava, não passavam para o outro lado, e continuava a pensar que algo dentro dela se apagava, que murchava seu pulmão e que eu tinha certa dificudade de continuar a olhar as duas telas cinematográficas que seus olhos haviam se tornado, alguma obra sensasionalista sobre a decadência do humano, caricatural e entusiástica, duas telas de miçangas caseiras que perpassariam toda minha pele nua ao cruzá-las e que por
isso tinham como argumento principal que nada havia de mais reconfortante do que olhar nos olhos de alguém e dar-lhe o braço e torax inteiro como resposta à sua súplica - "não há". Há aqueles que tratam-me como empregado, cuja a única função é servi-los de alguma dose de realidade entorpecida. Entorpecer para apagar, para suplantar, para o além, para o aquém, para voltar a ser criança, para poder imaginar que o 'então' pudesse se aproximar de suas promessas. Mas,e prometo sinceridade no que disser sobre a mulher, aquilo ali não se tratava de criação. Criar uma personagem, enchê-la de indiferença, de igualdade e todos esses direitos básicos, tratá-la como se um dia tivesse se apercebido de que suas unhas ruídas até os tocos eram um sintoma de algo e tivesse tentado parar de fazê-lo, como se ela tivesse pensado seriamente
sobre os seios desnutridos - isto não podia fazê-lo. Pois fazia como se o encontro que durava então pouco mais do que alguns segundos não fosse real, eu sendo apenas uma voz melancólica vinda de um buraco na parede, espécie de última esperança de desejo derradeiro realizado - ela se comunicava comigo.