Contos, crônicas e novelas.

sábado, dezembro 22, 2007

Perguntas a alguém que você conhece

Você acha que eu estou a te explorar com essas perguntas?

Alika - Sim. Você em sua ânsia idólatra, em vaidade exacerbada por uma auto-admiração imprudente, quer surrupiar meus devaneios mais insondáveis disfarçando ajudar-me com qualquer marketing dadivoso, enquanto em verdade só quer mesmo ver a expressão mais estapafúrdia da prolixidade transbordando rutilâncias anômalas de confusamente profusa sintaxe em seu blog pra se orgulhar disso.


Fale-me sobre pistões de motores à explosão

A - Como bem sabemos, eles sobem e descem num gíro elíptico dentro dum eixo fixo num motor móvel ou estático. Eles me lembram muito de sexo e lubrificação, assuntos até muito crucialmente conectados entre si. O tema supremo recorrente à epifania mística e ou mítica: a libido contra a morte; e então o combustível bum zilhões de vezes pro carro vrum daqui prali delá pracá e por aí àrroda em busca de satisfações e ou frustrações mundanas. Eles, os pistões, como qualquer outra parafuseta em veículo de transporte, não só lembram muito sexo e lubrificação na imagética de seu fununciamento, mas também são certamente essencialmente destinados ao deslocamento de seres quase absolutamente preponderante em busca de sexo bem lubrificado.

Se você pudesse comprar uma alma, qual seria?

A - A minha própria! Porquê? Porquê não precisaria mais de boa vontade pra fazer as coisas que quero e ou preciso fazer. Seria escravo de mim mesmo, então faria tudo na marra simplesmente obedecendo a mim mesmo cegamente. Eliminaria o esforço de realmente ter de fazer as coisas pessoalmente, poderia mandar o escravo de mim em mim fazer tudo que quero e passar o tempo relaxando e curtindo sexo bem lubrificado enquanto isso.

Qual é a razão última para seres humanos fazerem sexo com animais de outras espécies?

A - A mesma razão porquê tentamos encaixar o molho todo de chaves no cadeado quando estamos com preguiça de pensar. Sabemos que só de olhar já dá pra eliminar tentar encaixar certas chaves em certos buracos, mas às vezes rola aquela arroxada boa, a chave entra gostoso apesar de num abrir. Normalmente quando são chaves da mesma empresa fabricante. Talvez não, talvez seja só o prazer que se sente na genitália quando a estimulamos à seminação.

Complete: "Quando entrei no açougue do meu tio..."

A - '... perguntei-lhe onde estava a vaca da sua mulher, e ele disse que no canto esquerdo ao fundo da geladeira maior; íamos fazer uma churrascada com a mimosa leitosa de que sua esposa tinha tomado conta a vida toda.'

segunda-feira, dezembro 10, 2007

Aliens

O apelido do trailer era Disco Voador. O nome estava pichado em uma lateral interna com uma substância pastosa petrificada, visíveis pinceladas formando minúsculas falésias de cera ou tinta velha. Eram desenhos alongados, de um traço cuidadoso, quase perfeitamente alinhado ao chão, a não mais do que 10 cm dele, cuja cor variava entre o marrom-avermelhado e o negro-brilhante, cada letra bem delimitada: "Disco Voador", uma caixa feita de placas justapostas unidas por parafusos gordos e cobertos de poeira, meteorito insondável ou fruto de uma terra de metal, com as cores do escudo da Corporação ainda vivas, mesmo estando toda suja de marrom e cinza, suspensa sobre pneus esvaziados, sozinha em um beco que à frente tinha uma estrada de terra e a um mato alto e, atrás e dos lados, uma encosta, um barranco de terra dura em forma de U rodeando o trailer, que à noite parecia feito de pedra mas que, quando chovia, soltava partes barrosas, agrupados de matéria que, após o véu de sol das 10h da manhã do dia seguinte, assemelhavam-se a casas de cupim, montículos de terra esburacada, ocupada e abandonada. Por onde se olhasse – da única janela do trailer, do sopé da pequena montanha, do começo da estrada de terra, agachado, fumando ou pensativo, de relance ou soslaio - acima da encosta existia apenas o céu.

- É tipo um caranguejo ET gigante que trouxe isso, dizia S2, sobre a maneira pela qual uma Base Comunitária da Polícia Militar chegara ali..

S2 fala, necessariamente, com S1. Ambos são Soldados. Não que S2 esteja se dirigindo a S1, olhando para ele, imaginando o que ele quer ouvir ou escolhendo um assunto que possa sugerir um comentário qualquer – de concordância, indignação, humor. Fala com ele, e unicamente com ele, pois aquela Base Comunitária da Polícia Militar para a qual foram designados há alguns meses sem provocar contragosto ou alegria – com seu nome pichado desde sempre, até onde sabiam - nunca viu outra alma que não uma alma fardada. Estão sós. Desde que chegaram, não travaram contato com sequer um elemento do grupo de pessoas a quem deveriam servir e proteger. Até então, enfiados no beco, o único elemento a ser guardado era tão somente o Disco Voador. Os únicos a serem servidos, eles mesmos.

Não apenas o horizonte do Disco Voador era desabitado, mas todo o caminho que levava até ele. Chegavam em ônibus da Polícia Militar vazios e paravam a 500 metros da Base. Caminhavam por um amplo estacionamento sem carros, círculo de cimento circunscrito por calçadas baixas e loteado por quatro casebres esparsos feitos de embalagens variadas, prensadas e grudadas de produtos alimentícios, remendos de grandes pedaços de lata – talvez antigos telhados – que faziam as vezes de esqueleto arquitetônico. A última antes da base parecia de fora ter dois cômodos e era remendada com centenas de embalagens de plástico transparente – que antes guardavam macarrão, feijão, arroz e víveres de primeira necessidade em geral. O plástico agia ali como um impermeável, o que lhe dava uma aparência espacial, com a luminosidade refletindo e penetrando o plástico, fazendo o negro da madeira embaixo brilhar e destacando os desenhos coloridos das embalagens de arroz, feijão e macarrão como selos do passaporte de uma habitação embalada para viagem, instalada na cabeceira do que poderia ser um quadrado, um losango, círculo ou qualquer forma que acolhesse quatro pontos.

Quando passavam destas construções, que a julgar pela ausência de moradores era abandonada, entravam então no mato alto, vencendo-o com seus coturnos. Nos dias mais frios, as plantas pareciam mais escuras, endurecidas e relutantes em lhes dar passagem. Algumas se quebravam. Nos quentes, deitavam-se como que estafadas. Trezentos metros depois do ponto, já em leve declive, podiam ver o buraco onde trabalhavam. A imagem do trailer, da estrada de terra e do barranco - ferradura terrosa que parecia ter sido não erodida pela ação das forças naturais, mas por trabalhadores com rudes noções estéticas, de forma a fazer par com a base da PM ali situada, como se fosse posterior a esta, como se a esta servisse e abrigasse - pareciam nascidas em árvores, terem desprendiso-se de vulcões, habitar um mar antigo.

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Quanto aos outros habitantes, o grupo dos insetos era o mais presente. Vinham mosquitos, escorpiões, baratas, lacraias, borboletas amarelas, moscas varejeiras, formigas em fila, joaninhas e grilos – estes chegavam em grupos de 5 ou 10 saltitando, traços móveis semi-imperceptíveis, para então parar, encolher as patas alongadas e meditar. Pareciam gostar dos Soldados: entravam em seus olhos zunindo, escondiam-se nos bolsos, subiam por pernas e braços, pousavam nas testas, imobilizavam-se em grupo para observar e reverenciar os homens.

Poderiam haver outros animais vivos, mas não havia confirmações visuais. Um relato de S2 dava conta de uma aparição sobre o barranco de terra, em forma de sombra emitindo barulhos claramente respiratórios. “Ouve aqui, ó: era um porco, uma porca, um bicho grande, gordo.”

E houve - como esquecer? - o peixe-espada encontrado nos fundos do trailer, enquanto os dois andavam à deriva em volta da caixa metálica. O animal era maior do que o tórax de S1, com guelras envoltas em terra absorvendo o resto de sua umidade e amarronzado em razão do reflexo do barranco na lata. Seus olhos não estavam lá. Apenas o bico, a espada de carne, ainda com serras e ainda brilhosa, mostrava que aquele exemplar estava longe de casa há pouco tempo. De resto, tudo já havia sido mexido, remexido, analisado e retirado por indíviduos alguns níveis abaixo na cadeia alimentar, bichos que se fartaram na carne salgada e nas vistas gelatinosas do marinho. S1 e S2 tiveram mais pena do que nojo, recolheram-no e jogaram-no para cima do barranco, sepultando-o no desconhecido e falando algumas últimas palavras. Sob os múrmurios de "...caraaalho" deixaram o assunto de lado.

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- Ele chega, vruummm, tlec-tléc, as patas, tá ligado, carregando isso aqui [o trailer]. Depois sai fora, de boa, catar mais lata, tirar um troco, só os zoião, vruummm .... Esse ainda era S2 falando sobre sua mais nova explicação para a maneira como o Disco Voador fora parar ali: o Caranguejo ET Gigante, agora mendigando restos terrenos que seriam vendidos a uma Lula raquítica, de ganância assumida, viciada em algum psicotrópico galáctico assemelhado à opiáceo.

“Então tá, seu noiado, beleza, entendi”, diz S1, que não sabe exatamente onde está S2 - dentro do trailer, quase perto da estrada de terra, atrás de si, coçando a cabeça, acendendo um cigarro? Há algo que incomoda S1 na maneira que, a cada semana, S2 cria uma origem nova para a inscrição do apelido. "Então tá, seu noiado, beleza, eu entendi tudo o que você disse, mas que caralho isso quer dizer, onde isso leva? Puta viagem!" foi, com pequenas variações, a resposta de S2 para cada desvario. O primeiro era relacionado ao trailer ter nascido da terra - "Tipo um barulhão de trator e...". Depois, que os insetos tinham construído aquilo apenas para atrair policiais e que, um dia, seriam enrolados em teias fortes como cabos de aço e grudentas como piche - "Mas eu acho que eles não iam querer comer a gente, não". Depois, uma tediosa explicação, com palavras que se pretendiam pomposas, sobre viverem em um sonho e, no mesmo dia, que talvez estivessem apenas mortos e não soubessem.

Para S1, tudo isso parecia, em um primeiro momento, um passatempo irritante do colega. Mas, passada essa cobrança parternal, a causa de sua desconfiança e irritação era outra. S2, para S1, estava indo um pouco longe demais com essas brincadeiras do tipo "Solucionei o Charada". Não que aquelas "viagem, doidera"s, sob qualquer aspecto, lhe parecessem uma solução. Mas causavam ridículo ao Disco Voador, despedaçando a seriedade com que deveriam levar o trabalho. S1 poderia confiar em S2 quando, por fim, alguém batesse com os nós dos dedos na porta perguntando por eles?

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Não fora no primeiro dia de trabalho, nem antes deste (em alguma salinha da Corporação) que S1 conhecera S2. Fora dentro do trailer, uma semana depois da primeira vez que experimentara o estacionamento abandonado, as casas, a estrada e a visão da base, uma semana depois de não entender porque seu companheiro de guarda, que deveria estar ali desde o primeiro dia, ainda não chegara, o que era, mesmo que o serviço semi-inexistisse, uma injustiça laboral, uma "puta sacanagem", sem dúvida. Que semana. Relembrando inimigos, apontando a arma para o barranco, horas e horas com a escopeta na mão, pronto para um ataque iminente que, segundo o treinamento, viria de cima e dos lados, homens magros com os rostos cobertos com meias-calças pretas alongando-se lentamente pelas sombras, encostando canos frios em sua nuca, mandando-o ajoelhar e pedir perdão por pecados que ainda não tinha cometido mas que, de fato, iria cometer; homens explodindo projéteis nos canos frios e sua nuca sendo penetrada com vastidão por todos esses quentes pecados ulteriores e certos. Não eram matinês engraçadas. S1 tinha medo. Medo de não conseguir lembrar do treinamento no momento em que ele fosse necessário, medo do treinamento (mesmo que lembrado e cumprido) não ser o suficiente; medo de não ter sido treinado para as ameaças que o ambiente do Disco Voador potencialmente proporcionava. Nos quartéis, os inimigos ainda estavam no campo do sensível - vinham dentro de sacos de areias, de homens de papelão duro, de fantasias violentas, transmutavam-se em colegas, esquentavam colchões próximos, carregavam armas de diversas maneiras parecidas com as suas, usavam da explosão e do fogo, sentiam dor. Tinham até famílias - que, assim como os outros elementos de realidade que os construíam, dotavam-nos de alvos. E os inimigos que S1 era obrigado a inventar, ele, um homem solitário pisando em gramíneas contra o céu cinza, sentindo os ventinhos chatos entrarem pelas frestas do colete? O Soldado tinha medo, era claro, de si mesmo. Não lhe bastavam mais homens comuns. Para se manter alerta naquela primeira semana teve de apelar para gente feita de luz e sombra, criaturas remendadas de memórias - aí entrava a chegada "pelos lados e por cima", as "meia-calças cobrindo os rosto", a magreza, os canos de metal, temperaturas e culpas. Mas não era só isso. Os inimigos criados por S1 conheciam tudo o que S1 conhecia, conheciam tudo sobre S1 pois eram também parte dele e, de maneira que mesmo o Soldado não pensara num primeiro momento, gozavam de uma auto-consciência reservada apenas às peças imaginadas - coisas de dentro que de dentro conheciam. Como derrotar homens que sabem não apenas o que de mais frágil existe em você, mas o que de mais incontrolável existe neles mesmos? Difícil acreditar em piedade. Na sexta-feira, no penúltimo dia daquela primeira semana, a história de seu medo chegou então ao fim. Depois de se deparar com a necessidade da invenção; de, prostrado em sua tarefa de criar, deixar seu posto e a posição de múmia militar - com o cano da escopeta junto ao rosto, o corpo imóvel, enrijecido, destemido e pronto - prontinho mesmo - para morrer pela Corporação, mesmo que em delírios - apenas para ir embora, para ir para casa, depois de tal paralisia, resolveu procurar suas criações. Dava voltas sobre o próprio eixo, permitia-se virar a cabeça, arriscou alguns passos para frente e para trás, movimentou a arma. Ousou abrir a marmita fria, comer o arroz frio em pé. Até que, na sexta, sentindo-se mais confiante perante a timidez dos inimigos - e dotado de um medo que ganhava novas camadas, cada uma delas dando mais proteção e certeza àquelas primeiras sensações de impotência em relação a essas pessoas que escondiam-se no mundo e pululavam em sua cabeça, a absência delas como a prova definitiva de que a tal "estratégia fantasma" era, à sua maneira, verdadeira e eficiente - naquela sexta ele resolveu que andaria e faria uma inspeção no trailer. A caixa, até o momento lacrada, um galpão que tinha como quintal o oceano, um velho porto com solo molhado, os guindastes como braços mecânicos saídos do solo molhado, carros estrangeiros salpicados de garoa, a enorme caixa com a enorme porta e ele, um policial, o herói do filme, tendo que lidar com não apenas a possibilidade de encontrar um exército inteiro de dentes cerrados e olhos excitados olhando para o intruso mas também com a possibilidade (estatisticamente idêntica a essa primeira) de não haver ninguém lá dentro, de encontrar apenas seu fracasso como criador, o barulho de aves marinhas ao fundo, de marujos grunhindo, de rádios ligados - mas homens ruins, prontos para o assassínio e para rir sobre corpos de policiais, gente que não tem família nem corpo nem moral, bem, talvez estes homens não estivessem lá. Talvez os andaimes e as escadas e as varandas de metal avermelhado dentro da caixa carregassem apenas a água suja do solo lá fora e, com alguma sorte, um conteiner aberto, vazio, estivesse monopolizando a luz da grande clarabóia acima do pátio, restos do último Natal no centro do galpão. Tentava escolher a chave certa com os dedos tremendo, imaginando o momento em que alguma daquelas aves marinhas resolveria deixar de ser apenas mais um elemento marginal da narrativa, daria um rasante, soltaria no ar seu cheiro de peixe velho e roubaria a chave, engolindo-a ainda em pleno ar, mergulhando para não mais voltar nas águas grossas e turbulentas. Os bracos mecânicos e as ondas de rádios lhe diriam um rouco "OK" que ressoaria pelo porto e esse seria um final quadrinesco para a fantasia. Mais uma chave entra na fechadura. S1 tinha sido mesmo "mais um"? Era o primeiro? Existe essa imagem de, ao penetrar em algum lugar secreto e imemorial, encontrar não o tesouro procurado, mas os esqueletos de outros "mais um"s, recobertos com teias de aranha, jóias, moedas de ouro, um último momento de júbilo massacrado por forças que querem punir a ganância, o desrespeito por velhos códigos, a arrogância de quebrá-los e de ousar dar o último passo, de não acreditar naquilo, de colocá-lo na categoria de coisas "a serem conhecidas e exploradas". E nestes locais sempre existe uma luz sem fonte, ajambrada com um cheiro reconhecível, partículas flutuando e entrando nas cavidades oculares dos esquecidos, cujos desenhos denotam a última dor e servem de desestímulo para o olhar que já foi dado e de horror para a porta que já foi aberta. O último momento antes da aniquilação. Mas a chave está entrando, o porto inteiro volta-se para o homem de colete à prova de balas, blaser e óculos escuros, as batidas eletrônicas chegam naquilo que almejam como ápice, um policial tentando acabar com a gangue de senhores maus que aterroriza a região e, principalmente, a ele mesmo, os dedos apertando com força e os guindastes virando-se e as aves gritando e o mar debatendo-se no primeiro giro, um estrépito de metal sendo torcido em direção à água arremessada contra o cimento negro, o porto todo vê S1 abrir a porta e todos os olhos - os inimigos talvez não fossem mesmo Homens - fecham-se. S2 estava atrás da porta, agachado no assoalho, encostado à mesinha com o rádio, olhando a janela e o céu acima do barranco e falou um

-Ouuu...

quando S1 o cutucou com a portinhola. E esse foi o primeiro passo.

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Conforme S2 se levantava - e o fazia lentamente - mostrava os braços salsichônicos, cheios de pintas entre o vermelho e o negro, pequenas coisinhas que, olhadas de perto, continham histórias inteiras em si, histórias sobre os dias, os próprios nascimentos e os nascimentos de algumas de suas vizinhas, sobre as dobras com algumas verrugas, junções mais escurecidas entre os dois balões de pele que formavam os membros; pintas capazes de contar (se estudadas as cronologias de cada minúsculo relevo e distinção de cor) um capítulo da trajetória daqueles dois universos paralelos caídos das mangas do uniforme. A barriga, entre um braço e outro, também tinha esse aspecto de sapiência das manchas: segura, imóvel, redonda e maciça, mesmo sendo feita da mais abjeta gordura humana. Era preciso um esforço imaginativo para saber que, atrás da abóbada, existiam órgãos. O que não ocorria com o peito, pequeno e sufocado pela parte inferior do tronco, ossada funda e envergonhada, uma prainha que estava sendo, cotidianamente, tomada pelas águas caudalosas da barriga: nele tinha-se a impressão que o coração estava a marcar a pele, a se ejetar dali - talvez sentindo, por sua vez, a temerosa chegada do mar adiposo. As pernas, finas e com joelhos gordos, apareciam nas brechas deixadas pelas calças curtas, cujos bolsos tinham chaveiros pendurados, chaveiros que tinham, cada um, pequenos adesivos brilhantes colados, de bichinhos e de desenhos animados quase cobrindo o escudo, que já faziam um barulho tremendo mesmo sem S2 estar de fato se movimentando - era mais um fato peristáltico - e que, desde aquele início, deram a S2 a aparência de uma criança criada como Soldado. Por fim, antes que ele terminasse sua longa viagem para o bipedismo, S1 pôde observar que, nas costas abaixadas do gigante estava um grupo peculiar de formigas que, vistas de cima, eram uma forma arredondada como o dono da planície corpórea onde se alojavam. Um grupo grande, mais de 50 com certeza, dando voltas entre si e carregando pedacinhos do creme doce esmagado no colete à prova de balas. Como não tinham meios de escoar a colheita, criavam e desfaziam uma ameba pulsante no vasto dorso de S2, que não sabia o que acontecia ali e ainda, com seu olhar fixo, o que acontecia ao seu redor. Os olhos afundados entre as bochechas e a testa proeminente, a barba espalhada pelo rosto com a textura de pêlos de bonecos, a pele espichada e vistosa, os olhos algo apertados, a testa correndo para um início de calvície, ou poucos fios penteados para trás, uma expressão de marasmo e de coisa plástica, de gente do cinema, de personagem B, de um gordo orgulhoso, de alguém que sempre estivera preparado para aparecer, mesmo sabendo que, se o fizesse, seria sob o signo do ridículo excessivo, do ridículo bondoso.

- Quem é você?, exclamou S1.

Foi então que S2 explicou que, durante todo aquele tempo, também estivera procurando por S1. Pontuou que não o vira lá fora, que aparecera no mesmo horário de manhã da segunda-feira, que também tomara um ônibus, que vira as casas, que entrara no trailer e que só saíra de lá para ir embora, em cada um dos cinco dias. Disse que suas ordens se referiam ao trailer e que, por isso, ficara lá dentro. "Agora mesmo, continuou, tava dando um look nessa parada aí" e apontava para o barranco. S1 também olhou para fora e depois voltou-se para S2, agora de pé e gigantesco, com as roupas pequenas, muita pele e pêlos à vista e os chaveiros provocando barulhos engraçados. Olharam-se de novo, olharam os dois juntos para fora do trailer, pela janelinha e para o barranco de terra, a parede dura que a chegada da noite começava a tornar marmórea. Acima, o céu, roxo. Olharam-se de novo e S2 começou a dar gritinhos e a pular a baixas alturas, balançando os ombros e batendo as mãos no traseiro largo e achatado. As formigas haviam caído em sua cueca e S1, sem uma idéia nítida do que fazer, achou melhor deixá-lo só.

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Fora do trailer, no começo da noite do fim daquela primeira semana, um grupo variado de móveis - um escorpião, duas libélulas, quatro baratas, um meio-termo entre formiga e lacraia, um par de joaninhas e uma dezena de pequenas sombras que se aproximavam à distância - observavam S1, a poucos passos do Disco Voador, sem certeza de entrar ou voltar, no momento paradas ou dando voltas, mas de fato recém-chegadas, encontrando pacificamente umas às outras, esperando S1 fazer algo, em uma clareira de areia fina, alguns grão fazendo sombra a elas e um braço verde que ia soltando, conforme se esticava, uma e duas folhas. S1 olhou para a cena com falsa soberba, curvou o pescoço para o lado, deu um passo forte - algo para espantá-los - e, sem sucesso, outro e outro pisão. Causou tremores no chão e ligeiras quedas ao indíviduo de aparência híbrida e também a uma das libélulas, que voltou ao chão colando as asas - em forma de lâmina amassada e raiada -, empinando a cauda roliça e suculenta. Continuam andando e se arrastando devagar mas, agora, a sombra de S1, que cresce sobre o grupo, impede que se saiba direito, com certeza visual absoluta, quem é quem no grupo. Os pontos dançam, formas pretas que esticam preguiçosamente fios para fora de si, partes de corpos que comem a própria forma; cada um deles parece ter tamanho e forma idêntica, mutável e, para o Soldado, demasiado instável. Ele se abaixa, aproxima seu rosto do que acontece embaixo, volta dois passos para trás, em direção ao holofote em cima da portinhola do trailer e a imagem é de novo algo clara. O escorpião tatuado com uma coluna marrom-escura nas costas, S1 vê, está no centro, sozinho, movendo o corpo todo para poder olhar ao redor, com a cauda amarela levantada e o pesado ferrão excitado apontado para si mesmo. Os olhos são pintas. As joaninhas mostram-se arredias à luz e chegam - sempre juntas - à esquerda; as baratas dirigem-se rápido para o flanco direito; as sombras, que antes espiavam e que há pouco pareciam chegar agora se mostram grilos, com a fronte entre as patas caranguejosas: têm o aspecto de anciões compridos, que resmungam fumando narguilés.
Antes que S1 resolvesse agir de fato, quando por fim abriu as cortinas de luz, testemunhou a criação de uma platéia de insetos para o escorpião.

Cada um deles movendo apenas antenas e patas e partes de corpos, micromovimentos milimetrados - o vento inexistente daqueles movimentos. Era um círculo que, sem que fosse possível traçar de que maneira o fazia, rodava e rodava para ambos os lados, como crianças à volta da fogueira, andando de lado vagarosamente, uma imagem que a S1 assemelhava-se às geradas por uma televisão quebrada, silhuetas tremeluzentes que não deixavam rastros em suas migrações, que pareciam teletransportar-se de um lugar ao outro - ou que apenas ficavam paradas, deixando que a noite que chegava desse conta do efeito.

No meio, o maior deles, o escorpião, que, depois de desfilar, de mostrar suas armas, de fazer brilhar suas formas atléticas, rijas, endurecidas e torneadas, parou, também esperando. Um elo do círculo, o elo formado por vespas que mal haviam aterrisado, se abriu e S1 percebeu uma agitação maior em todos os elementos, como se alguém tivesse colocado o dedo na antena do aparelho e o fantasma de cada um se enervasse e ameaçasse saltar da própria origem. No centro, com calma e determinação, o ferrão voltou a subir e os temíveis alicates frios colocaram-se em posição de defesa, semi-abertos, mordedores, as patas como fios de carbono, rápidas: ele corria, um tourinho dando saltos para um lado e para o outro, o corpo todo gomado quase levantando-se: era um boxeador no canto do ringue sendo apresentado e olhando fixamente para algo que deveria estar ali, mas não estava. O círculo volta-se a se fechar, cada inseto encostando um no outro, usando de linguagens insondáveis criptografas por idas e vindas de antenas, fazendo apostas, ansiosos, sendo tão amorosos e covardes com o pobre tigre no centro do picadeiro. "E do meu lado direito...". Algumas gramas, nada como uma estatura. Um ruído parecido com chiado, baixo e agudo, vinha do grupo. S1 pensou que talvez fosse a terra, algo debaixo dela, e, logo depois, tudo era o escorpião. Andava rápido no raio circunscrito, dava lancetadas repetidas contra o ar, rodopiava para frente e para trás. Em alguns momentos ficava completamente parado, com as pinças indo e voltando lentamente, dando a impressão que segurava algo muito pesado e que por pouco não cedia e se deixava esmagar pela forma invisível que S1 não conhecia mas que, de acordo com o nervosismo da platéia, se assemelhava a um vilão. S1 não sabia para quem torcer.


Em um destes esforços inauditos, logo depois de se livrar da terrível pressão,o escorpião escapou pelo lado e, supostamente de costas ao inimigo, eriçou o telson e as garras e ficou assim por instantes enquanto o chiado do grupo de insetos aumentava. Desfaleceu, quebrou e ficou. O círculo se manteve até que uma barata tocou o campeão com suas antenas e, no que parecia um sinal, virou-se para os outros, que rapidamente afastaram-se, andando entre as pernas de S1 para debaixo do trailer. Ele aproximou-se do quase ressecado aracnídeo, tocando-o com a ponta da bota como se toca areia. Não se moveu. O corpo de plástico enegrecia rápido, como que sendo tomado, chupado e chupando a terra e, depois de alguns segundos, mostrava-se inchado, um gomo maior que o outro. Todo negro e todo gordo. De um dos montículos de terra seca que se desprendera do barranco nesta primeira semana uma linha fúnebre vinha buscá-lo. S1 observava. Logo antes de ser levantado aos moldes de um herói derrotado, quando a linha fúnebre já havia se pulverizado em formigas ao seu redor estudando a melhor maneira de carregá-lo, a forma estufada e malévolamente negra, um bichinho assustador e agigantado com o golpe, levantou, esbravejou com voltas tensas e lentas das garras e saiu andando firme e lento em direção à S1, que teve tempo de saltar antes de vê-lo também ir para debaixo do Disco Voador. O soldado virou-se para a sombra embaixo da caixa, que, cada vez mais certa com a chegada da noite, estava vedada.

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S2 já tinha terminado sua fala sobre o caranguejo e a origem da base. A idéia, que começara com um crustáceo espacial e miserável em busca de metal a ser vendido a um molusco viciado terminara há pouco, com a ligação afetuosa entre a Lula e o Disco Voador, "ela ia curtir essa barraquinho, sei lá, acho que nem ia vender não, sabe? Ia ficar com isso, morar aqui, diz aí. Essa trailer é bacana, meu, bem legal mesmo. Eu morava aqui certeza." Estavam no final da tarde, na hora de repetir as velhas histórias. S1 estava agachado, de costas para o trailer e para o barranco, observando o chão que logo virava mato. Mesmo ali não era possível ver ainda o estacionamento e os casebres abandonados.

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Não faz parte do Disco Voador. É a imagem de um homem chegando de cima do barranco, se aproximando da borda, um homem vestido de uniforme cinza e boné de espuma, botas negras até o início do joelho, com o colete à prova de balas tornando seu peito algo ridículo e superporderoso, eternamente enorme e inseguro, observando e não agindo, não respirando, intacto. Não existe vento, nada se mexe, "tipo uma foto", mas aquilo não é uma fotografia. Está mais para um fotograma, desfiado no tempo, incompleto, que por si só diz pouco e que, exatamente por estar dissociada das outras que a compõem de fato sempre parecerá fora de lugar, como uma maquete para se olhar mais de perto, para ter seus detalhes descobertos, um campo vasto para interpretações, pedindo respostas para suas ausências - De onde ele veio? O que faz a me olhar? Para onde vai? Ele, o Soldado, chegou sem andar, ele é diferente de quem sonha, ele é como o oposto de quem sonha e ele sempre esteve ali, mesmo que tenha não-andado para ali estar, sempre com o sonhador. As cores são vívidas e contrastantes como em um filme em branco-e-preto, é possível ver com clareza seu rosto, recoberto com meia-calça negra; sobre o corpo e sobre o U de terra, ele desbrava e se acovarda perante o trailer e o homem embaixo; tudo está contido mas, que merda, não é possível entender esse tudo. Acordar, deixar de ver essa imagem, de nutrir emoções por ela, esquecê-la. Mesmo ali o tédio se apresenta como contorno invisível e necessário; as bordas do sonho têm tentáculos, a monotonia se expande.

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A linha aqüosa que vinha do barranco deixando marcas já formava uma larga poça e ameaçava tomar todo o solo ao redor do Disco Voador. Ela estava lá quando S2 chegara nos primeiros momentos da manhã e não parara de aumentar quando S1, três minutos depois, a avistou. Era um fio marrom que descia pela terra do U sem fazer barulho e que criava bordas espumentas no vale que escavava, correndo alguns m/s abaixo do esperado para aquele ângulo de queda - e uma possibilidade, como S2 aventou, era que a "a parada" fosse densa demais para ter a velocidade de água. De fato, logo na primeira vez que o Soldado agigantado de roupas curtas tocou a matéria com seus dedos em forma de tocos grossos, um fio baboso se formou entre a pele e a poça. S1 deu-lhe um tapa na mão, deixando claro que aquilo não mostrava-se exatamente um brinquedo. S2 olhou ressabiado para o companheiro e continuou com a mão perto da poça, agachado e mostrando (sabidamente) a vasta sombra que surgia entre suas nádegas, o rasgo guardado pela calça. Andou um pouco, buscando uma panorâmica. A linha vinha pelas costas do trailer e, alargando-se, alojava-se no chão em forma de um disco em contínuo crescimento. A sombra do trailer, submersa na poça, confundia-se com esta e, de longe, S2 acreditava que o Disco Voador estava sobre um buraco sem luz, flutuando.
Não autorizado por S1 a mexer na matéria, o gordo começou a juntar objetos para testes. Uma pedra, três galhos, folhas e um lápis velho que, sem saber, carregava em um de seus bolsos cheios. Jogou-os de diferentes distâncias, com diferentes forças, a cada arremesso fazendo uma expressão diferente de esforço, como que em diferentes esportes olímpicos. Em nenhum deles um pingo qualquer da poça se projetou. Ela absorvia cada um dos objetos, deixando à mostra apenas uma semi-imperceptível parte do que eram antes do arremeso - dos lápis e galhos, apenas a ponta; das folhas e dos galhos, um declive fortuito em sua planície; da pedra, o eco. Passadas 2h, tiveram a impressão de que o próprio trailer era um desses objetos. Os pneus já estavam mergulhados até a metade, formando bolhas de quando em quando: mostras que seu movimento para baixo era tão regular quanto o da chegada da matéria, que não diminuíra nem aumentara desde então, mantendo um desesperador fluxo que não parecia, sob nenhum aspecto, positivo ao Disco Voador.

- Ahn... e aí?
- E aí o que?
- Não tá vendo? E aí?
- É...

Dentro do Disco Voador há um rádio sobre uma mesa de fórmica imitando madeira. É o único móvel do trailer. S1 e S2 nunca ligaram o rádio na tomada que, imaginam, está por sua vez conectada a uma bateria - que também nunca viram. Olham-se e olham o declínio lento da Base. É preciso fazer alguma coisa e, pela primeira vez desde que chegaram, percebem que aquela caixa de plástico com botões de rodar marcados por linhas vermelhas ou brancas e rodeados por números que, de forma geral, vão do 0 ao 10 não é o suficiente. S1 olha para o perfil de S2 (que coça o nariz), vê-se ao lado do homem gordo, quase careca, com gordura saindo pelas bordas das roupas velhas, engordurando os chaveiros barulhentos que pendem do bolso e pensa que deverão arranjar uma maneira para que a primeira batalha da missão tenha sucesso.

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Bem agora, bem no momento em que a situação exige de tal forma alguma ação que quase se confunde com esta necessidade é que S1 se interessa por uma sombra até então invisível na poça crescente de líquido gosmento. Ela está ali, como um fantasma que nada em águas rasas de ectoplasma, a cabeça esticando-se em um longo espinho. É acinzentada, mas pode-se perceber uma tonalidade que fica mais e mais azul conforme o fluxo de líquido continua a correr e a mudar a morfologia e a profundidade da poça, levando e trazendo todos os pontos do objeto em forma de sombra para alguns e outros centímetros acima abaixo e aos lados, desenhando quadrados perfeitos com linhas imaginárias passadas a limpo pela memória recente do Soldado. Já está em seu décimo-quinto quadradado, todos proporcionais e alinhavados e grávidos de outros, formando um túnel com cantos perfeitos ou um piso de hospital ou enormes cubos, alheios à sua cor suja e rural, cujo futurismo reside na simples perfeição de suas formas recendendo à supremacia sobre aquilo que o anteveio - a ao futuro deste destino, um caminho que se aproxima dos olhos de S1 tal uma luneta desmontável ao contrário, desdobrando-se em negativo e oferecendo-se ao alcance. Um troço bonito, sim, a se desenrolar e esbanjar-se apenas para ele, toda transparente e fios brancos, um laço de cera rígido, criado no frio e na Hierarquia de um por todos e todos por um, serpentuosa e robótica esfregando sua perfeição quase na pele do Soldado, levando sua coleção de desenhos retos para longe da visão, rumo a um vazio de significado que causa em S1 um tédio assustador - ele já vira aquilo.
Tenta pescar a verdade, tateia sem mover as mãos em busca da origem daquela sensação e nada toca, afora S2 ajudando a esguer o peixe-espada rumo ao que foi o desconhecido cemitério do marinho.
Este delírio banal faz o Soldado olhar para si mesmo olhando a sombra e S2 e o atolamento inconsolável do trailer, enxergando-se de novo sozinho e esmagado pela escassez, atônito perante a Única situação que de fato importa. Viu o quadro completo, com a espiral de quadrados representanto o dissonante que voltava a lembrá-lo que, da mesma maneira como aquilo não deveria estar ali, nada havia nascido junto e ou consecutivamente naquele quadro. Via a si a mesmo olhar, mesmo ao saber que nada do que enxergava era de fato um fato; via-se imaginando. Nem o trailer, nem a terra, os insetos que agora formavam uma nuvem ao longe, em direção aos casebres dos estacionamento, nem as rodas, o líquido, nem ele e S2 eram o que um turista desprevenido poderia achar: uma turma de amigos, os integrantes de uma tribo, uma família incestuosa, uma torcida, um armário aberto. Um era alienígena ao outro. Por momentos, pensou ser possível que nem todos ali fossem formados da mesma matéria atomística básica, que o Disco Voador poderia muito bem ser, ele mesmo, indivisível e eterno; que a areia e os insetos, assim como o líquido, poderiam ter uma mesma origem material: alguma partícula una que deve, por necessidade lógica, ter existido no início de seus dias, mas que, devido à sua natureza mutante, a cada cria transformava-se em outra partícula una, criando gêmeos absolutamente díspares, umbilicados pela mesma característica cancerosa. E que ele e seu colega, os dois Soldados, poderiam muito bem não serem feitos de nada - espécie de forma definitiva de matéria. Eles seriam apenas o que eles pensassem e a incrível coincidência de todos os dias terem os mais mínimos detalhes físicos inabalados era prova de que não eram assim criativos como a mera possibilidade de não terem de pensar a mesma coisa interruptamente levava a entender. Deviam ser diferentes e estranhos em todas as categorias, e, por isso, o simples fatos de não-o-serem deixava uma dúvida: de onde vem a força que os une; quem jogou o quê sobre eles para serem, ao menos durante suas existências laborais, tão coerentes? Quem diabos os colocou ali, e, naturalmente, para quê?
S2, o homem estranho. A todo momento falando de sua vida, de tudo o que pode dizer sobre si, dando voz a sua imaginação verborrágica, e, simultaneamente, incapaz de lhe dirigir, a S1, ao menos uma pergunta, uma requisição, uma dúvida. "Como se eu não tivesse nada para dizer". Como se S2 já tudo soubesse sobre S1. O Soldado pensa sobre o primeiro dia que o viu dentro do trailer, todo o porto ameaçador fechando os olhos, S1, ele mesmo, aliviado de ter encontrado um outro alguém para lhe salvar dos outros e o que lhe vem é algo como uma coçeira na memória. Que ele não vira S2 era tão certo quanto o naufrágio do Disco. Improvável agora lhe parecia o companheiro ter aceitado passivamente que ambos nunca tinham se visto - mesmo chegando quase simultaneamente a uma área que, com otimismo, era no máximo do mesmo tamanho de seu próprio quarto. (Foi um anzol tremulando na superfície o que S1 mordeu, com sua carência justificada.) Como era fácil se deixar convencer ou dominar, esse homem ridículo. Bastava uma palavra de ordem, mesmo dita em voz baixa, bastava um toque em seu corpo. Um cão ou brinquedo. Bastava que S1 quisesse e S2 era: um homem ridículo; um contador de histórias a serem achincalhadas; um gordo a quem se olhar com desprezo e superioridade; um móbile pesado que gira conforme nosso sopro, com as pequenas variâncias esperadas da morte manipulada; uma pedra, uma ordem, uma missão. Até onde - e com que objetivos - iria sua conivência com o mundo da Base? Ao fazer as perguntas e elaborar suas teorias, pensava S1, o gordo ajudava a construir o entorno - não com insetos, terra ou líquidos pastosos, mas com suas tintas e tábuas verbais.
Bastava olhar para qualquer um daqueles objetos para ver também S2. O barranco solto no espaço tal um asteróide recortado, o trailer como uma casa de campo, os insetos guiados por intenções imperativas e maldosas: as histórias de S2 ressoando, moldando e moldando-se ao universo militarizado do trabalho. Não eram transformações sensíveis, não causavam alucinações ou materializavam o que antes não estivera ali. Agiam no passado. E assim, elas, as palavras de S2, eram em parte responsáveis por cada acontecimento lembrado. Sabia ele de fato o que eram aqueles poucos elementos que o cercava? Andava por caminhos que não os dele, guiado por alguém que mais parecia esconder do que revelar. O que já era em grande medida obscuro, tornara-se - estava explícito então - mentiroso. E S2 aparecia então como o responsável pelo segredo que S1 não havia tentado desvendar, S2 como o criador de um meta-segredo que, exatamente por não ter um motivo aparente, por ser tão explícito e despropositado, passara tanto tempo despercebido.
O que S1 ainda não vislumbra - o sentimento é difuso e espalha-se por ele com momentos de tontura e pontos cegos em sua visão, S2 como uma quadro borrado, tudo parecendo uma versão grossa de um original, de uma verdade não sensível e sim imaginada pelos sentidos - é a carga de responsabilidade que possui neste segredo, em sua armadilha e em sua cópia, talvez verdadeira. Ama, com ereções disfarçadas pela bexiga cheia, o cumprimento de suas ordens e a impunidade que, sabe anteriormente, protege suas agressões. Ama, com refrescâncias dérmicas, o aval que o dono do Segredo - ou o próprio Segredo, quem sabe a Solução - lhe concedeu para construir a própria mentira, suas armadilhas e cópias.
Há em seus atos no trabalho a atração pelo moldável e preguiçoso, pelo brinquedo que pede para ser mandado e possuído, que deve ser falseado, copiado, repetido. São mentiras, sim, Soldado. Mas você as adora. Qualquer Ordem precisa disso, digo. Pegue um monte de barro: eis um exército. O processo de tornar a lama gelatinosa, com pedaços que não interessam, colossais elementos mortos flutuando num microuniverso de elementos vivos, a vontade e a fábrica de tornar isso pedra é apenas um olhar sobre uma das fases da matéria - é um instântaneo, S1, você sabe; é saber piscar, apagar o instante não-visto, a mais grossa e infantil omissão. E você sabe não porque tenha sujados as mãos, mas porque foi, você mesmo, petrificado - e você, caro Soldado, entende quão parcial é este julgamento, digno do jardim de infãncia. Uma putaria, uma putaria difícil de justificar, por vezes também de explicar. E é nessa ferida aberta que as contradições apresentam-se, por assim dizer, pustulares. S2 é você mais do que você gostaria, um supersoldado que supera aquilo que nele você incute: eterna lama, descontrolada, girando e pingando trailers, casebres e insetos. O processo nunca pára: olhares, tons de voz, os ângulos de seus braços aberto em forma de asas, os pêlos do bigodes farfalhando mudos e o ouvido sempre atento a ouvir todas as besteiras são enormes navalhas, com lâminas grossas e cegas que amassam e, pelo impacto repetitivo, picotam em partes fibrosas e rasgadas a carne abonecada de seu amado antagonista. Armas que você não controla. Ao ecoar S2, S1 multiplica o conjunto todo, em formas terminais que, como imagino que tenha percebido, são deformadas e inextricáveis. Ainda que todos esses penduricalhos sejam seus e existam conforme suas ordens, os meios e as conclusões não lhe pertencem. O carrossel não tem limites de velocidade, e o que ele arremessa não são mais os cavalinhos que plantou: existe uma força além que, exatamente no momento em que S2 pinga por aí, observa sua lama e transforma os montículos de ordens - e, afinal, a própria Missão - em algo que não é deste mundo: é do seu mundo, de sua sombra. Digo, pois: toda a diferença existente entre vocês foi construída por você à despeito de você. Interessante, não?
É chegado o momento de você fazer aquele pequeno sacrifício que toda Batalha necessita: depois de olhar bem para suas mãos, movimentar o dedos, testar se o sistema funciona, colocá-lo fundo dentro de seu ventre, recriar a União, a Hierarquia. Tirar o colete, as roupas, descalçar os coturno e tocar apenas sua pele, essa proliferação limitante de você, romper sob o toque suave da sua vontade. Enfiar a mãos com tudo, chafurdar entre ossos, jubilar-se na sujeira e na sensação quente de Dever cumprido. Enfie bem a mão, até ver, de cima, sob o nariz, apenas seu antebraço saindo do tronco, como um galho e como uma vela de cera viva, o rifle cravado no solo, nada vazando, a operação sob controle. Olhe com os dedos, existem glóbulos sem pálpebras na ponta de cada um deles que farão parte do serviço para você, carbônicas lanternas infravermelhas. O que eles acham por trás dessas estátuas, desses brasões de lata ofuscante, desses campos de lápides metálicas é o ínício da resolução dos seus problemas, o primeiro degrau. Não é palpável, mas contrações virão. Ele se remexerá e seguirá aquilo que da sua mão emana. Não é vivo, mas aparecerá diante de ti como um dínamo de luz enferma amarela-oleosa, tornará tudo pequeno e insuficiente e explodirá, orgânico e lento, tomando o Disco Voador e movendo seu corpo tal uma inércia órfã.

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S1 e S2 são dois soldados brincando de quem pisca primeiro. Dois homens vestidos de farda, com coletes à prova de balas, prostrados um de frente para o outro em uma paisagem solitária de São Paulo, na frente de um trailer, de um barranco em forma de U e de uma poça de matéria barrenta que escorre de cima, se aloja em volta do trailer e - para quem olhar mais de perto - ameaça afundá-lo. Suas sombras alongam-se em direção ao barranco.
S1 olhou de novo para S2, cada pedacinho da pele de seu rosto de boneco estufado, tudo tão liso e palpável, aquela materialização filmesca de "companheiro" e espetou sua barriga com dois dedos, fortemente. S2 deu um pulo, gritou "ai", disse um "se liga, mano.." e S1 sorriu. Bolhas aparecem na roda dianteira esquerdo do trailer: ele afunda fartos 7cm.

- Soldado, ponha as mãos na cabeça e ajoelhe-se devagar, diz S1

Ele tem o cano da arma apontado para o início da barriga de S2, que se abaixa em resmungos, os chaveiros fazendo barulho. S1 levanta o cano da arma até a cabeça de S2, pressionando e abrindo uma clareira nos poucos cabelos. Ordena:

-Vamos lá.

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A bunda de S2 eclipsa o céu que S1 deveria ver. Estão na escada lateral que leva ao teto do Disco Voador, o cano enfiado fundo nas dobras das calças de S2, não se encaixando por um escorregão. Os canos da laterais da escada são de alumínio quase quebrado em mais do que cinco partes, lâminas acompanhadas de pequenos furos de bordas vermelhas em mais momentos do que o desejado; agarram-se a eles e pisam, com lentidão e cuidado, em degraus de madeira enegrecida. Um barulho como um estourar de bolha vem de baixo e percebem: o peso dos dois animais sobre o trailer fez-se sentir.
S2 arfa para conseguir se estabelecer sobre o teto (primeiro uma mão, depois um esforço de todo o tronco para conseguir que sua barriga torne-se o ponto de apoio do corpo, se balança ligeiro até que a outra mão use do atrito para puxar todo o resto e permitir que fique inteiro de bruços sobre o velho metal sujo, uma enorme minhoca); S1 o segue, atlético.
Entre a ordem de S1 e esta chegada, houve resmungos, olhares e gesticulações - até antes de começarem a subir, S2 ainda espalmava as mãos para cima na altura dos ombros, balançando a cabeça; era possível ver o canto da boca esticada em um destes balanços, no que poderia ser uma semi-risada de descrença com a situação ou um movimento não-consciente de repúdio ao algo que amargava seu gosto. Talves um tique não percebido. Enquanto S1 o encaminhava para a escada do trailer, com a arma em suas costas, a mão do gordo alcançou o cano e, antes que S1 agisse, explicou:

-Calma, calma, mano... é que aí tá doendo. Põe um pouco mais pra cima, assim, de boa - e S1 concordou.

É devido ao sentimento de cumprimento da missão que afinal o colocou em tal situação - pensa o Soldado - que olha, lá de cima, ainda recém-chegado, ajoelhado e quase deitado , primeiro para baixo, para o que estava então para trás. Sente-se imóvel na borda de um túnel vertical que investe contra o chão. O líquido gosmento, dali, parecia ter a profundidade de uma lagoa: nas beiradas mais claro, mais escura no centro, o trailer sendo puxado como um ponto no hiperespaço. "Será?", pergunta-se, virado para os casebres e o mato, que enxerga adiante. Deita, com o cano descansando nas costas de S2, ao lado dele, ambos de bruços. Um minuto e menos do que dez segundos se passam sem que digam nada, o rosto virado para telhado levemente aquecido, com ao menos três camadas de diferentes dejetos em pó a criar uma tela abstrata.

-E...
-Shiiiiiuuuu.

Podem pular, um depois do outro, o espaço entre o trailer e o barranco; ultrapassá-lo com um grande passo, correndo o risco de uma desproporção não imaginada pelo olhar; ir lentamente, imitando lagartos ao usar os cotovelos e deixar seus corpos caírem no vão para puxarem a si mesmos pelas mãos; podem sair correndo e se jogarem no outro lado, de costas, frente, de barriga e cabeça, como se o que compusesse o solo de lá fosse espuma, água ou borracha preenchida com ar. S1 imagina a situação como o estrategista que acredita dever ser, desenha possíveis cenários a serem vistos, o posicionamento do líquido, a provável forma de sua origem, conta os movimentos e estabelece relações de causa entre um e outro (representantadas, no quadro ilustrativo mental, por linhas pontilhadas), tentando achar a finalidade que essas relações poderiam acarretar por si mesmas - não há no momento, nenhuma barreira a ser respeitada.
S1 fecha bem os olhos em sua tentativa de concentração e sente cócegas em sua nuca, pontos frios migrando e causando a pressão equivalente à que faria um rato de papel dobrado. Leva a mão até lá, em velocidade proporcional ao carinho concentrado que recebia em parte tão mal tocada de seu corpo, esquecida por ele mesmo na maior parte do tempo. Sente primeiro os pêlos grossos que se espetam no ar e, antes que ache a pele, o formigamento toma seus dedos e logo salpica na palma, sapateando à maneira de uma pluma. Seu corpo estremece em agradecimento, fecha a mão sobre o presente e o escorpião o pica.
Bate as mãos contra o trailer, pula, sacode a roupa, o colete, bate com os punhos nos coturnos em dança neurótica, grita abafado um gemido de medo a observar sem se deter o torvelinho de cores que o entorno virou e vai tropeçando em algum instrumento de reboque instalado ali em cima, uma manivela ou grade, de costas e girando os braços, procurando sem sucesso algo em que segurar, ato espalhafatoso que poderia dar a impressão de estar só a fingir que sua queda é assim tão complicada e cheia de detalhes. Tropeça, seu corpo levita e cai sobre o chão, do outro lado, rola mais um tanto, rola muito, com os olhos abertos, ainda com medo de que algo venha lhe acariciar de maneira ingrata. O vento entra feito limonada e ele solta água a terra por suas narinas sujas pelo curto incidente observado com paciência por S2, que o seguiu e já está de pé ao seu lado, tentando levantá-lo.

-Ó, caiu... - e o gordo lhe estende a arma.

S2 a pega e põe-se em posição de assalto (agachado, os ombros juntos do corpo e o tronco quase grudando nos joelhos, os membros tesos e a arma segura pelas duas mão, uma no cano e outra no gatilho, olhos apertados). Haviam deixado o Disco Voador.

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É o final da manhã e as nuvens esgarçadas e finas tecem um alvo tecido homogêneo sob o azul claro, desnudam a abóbada: uma abertura de 180º entre um limite e outro, cuja medida precisa poderia ser alcançada até pela metade de um equipamento de tamanho adequado e que, ali de cima, tem o poder de abranger e resumir o que veio até então; era possível enxergar a estrada vazia, a estacionamento e seus casebres, o mato alto e o trailer. Comparado com o que costumava precedê-lo, detém uma camada a mais de realidade. Mas havia, para S1, apenas sua mão, sua mão com os dedos grossos pulsando menos de um décimo de milímetro pelos jatos de sangue que, por centenas de canais, irrigavam aquilo que fora o único sinal do escorpião fugido. Ele olha sua mão e apenas ela, acreditando que saber mais e mais como ela está a cada segundo e de que maneira as consequências da picada evoluíam não seria de maneira nenhuma um problema - poderia não solucionar o que ocorrera, mas também não pioraria. A arma pende da esquerda, apontando para o mesma terra que entrara e saíra pelo seu nariz quando rolara depois de cair feito um deficiente por sobre o vão entre o trailer e o barranco.

-Caralho, caralho, que merda, Soldado, que merda - geme S1 para S2, que está de costas para ele e faz um barulho de bocejo enquanto mantém-se de costas com os dedos entrelaçados segurando a nuca.
-E essa mão, Soldado? Que eu faço com essa mão? Isso dói pra caralho, pra caralho.
-...
-O que eu faço? Olha aí, toda zoada.
-...

S1 sentiu-se ridículo por falar sozinho. O gordo continuava parado. Virou o pescoço e abriu as narinas, que ainda coçavam. Firmou a arma em suas costas, espremendo dele um "Umf".

-Pô, de boa, não sei, mas... acho que limpar isso seria às pampa... - diz S2, e aponta, com um dedo que escapa do entrelaçado para o fio da matéria gosmenta que escorre e deglute o passado recente dos dois.

S1 pensa de novo, olha de novo. Ali em cima, a matéria era até um pouco mais clara, mais líquida. Poderia dar a sensação de que a cor barrosa que tinha no degrau inferior, no Disco Voador, relacionava-se à carga de terra que o curso do pequeno rio carregava em seu movimento, sujeira acumulada, pois ali em cima era um fiozinho radicular que, se visto da maneira correta, tinha a beleza presente nas pequenas imitações: a tripinha chegando a um deserto muito, muito distante. Molhou a mão boa e cheirou. Tal água: transparente, límpida e um pouco fria.

- Que se foda... - e mergulhou o ponto avermelhado, pequena verruga incipiente, no riachinho - que, tal água, se esparramou e tomou toda a superfície da palma. Com a outra mão, deslocou outras tantas gotas para o ferimento, esfregou um pouco e esfregou mais e mais e mirou cada gota que escorria dos dedos para o centro do micro-buraco, não querendo perder nenhuma capacidade de limpeza, nenhuma possibilidade de cura (ainda que provisória) que a - já - santa água cristalina e lunar poderia apresentar. Deslizava pela carne em processo de endurecimento, com vontade de concentrar o sangue e, assim, de maneira preguiçosa e vaga, estancar a distribuição do veneno, sentindo ou formando nodos: usava as falanges para abrir depressões temporárias na carne, vermelhas e retilíneas, e formava, pouco a pouco, um sol e uma espinha vulcânica no ferimento. Começava a brotar água (externa misturada com interna), o que proporcionava a S1 uma calma passageira. Não havia sangue e aquele pedaço de sua mão, pálido e pulsante, estava morto ao olhar, todo melecado com uma gosma que era agora, contra pele, algo como sêmem misturado com terra - provável resultado da fricção constante dos dedos contra a palma - e que caía da mão às pelancas, bolotas gelatinosas com pontos pretos multiformes, não deixando rastro líquido, retirando-se de S1 sem maiores preocupações. Se o Soldado não continuasse molhando, não demorava para aquilo ficar seco e fétido: relacionava-se à animais, tinha o gosto do desleixo e de vísceras misturada com pêlos e carniça, doce sobre madeira, um boa mijada quente sobre o monte de matinho usado com freqüencia pelos machos do grupo. S2 achou que fora tocado por um extrato ôrgânico subitamente indesejável e apavorou-se com a possibilidade (real) de que aquilo, junto com outro extrato similar (o veneno), estivesse correndo pelo seu sangue, chegando ao seu pulmão, rins, coração, pênis e cérebro. Um monte de bichos - e seus algozes - ali dentro. Esfregou o que sobrara na calça e, com pequenos tremores no pescoço, pôs-se de pé (estivera todo o tempo de joelhos, bem perto do curso do líquido). Olhou para S2 (enviesado, olhando à frente) e, com a dor animal subindo por seu antebraço (liso, estufado), começou a andar.

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É o final da manhã e o que há do outro lado é um completo descampado, uma clareira tão feita de terra quanto a do degrau de baixo, uma terra negra riscada em branco e rachada por (ora) incontáveis caminhos que chegavam até um barranco, tão duro e alto quanto o outro, mas também escurecido, de paredes recortadas e afiadas, lâminas de terra que surgiram de prováveis deslizamentos pedaçudos e pontuais; pedroso e quase brilhante sob a abóboda branca que guardava tudo acima, sem limites laterais visíveis. As rachaduras se afastavam irregulares pelo solo e eram acompanhadas de milhares de pêlos verdes, plantas sempre curtas ou ali incapazes de crescer mais do que cinco centímetros e que mexiam-se, a despeito da direção contínua do vento, como algas esquecidas em um oceano arenoso. Em um dos filetes de terra, equilibrando-se infantil, o riachinho que servira de água para S1: ele segue então as suturas verminescas como uma criança persegue os círculos dos caracóis, temendo que os cânions fossem de tal maneira profundos que um passo pesado pudesse pôr em perigo as estruturas imaculadas do solo.

-Ae... vamo de boa, certo? Certo?, diz S1.
-...
-Aham, isso. Você na frente, né? Mostra o caminho aí.

E S2 foi, cambaleante e profundo, seus ombros mexendo-se tal as bordas de uma caravela em mar medianamente agitado; deixava pegadas lunares na terra fóssil e não olhava para trás. S1 distraia-se com a crença de que era, ainda que impotente de controlar seu corpo depois que o passo tinha sido dado, capaz de prever deslizamentos ou as quebras dos filetes de terra sobre os quais caminhavam: "Devagar, assim... boa, boa" pensava quando, sob a sola, o que pisava parecia ser inteiro e confiável. Era um exercício de crença, que ajudava também a esquecer a mão que engordava e tilintava em finais agudos e elétricos.
Foram 109 estudados passos até poderem chegar em um ponto em que era possível enxergar com nitidez a parede do novo barranco. Não era todo negro, como parecera antes. Era de um marrom forte e granulado de brita, e sua aparência escurecida se devia os pequenos buracos que perfuravam as lâminas, mais buracos do os que seriam feitos por uma metralhadora automática comendo livre o ar e a terra; careciam de luz. Cada pequena escavação, cônica e redonda e de paredes aplainadas, era o término de um dos cânions que ameaçavam a establidade de S1 e S2, o começo ou final de uma extensa marca de nascença; em seu conjunto, tinham o aspecto de uma vida coletiva que nascera ali, uma vida há muito extinta, fungos ou colônias invisíveis que se nutriram do pobre barranco, cobrindo-o de feridas cicatrizadas, endurecidas e caídas, tornando-o uma grande esponja morta. Marcando sua metade, o corrimento de líquido gosmento cuja queda era um milagre. S1 engoliu (sua garganta parecia inchada e dolorida) e apertou a arma contra as costas de S2.

-Agora é pra subir, né? De novo, cara. A gente vai subir e a você vai terminar a porra do serviço, OK? É, mano, é a função.

S2 adiantou-se ao paredão e parou, com a barriga mais para a frente, a cabeça quase caída e os joelhos flexionados, o perfil em S. Faltavam pouco, dois ou três metros, para conseguirem tocar a terra do barranco, mas S2 estava parado.

-Vai, meu! Ou! Vai meu!
-Mas...

Da sombra algo vinha, S1 percebeu do que o gordo falava: movimentos em um buraquinho imediatamente ao lado do fio de líquido caindo, perceptíveis pela visão, um riscado no ouvido. A primeira parte vista era uma pequena luva inflada e de dois dedos globulares em relação tipo alicate, duas pontas finas, entortadas e encaixáveis. Não havia engrenagem possível entre elas. Um bulbo que fôra esticado, puxado em um ponto - e que deveria estar quente, em estado de fundição, para a anterior transformação. A luva, grossa, claramente dura e óssea, afinava-se e engordava, conforme era expelida do escuro; trilhava um destino que só ficou claro depois que, sob o manto de luz, mostrou-se conectada a gomos, a patas, a uma corda crustácea, ao marrom-escuro e a uma minúscula cabeça, ervilha feia e desnutrida ou o artifício da magia negra. O escorpião saía aos poucos, tímido e temeroso - não que quisesse, mas agora já não poderia parar. Não era a luz, pensou S1. Eram os dois. A descoberta feita. Os intrusos e toda uma eternidade de intimidades minerais desveladas. Sua ervilha não tem exatamente olhos, mas ele sabe que é observado - as maneiras das conclusões nos são negadas, caro Soldado: temos a mais nova última barreira, o mais novo universo. Tolhidos de entrarmos, não podemos ter certeza se esta incapacidade é universal ou se é a besta que está a nos penetrar sem sabermos.

Ele já está inteiro de fora, grudado na parede de terra, anda rápido e mergulha em outro buraco. S1 e S2 movem os pescoços lentamente, espectadores. No canto da órbita de suas vistas, mais movimentos: ele reaparece em um buraco diferente, distante do primeiro, apenas para mergulhar na terra de novo. Começa uma música simplificada: a cada nota que desaparece, outra surge, sempre carregada, molhada do eco de sua anterior, sem vazios: no momento em que o rabo sinuoso some, uma garra vem, à distâncias variadas, indo e voltando da esponja, conhecedor de entradas secretas, desvios e precipícios, do que há dentro. Talvez o próprio arquiteto. Duvidam do que vêm, do que assistem passivos? Mas o que você sabe disto, S1? E se deus, aqui, no segundo andar, tiver uma maneira diferente de mostrar-se; se a soma de tudo não for apenas um reflexo abstrato - de você, seu colega e congêneres? Se esta possibilidade for a certa, não duvidará mais, Soldado. Não terá este privilégio.

O que pareceu timidez e temor será um aceno Real, uma breve atenção dada para desculpar o alheamento. É necessário – ainda que não útil - olhar de novo. Que vontade de rir, de gargalhar de tudo isso em zombaria barulhenta ao ver os brinquedinhos de corda aparecerem da fornalha por meio de suas chaminés amputadas, arrancadas. Mas não o faça, ainda não, mantenha algum respeito, pois cada buraquinho negro do grande barranco, com suas lâminas negro-terrosas, está a observar o que há fora, a julgar e a emitir sinais uns para os outros. Uma grande expelição, um show de águas dançantes; é um espetáculo da Ordem: uma fila de acontecimentos interdependentes, alinhavados por grossas correntes: fim e início, um atrás do outro, um necessário ao outro, mas... Vê? Ele não está mais sozinho entrando e saindo: traz amigos, companheiros, partes de si: a mamãe ganso e seus filhotes, cada vez mais numerosos; uma linha que aumenta e aumenta, multiplica-se a cada nova reentrada em uma órbita interna, seguindo uma gravidade que não a sua: são grossas correntes sim, mas correntes de escorpiões marrons e negros, de diferentes tamanhos e pesos, a povoar toda a parede, subitamente a percorrer mesmo seus ângulos mais oblíquos, de ponta-cabeça e de lado, roçando no líquido gosmento, com os pêndulos cheios de matéria estrangeira sobre as costas, quase as tocando; unidades cegas e infectas e indivisíveis, clones de idades variadas que trombam, sobem e batem uns nos outros, em não-reconhecimento ou intimidade completa com o semelhante; ouça bem cada jovem trovoada criada pelo encontro de ferrões: badalam a chamar os outros. E você não pode mais saber onde está aquele primeiro.

Eles são o próprio barranco e a convulsão de notas, toda parede está tomada por uma relva brilhante de escorpiões que não deixa mesmo um centímetro quadrado de terra à vista - e, assim, as correntes flutuam convulsionadas sobre o descampado, sem sinal aparente de função, quadrado de vacuidade que sopra um vento amaldiçoado e quente para trazer o de cima, de novo: é um uivo, um chamado. Percebe que bonito Soldado, tal despropositado? A cena é para vocês, homens de cabelos despenteados frente à origem deste hálito subterrâneo. Uma grande abstinência que, na árida selva que encontraram depois que deixaram o Disco Voador, aponta para um caminho a ser seguido; uma demonstração de boas vindas para um homem inoculado pelo sentido que cada um dos escorpiões de chumbo carregam. E para sua besta particular.

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Não durou um minuto. S1 e S2 quase encaixados, interessados na poeira que veste a fronte do barranco: o efeito do farfalhar das patas e do roçar dos escorpiões é uma cortina de partículas sem cor definida que cai, lenta, e desnuda todos os buracos de novo, tão objetivos e profundos como antes: flocos e pontos voltando. Quase ao alcance das mãos, a terra ganhou novas cicatrizes e remendos, que lhe dão a aparência de uso, traços das passagens. Impossível aos dois saber quantos mini-castelos detalhadamente construídos por acontecimentos parecidos haviam destruído com seus passos desde a chegada no segundo andar. Olham para trás e já não vêem as próprias pegadas.

O fim da apresentação cria uma ausência súbita cujo contra-fluxo os leva a procurar à que atentar - e S1 vira-se para seu membro todo roxo e com veias azuis que levam a um balão com dedais suados. Ela olha para aquilo, que volta a aumentar e diminuir como se fosse independente, e, com asco, pergunta a S2 se pode considerar os efeitos da picada normais. S2 responde. O Soldado não sente mais do cotovelo para baixo, não pode mexer nada e sente-se abandonado por uma parte que sempre fora sua. Balouça a cabeça dolorosamente, o pescoço duro, com o rosto virado para o chão e suas estrias profundas. O peito a doer e a respiração a querer ir embora.

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Em direção aos lados, não era possível saber se a terra desaparecia aos poucos atrás das partículas do ar ou se o barranco voltava-se sobre si mesmo, fechando-se, acabando: existiam manchas ao longe, sim, eles viam. Mas eram tão incertas, esfumaçadas e parecidas com o que mal encobriam - remotas formas retangulares saindo da terra marrom-esverdeada, troncos gigantescos cobertos e misturados com nuvens cinzas, altas e baixas, a formar também outras imagens próprias e mutáveis de acordo com forças distantes - que estes destinos não eram nada mais do que temerários, se é que existentes. S1 com o arma a apertar as costas de S2 e os dois ainda torporizados. Não há bordas às quais contornar para a subida e não parece seguro andar sobre os filetes de terra mais do que já haviam feito para chegar à face do barranco. Talvez estivessem em uma curva de nível, talvez não pudessem ter certeza.

-Abaixa devagar, Soldado -, diz S1, sem muita voz, e S2 se agacha.

-Ae. Agora eu vou subir, bele? Vamo subir esse caralho e começar a limpeza do bagulho. Nem vem. Vamos escalar, vamos escalar. Senta! - continua, rouco e velho, com um esforço raspado.

O Soldado guarda a arma no coldre, passa uma perna e a outra por cima da cabeça de S2, e ajeita-se nos ombros do companheiro - ainda falta corpo para preencher tudo: sobra carne sob o colete para apoiar a mão sadia, que também se segura na cabeça antes que o gigante comece a levantar. S2 está frio e duro e S1, com a manopla largada tal uma peça danificada de armadura, sente-se sobre uma pedra ambulante talhada em forma de homem, cuja cabeça é um prato com fios sendo perseguidos pelo pedaço de couro cabeludo visível que se apresenta como uma ferida posterior, a crescer em velocidade ancestral, movimentando-se como todo o resto que vislumbra do alto, para onde começa a ir: o pó a voar ao longe em redemoinhos apenas intuídos, dentro de uma estufa ou aquário com plantas de plástico, montes esparsos de folhas terrenas ao fundo, a levantarem-se tempestuosas e repetitivas: denunciam ou reverenciam o que está no subsolo, protestam em silêncio contra os motores vivos que as mantêm assim, queimando em penitência coletiva e ensaiada - mas nada nem ninguém que não seja também parte da maquinaria. E o que não é? S2 está quente e S1 sente-se também esquentando, já no alto, um mais um igual a um. Poderiam ser um monstro, mitológico, cinematográfico, bufão. Mas têm as expressões tão limpas: S1 com os olhos prensados, S2 usando a boca semi-aberta para evidenciar sentimento próximo do tédio. Nada parecido com a imagem de um filme (essa origem de todas as imagens). E é preciso parecer com alguma memória? Compartilham do pacto infantil: não há brincadeira que não tenha um sentido dramático. O Soldado, de cavalinho perante o barranco, sente-se com o instrumento necessário para enfrentar o entorno: confia não em S2, mas naquilo que ele sempre fora, agora claro como o céu que encharca e transforma a visão: uma peça. Usará aquilo - que não mais falseia sua natureza, não grunhe, não fala, que foi educada - para subir e descobrir a origem daquela matéria que sugava o lar do trabalho que ele jurara - mesmo sem saber que um dia precisaria chegar onde estava para honrar tal compromisso - proteger e servir. Resta a ele perguntar quem educou a peça e para quê: parecem um, mas não o são.

S2 não precisa seguir ordens: puxa as pernas do companheiro mais contra si, o que aumenta a pressão em seu pescoço, aperta os fundilhos de S1 e causa um curto mal estar na altura da barriga do Soldado. Ainda estão se acostumando com a nova configuração e o primeiro passo é um ensaio - há um balançar controlado para um lado, a pressa de S2 em voltar ao primeiro equilíbrio, o segurar-se no ombro. Pronto: os buracos das lâminas de terra preta estão maiores e o que há dentro deles, mais próximo. S1 aperta o nariz do companheiro, que nada diz. O segundo movimento é mais equilibrado, o passo é maior. Pronto: não há mais espaço a ser percorrido, chegaram ao sopé do barranco; não há mais terra, contínua e segura, à frente, e sim buracos - eles não são tão redondos como pareciam, nem tão bem escavados, nada simétricos; alguns têm dentes em suas bordas, quebrados e pontiagudos, pequenos, feitos com esmero ou talento impaciente; outros, vindos com o todo, não dão mostras de algum dia terem sido feitos, como se, a partir de cada um deles, o resto de terra tivesse se expandido. São imensos, vistos de perto, com suas paredes grossas, a profundidade de um sonho: ouvem ecos de pingos, de rastejos, de sons inimitáveis: raízes crescendo e velas bruxuleando e um chuvisco ao longe. Ouvem os gritos sussurados por crianças. O vento, quente como o sentido antes, sopra pequeno dali, igualmente dividido em cada um dos orifícios.

-Vamo subi, vamo subi, diz o Soldado.

S1 não sabe o que o outro vê, há apenas sinais de que o show acabou e está na hora do longo intervalo, de que não há nenhuma responsabilidade adulta envolvida em seguir o chamado com prontidão: vislumbrar pela janela da fortaleza perfurada, jogar com força seu rosto à terra e senti-la, maternal e calada; os ecos funcionam, depois de tocados, como fios que deslizam sobre suas bochechas, por meio de diferentes rotas, abrasivos e confortáveis, os pontos de pedra vibrando contra sua pele de acordo com os pedidos do que há dentro, dos acontecimentos e olhares intrauterinos, entrando em equílibrio termostático: ele gostaria de poder ver a floração e os irmãos que com ela sairão, em seu tempo, pesados como pequenos frutos rochosos. S2 penetra dedos e começa a subir, um movimento por vez, fechando as mãos sobre o que sobra entre os buracos; os mapas recortados de terra fina e metálica proporcionam uma subida transatlântica em águas antártidas, o éter cheio de asteróides gelados que rasgam a pele do animal que este King Kong carrega. S1 está assim: febril, virado para a terra, esfregando-se na parede negra, que se espalha sobre seu rosto molhado e lhe dá a aparência daqueles que conhecem no que chafurdam. Sente-a com a boca, os arrepios a mastigá-la e aponta seu olho semi-fechado esquerdo para um dos buracos: mergulha sua sensível camada gelatinosa pouco, muito pouco dentro - mas dentro. Aguarda e são manchas solares que percorrem o glóbulos, impossíveis de focar, apenas recordando imagens que se locomovem, voltando em marés: espectros de vida molham-se em sua córnea, comem suas migalhas, nela se imiscuem. Um leva o outro para cima.

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É o começo da tarde e o sol está mais forte, camuflado no ar, sua vida embaçada correndo pela imensidão até cair sobre os dois, S1 sobre S2, de pé diante da casa e do jardim. Não é o mesmo descampado: nele há uma Construção precedida de uma grade que precede um lago - pequeno ovo, espelho sem bordas, como uma poça congelada - de onde o fio de matéria grudenta escapa, se aglomera em diferentes pontos e escorre, sem precisar de declive algum, até chegar ao barranco. Há uma casa, sua parede nua e o telhado piramidal de aço moldado, o conjunto retalhado pelo portão quadriculado que nada guarda à frente, alijado que está de suas laterais: restou ali, sobrevivente de algo anterior que não deixara pista alguma, um menino magricela esquecido pelos pais. Na parede, manchas negras escarradas sobre a tinta branca (corpos, dedos, cabelos raspados ali) desenham uma cena e, acima, pequenos pontos esverdeados crescem em direção à proteção do zinco - e a parede se afasta rumo à formação retangular, como uma caixinha de brinquedo desproporcionada. Há, afastados de cada canto do fundo da casa, um varal, formado por duas traves, que atravessa todo o costado da construção em apenas um fio quase imaginário que corta a paisagem indistinta. De lá vêm o chiado de folhas sendo cortadas por alicates.

S1 está sobre S2, que dá passos firmes sobre a terra firme e poeirenta, levando o colega e sua arma nos ombros. São passos em zigue-zague, percorrendo com lentidão uma pequena distância, cambaleando. S1 quer saber onde chegaram, "onde tá a bagaça" - a voz que vai -, pois balança-se muito nos ombros do colega e nada acontece, esfrega a mão ainda útil contra os olhos, aceleradamente, e nada acontece. Ele diz a S2 que há algo que não acontece e que nada vê. "É a terra", diz o outro e S1 mantém-se calado, posiciona quase toda a primeira falange de seu indicador dentro de cada uma das órbitas, e tudo ainda continua escuro. Depois de ao menos dois minutos de tentativas, a coceira some, deixando a dor das esfregadas e o escuro.

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Era a mão, enorme, criptante, cuja cor variava de acordo com ângulo que era vista e que lhe dava a sensação de carregar uma grande bolha de pus gelado abaixo do cotovelo, tal uma garra sem uso; era a garganta, entalada dela mesma e de seu inchaço, as carnes internas quase se tocando e impedindo a respiração plena; era um calor que grudava sua roupa à pele e ao colete, que tornava tudo pesado e não-seu, um carregar sem fim de tantos itens que já não necessitava.
E agora eram também os olhos. Não podia ver, estava cego. O que estava à sua frente? O escuro, aquela falta povoada de outros pingos, de respirações, cheia de uma dimensão interna e escura, estrada sem bordas com faróis rasgantes que passam e voltam, sem saída e que têm S1 como veículo e passageiro, em linhas amarelas e azuis, circulares e ofuscantes: que merda é essa que está à frente de nosso Soldado? É pouco, muito pouco - sua mão e sua garganta e todas suas articulações vibrando doloridas e molhadas e pesadas, dissolvendo-se em elementos que se sobrepõem e interagem: uma mão que nada vê, perdida em seu movimento de pêndulo, chamando socorro sobre a gangorra; uma mão que entra com estrépito de réptil e que a tudo torna febril e que pega com cuidado os pequenos pedaços de suas carnes internas e, no negro, as faz serem uma só, ponto a ponto em uma costura seca que provoca o tato, uma mão que sabe o que faz, que tem o mapa das vias, mesmo que não precise dele, mesmo que dele seja a autora. A garra está dentro de S1, segura com a ponta dos alicates o coração do Soldado e a ele faz gracejos e volteios, o seduz antes de agarrá-lo e fazê-lo espumar com o sangue velho que não entra nem sai: está presa e revolta e luta para que ao menos riam dela - ainda que não tenham aberto os olhos. Sobe, sobe como ele, esfregando cada parte intocada e inexistente do corpo, dá um oi pelas narinas, dobra-se sobre si, entra em juntas e continua a conhecer o que há no escuro, a criá-lo. Quando está onde o ar é rarefeito, ela pára e escorrega tal serpente pelas voltas cinzas e verminosas dali, cheira os cantos, puxa ponta a ponta o novelo e deixa pontas para trás, um emaranhado de massa feia e fria, basta uma momento para que tudo vire uma escultura mole, tão homogênea e inútil quanto antes. Vai. A mão lambe uma menina de jeans e esmurra postes, chega nua à festa e dela toma conta, contando histórias mentirosas sobre suas viagens e seu Destino, entra em casas e come o que lhe oferecem - ratos e rostos e rastros de pó -, devorando com especial apetite os convivas e deixando os anfitriões prontos para o jantar, enrolados e amordaçados pelas peles que se esticam em volta e dentro de cada um deles. Não os toca. A mão nada no suor de suas presas e nos gritos distorcidos de canos raspando contra o chão, dá batucadas, organiza um concerto de estocadas nos ouvido, senta nos buracos, tapa mesmo os vãos entre seus dedos esverdeados e deixa todo o pessoal apenas com o ar que sempre tiveram: cada um se vira com o que sobrou em seus pulmões, um lento estrangulamento. Ela olha para trás e relembra de onde veio: onde está aquela tempestade que em nada espatifou, que trovejou em nuvens brancas, que se escondeu sob a terra esperando? Tudo o que tem, agora, a mão, é esse pouco, esse conjunto simples que só sabe presentear com dor e confusão. Ela quer sair, a garra, que voltar, sentar no velho telhado e guardar gesso sob suas alongadas unhas, depositá-lo nos bolsos, retomá-lo na cama, mostrá-lo aos irmãos. Mas os buracos são pequenos, eles nem sequer estão aí de fato - não são janelas, são bueiros que levam de volta à superfície. Onde estão os cristais, os campos de cristais que sempre estiveram atrás de casa, que eram vistos em sua grande transparência quando elas e os outros subiam em forma de negro balão, quando olhavam para baixo mas também respiravam cada ponto intangível de dor e confusão, entrando e saindo como eram? Estava separada e tremia, e com ela todo o resto.

S1 tem longos cílios saindo dos olhos, antenas e cordões orgânicos que caem sobre seu rosto, o chicoteam, e eles olham para a casa à sua frente, castelo que se ergue no patamar tal um carvalho com tijolos impedindo as portas e as janelas de levarem para dentro - os tijolos estão grudados por barro vermelho e cada uma dessas junções tem pequenos orifícios acuados - e uma torre: o castelo é apenas uma torre com suas saídas lacradas depois de serem escavadas. Sente seus ombros a balançar e grita com a voz perdendo-se "Cadê? Cadê, mano?", leva ao menos um braço à frente e seu monstro particular ainda treme em espaçados segundos, carregando-o com um equilíbrio de moça cada vez mais para o castelo e suas portas soldadas com vermelho, para onde a garra se sentirá como num ninho, todos tocando todos em um abraço de recém-nascidos selvagens, uma meleca fétida servindo de proteção e mãe e pai, todos comenda dela e deles mesmos, pedaços faltando e largados pela ala leste do lugar, as longas jornadas em busca do irmão já morto. "Tamo chegando, guenta aí...", diz o Outro, e de fato vão, pois a garra aperta cada vez mais a garganta e esquenta seus quadris; a garra pôe a língua para fora, ela quer o metal e todas as pedras, quer poder vislumbrar a Casa e se ver livre desses limites em que se meteu, precisa urgentemente de ajuda e S2 diz "Guenta, mano. É a terra, é a terra. Mas já tô ajeitando aqui, tô tampando o vazamento" e ele é sábio, pensa S1, porque é uma terra em que ele nunca pisou e que nele entro queimando, transformando-o e fazendo crer em seus piores medos de ser alguém que não ele mesmo. Ouve o barulho de um morto rolando em dois tempos e parte do fluxo termina, sobrando ecos e ecos de sombras ao longe nas curvas daquele rio intruso e escuro feito lama.

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Tinha a largura de uma pilastra o bicho largado sobre si, um tronco caído na terra branca cujos movimentos lançavam o pó ao ar para repintá-lo, seca que depositava-se em seu lombo comprido e escamado de pêlos curtos e duros e espinhosos. Movimentava-se fazendo desenhos com a pata, fendas profundas e beges no solo da cela sem grades em que estava confinado, sempre com a mesma pata, como se a outra fosse ferida ou prótese perfeita. As grandes unhas lançadas corriam de acordo com a entrada de ar em suas narinas rachadas, levemente plásticas, com uma aba retorcida para cima a mostrar o começo do lado ainda não revirado; e desenhava com a certeza de um homem traços que pareciam caudas e caninos e músculos estriados, tudo mudando de acordo com o que vinha depois, acumulando-se num bolo ora indistinguível de momentos passados que eram, a julgar pelo interesse de seu olhar, também irreversíveis. As patas de trás, um pouco mais paralizadas do que o resto, tal uma pintura feita no solo e encaixada sob o corpo que veste o manto de felino; a cabeça planetóide, um capacete espetado de pêlos finos e muito compridos que mesmo assim não caem sobre si mesmos, que não se deixam vencer, sobe em direção ao fio que percorre o ar acima em parábola preguiçosa, observando todos os que nele se seguram. O leão no fundo da casa não os vê, nada os vê: S1 e S2 estão desaparecidos para os vivos e os mortos - o fundo de construções e prédios tremulantes, tão longínqüos e tão agradáveis em sua natureza oleosa, o grande cenário montado por estrangeiros.

-Mano... - S2, quase irreconhecível.
-Que é?, diz S1, incapaz de ver o que o outro vê.

No pequeno quadrado forrado de talco do grande animal há apenas ele e fios de matéria cinza, viva e recém-tirada de algo vivo, espalhados à volta de seu corpo e à volta de sua boca sem dentes, restos do banquete do dia a sujar-lhe e lembrar-lhe do que há de bom para o jantar. O leão observa o que há acima com olhos verticais e amarelados e vazios, sem íris ou cristas, ilhados por lagos negros de pêlos que escasseam, como se daquele centro um incêndio tivesse surgido, e, indestrutível, levado a mata como combustível para depois voltar fortalecido à seu núcleo frio e luminoso - eram os olhos do grande animal, lanternas sem fachos que parecem lançar-se para dentro, crescem discretas, duas erupções marcando a cara fina de onde apenas um longo cavanhaque descia, parede triangular com lascas que saem. Ele desenha armadilhas, tenta hipnotizar as formas que estão sobre ele, penduradas nos fios, a mastigar folhas também brancas, enormes folhas raiadas de mais branco seguras por garras pequenas e confiáveis, que entram em seus sistemas digestivos molhados e de lá caem secas, pontos brancos que criam a neve e trazem um inverno seco ao grande felino. Uma saudação ao senhor da cadeia, ao anterior e posterior, ao que está na ponta. O leão vira-se e poderia sorrir.

-Que é? Cadê?, S1 grosso.
-Mano...

Os traços que o grande felino faz sobre o pó são ao menos oito bastonetes alongados ligados a rótulas com inscrições antigas e retangulares que por sua vez conectam-se à um ovo cheio de depressões com espinhos pequenos e rombudos de onde saem outros bastonetes e fios e minúsculas bolotas que a tudo cobrem, subindo pelos bastonetes até voltar à forma ovalar para verem surgir a uma bola maior inchando e afinando suas paredes para poder dar lugar às duas depressões e que por fim se rasga mais abaixo em um esgar permanente que provê ao mundo pedaços soltos de dentro ou pequenos erros de desenho que, de qualquer maneira, encaixavam-se. O que era riscado assemelhava-se à uma xilogravura dos enormes insetos que pairavam pesados sobre o grande animal, esperando e equilibrando-se no fio negro que cortava o fundo da casa de portão solitário.

Tinham o tamanho de pombos, sem penas ou ossos. Comiam e faziam nevar, em um sonoro abrir e fechar de portas mandibulares delicadas, balançando-se como se não pudessem sair dali. São menos do que dez, são silenciosos quando partem e quando chegam - vão até o telhado, voltam, pegam folhas em algum chão próximo, esperam, mexem as cabeçorras para um lado e permanecem olhando o horizonte por longos instantes. Têm patas longitudinosas, peludas, esguias e bem proporcionadas: as rótulas no lugar, fazendo girar corretamente tanto os bastonetes inferiores, que sobem e descem, quanto os superiores, cujas garras de longe parecem dedos segurando as folhas brancas que picotam com a boca, nutrindo seus túbulos tal um ovo inflado, cheio, carnoso. Eram suculentos, aqueles insetos. Se alguém os furasse, jorrariam em uma frágil fartura.

O leão faz algumas dessas imagens intuídas em montes de traços enfileirados, trançados e que são - com o vento que chega pela areia dos limites cambiantes do mundo ao fundo - também mutáveis. Os grãos davam pequenos passos para os lados, formavam mesmo que a besta não quisesse outras imagens e novos desenhos, minimamente diferentes de seus originais, mas ainda assim outros. Uma perna se abria, um tórax aspirava, um boca permanecia suspensa - e mais uma lufada vinha pela terra e mudava de novo detalhes quase impercetíveis de cada uma das imagens que o leão afiava no solo, colocando tudo de volta no lugar, não no lugar de antes mas onde o de antes estaria se as imagens fossem vivas. Em um tempo diferente, as xilogravuras moviam-se em direção à cabeça de fios espetados de seu criador, o script de um novo ritual a ser encenado.

-O que é? Tá fazendo o quê?, perguntava S1. S2 segurava suas pernas nos ombros, as apertava e massageava com seus dedos grossos.
-Tá ouvindo? Maninho, você tá ouvindo isso?

Os pombos insectos agitam-se, movendo-se com maior velocidade e descem primeiro um a um e depois em duplas, chegando sincronicamente no solo. Colocam-se em fila, ou já aterrisam um atrás do outro, de frente para o grande felino e fazem cessar a tímida nevasca que o abençoava. Os olhos da besta abrem-se, como se pudessem ver algo, e também sua boca é aberta, mostrando um caminho que não pode ser decifrado. É escuro, cego. Não há mais sequer o ruído das folhas sendo retorcidas e picadas. Um enorme peso é sentido. Os insetos, vidas velhas, caminham em direção ao negro apontado. Vão à bordo, tal marinheiros. É uma nau de tamanho desconhecido, não são os primeiros a fazer essa viagem. Dela o felino se alimenta.

Você, Soldado, sente-se singrando um cavalo, sente que algo em si escorre, uma perna a deslizar um pouco mais, o pescoço a girar em agarros de agonia. Fogem, S2 foge e o leva consigo. Trotam de volta, acha. E vê, cego, o que há no costado da casa, naquele lado não descoberto da Construção. Vê a carcaça de um boi, os restos de uma carroça, estão ali dois esqueletos a observarem, sentados em cadeiras desmontáveis, o movimento e a fuga. Fogem rápido, em direção ao ruído que S2 disse ter ouvido, à passagem na parede, que ainda não sabe se será aberta à marretadas de carne ou à pura vontade. Ou se está lá, tal os outros elementos. As costas do Soldado se arqueiam e chacoalham e deixam para trás os destroços do jantar do grande felino - não há mais tempo para virar-se, vão meninos, cheguem logo, alguém pede socorro, alguém que há muito chama por socorro, isto é, por vocês. O grito se escondeu, foi soterrado, mas agora que chegaram tão perto, que colocaram seus olhos dentro da terra, ele os viu e lembrou-se de seu desespero - achou ou construiu uma brecha por onde pôde saber que, afinal, ainda era o senhor, ainda tinha servos que poderiam protegê-lo e servir, que havia semelhantes a vagar do lado de fora. Ele os atraiu ou os achou entre tal repelição. E S1 e S2 correm, durante muito tempo. Correm por um chão de vidro, deslizam para dentro do que os tijolos não puderam esconder. Sempre há um caminho, um poro, uma ferida: nunca será possível suportá-lo sem tremer, chiar, suar. Passam pelo boi, a carroça e os velhos, zunem por aí, derrubando galhos e e criando outros. Estão de novo deixando o Local, não podem parar mesmo para observar a paisagem. Ainda não puderam. Há quanto tempo deixaram o Disco Voador? Teria ele submergido? E agora, que entram eles mesmos no subterrâneo... o encontrarão? Agora que descem as escadas da casa, que conseguiram achar um furúnculo no cimento, se depararão com o grande rio canalizado, da mesma matéria cinzenta que levou o trailer e sua inscrição? Se o encontrarem, será bonito: o usarão, o filhote da terra de metal, como um bote e, sobre ele, sujando as mãos, navegarão sob a terra.

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Por um momento, as imagens do escuro também cessam para S1. Há um tapar, flutuam. Desconectam-se, e caem escada abaixo.

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O que vê, Soldado? Tudo é narrado por sua vida anterior. Digo: depois de saber que cai, é ela que projeta imagens. Há no corredor da escada, no túnel espiralizado para baixo, toda uma galeria de fotos dispostas tortas e enquadradas em madeira manchada de tocos mortos sobre os tijolos raiados de heras. É um menino sozinho em um quarto de brinquedos - ursos pintados, cavalos de madeira balançando sobre discos carcomidos, carrinhos virados com as quatro patas para o ar e outros pequenos, inertes e com o semblante de velhos -, uma criança com não mais do que sete anos, com as peças empalhadas atrás de si, mostrando-se dona do que protege - ainda que sua expressão seja de embaraço para com sua propriedade: foram dadas à contragosto, não deveriam estar ali, a prenderem-no tal filhos prematuros. Suas mãos estão atadas atrás do corpo com possíveis algemas invisíveis e sobre todo ele cai uma sombra que vêm do canto superior esquerdo, sombra com troncos e membros, mas não na proporção normal. Esse tapume heterodoxo impede uma forte luz, talvez a causa do embaraço e da proteção. "Quem pensa que impressiona ligando isso?". A ninguém, é sua resposta. Fazia parte da brincadeira.
Mas antes dessa houve uma outra: cinco moças e cinco moços encostados em um muro pichado de palavrões. Todos vestem a mesma roupa, mangas longas e luvas. Um time, risonho e abraçado, o momento de petrificar a esperança ainda não puída. Vão para um jogo, uma festa à fantasia, apenas ensaiam a ida, todos carregando letras em seus peitos. Os dos cantos olham para cima, mirando o possível motivo da foto. Todos posam. E são tantos, poderia-se levar tanto tempo para guardar tantas expressões e rugas a vir, mas não é o que querem que façam quando a imagem passar de mãos em mãos: desejam o acobertamento, o esconder-se, misturar os corpo de maneira que seja impossível separá-los. Uma centopéia.
E a da mulher, uma mulher em um parque, esboços de manequins atrás de si a fazer o que fazem em parques - sentados, deitados, rolando sobre a montanha de grama. A mulher está de lado, apenas sua metade direita, em primeiro plano. E mesmo essa está borrada. Corria, a mulher. Corria e gritava para algo que sai da tela, para o que mesmo a velocidade do obturador não pode captar. Gritava para sua metade, é possível, Soldado, para sua parte em trânsito.
Seria reconfortante saber que o fotógrafo dessas fotos é você, mas não há nada que vá nessa direção. Digo: são excertos seus, mas não colocados - muito menos escolhidos - por você. Esta é a primeira volta do parafuso que paralisou a picada em seu braço, a aperto em sua garganta, o negro em seus olhos. Que lhe cegou e lhe causou dor. A marca d'gua está em todas as fotos: no canto do quarto, no muro, sobre um dorminhoco do parque o escorpião trafega.

Olhe! Olhe para as lembranças de lembranças, para essa fuligem de pensamento: ele sabe que você se aproxima, que à casa torna. E colocou os últimos bilhetes para lembrá-lo que sente saudades. Enquanto os ossos do membro que já não é seu se partem em cada degrau, ao mesmo tempo em que seus olhos se rasgam na calosa pedra dessa escada, sinta-se voltando. Há surpresas sobre a mesa posta. Nada é mais o mesmo, cada pedaço de sua vontade está agora em em tempo passado, quando você não vestia botas de couro, quando não havia coletes à prova de balas ou Corporações. É tudo importado nesse útero de um ser que, sejamos francos ao menos uma vez, viveu uma vida que em nada se parece com a sua. Soldado, você esteve a lhe percorrer os tentáculos distantes, a praticar alpinismo por seu umbigo, provocou e viu um pouco do que essa pele tem a mostrar. E agora alcança onde ele começa, onde ele recomeça a cada momento. Olhe para os escorpiões a correrem as faces dos jovens atletas e a saírem do bolsos dos colegas do rico menino, atente ao grande escorpião que, como um animal querido, é levado para passear no parque. Olhe o brilho de suas cascas e o refinamento de seus telsons, que reconfortante se enxergar no nunca visto. Você sabe que é você que vê em cada um desses detalhes. Sabe que seja lá o que cada um guarda dentro de si e fora da carne, no seu caso isto foi perdido.

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S1 abriu os olhos e estava sozinho, largado sobre o chão de azulejos azuis-claros com arabescos apagados. Nada em seu corpo lhe dava a sensação de que poderia se levantar: talvez devesse ficar ali apenas mais um instante, roçando o frio com os dedos, mergulhado na piscina de galhos e flores e relvas pintadas, algumas sem raízes ou pétalas, a grama ainda broto, já amarelada e por fim invernal que se espalha pelo chão. O quadro se repete aqui, diante de seus olhos, mas vai adiante, longas colunas dos mesmos desenhos, em diferentes épocas: por vezes os frutos já nasceram, troncos se reconstruíram, montanhas encolheram. O tempo passa imitando uma linha de barbante e, como o Leão que guardava a porta não-vista do Castelo, você pode muito bem imaginar um desenrolar, o que veio antes e depois. Há nexo nos desenhos destes azulejos, e cada pequeno detalhe que difere parece pensado como tal: marcas.
Está há muito assim, fetal e ausente, olhando para todos eles ao mesmo tempo - não acredita que tudo isso esteja sendo feito apenas com aquele par de olhos que costumara ter, que um dia funcionaram. Renasceram, você por fim percebe, mas não como antes. Daquela posição o mundo visível se divide em um aglomerado de janelas gêmeas bivitelinas que cobrem um globo - toda a Abóbada do exterior -, onde as coisas e os fatos são simultâneos e sucedâneos _e você está sozinho nesse parque de diversões, deitado no centro.
Em um deles é possível ver o que acontece no momento que quer parecer o imediato, mas alguns parecem estar à frente e outros, atrás - ainda que falem do mesmo fato. Você sabe, S1, que há algo que distoa nas faces do caleidoscópio. Não se trata, portanto, apenas do que vê. Conhece aquilo que lhe aparece nas vistas: ainda que não pareçam, elas são; nada indica que você possa julgá-las, mas tem uma opinião: não se tratam de imagens. Assim como quando um soldado surgia de cima daquele primeiro barranco, há o vindo e o porvir no que está diante de si, dotado repentinamente de percepções desconhecidas, zigotos que se romperam após esta longa queda que começou quando decidiu subir, que cresceram com a santa água e ouviram o chamado da vida pelos horizontes enclausurados daquelas fendas; começam a colocar as patinhas para fora. Passa a mãos sobre as pálpebras e elas estão ali, talvez alentadas ou cobertas de sangue seco, mas as mesmas, fechadas.

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- Estava aflita para saber com o que você se pareceria - mas acertei ao pensar que seria diferente. Tem grandes olhos, quase maiores que suas órbitas e mesmo fechados eles impressionam. Deformam e dominam sua expressão, o resto é tão precário perto deles, ovos que se desenvolveram além da conta e que, descontrolados, ganharam vida. O nariz, a boca, os maxilares, ouvidos - sugados. Imagino que tenha dificuldade em equilibrar seu rosto com olhos desse tamanho. Quantos tombos levou, afora esse que o trouxe à porta da minha casa? Cada fio sanguíneo esticado nesses globos assemelha-se a uma corda trançada com outros traços vermelhos menores. São muitas; elas sobressaem da superfície branca e criam pequenos vales poeirentos, que terminam nas lagoas secas das pupilas, amareladas e homogêneas. Me parecem lentes, colocadas aí, nunca pertencentes ao que encobrem. Ao redor, círculos cinzas pontilhados de gotículas, como que recém-pintados, os separam da pele - eles bóiam. Quando olhei demoradamente percebi o trajeto que fazem, indo e voltando de dentro de você, mergulhando nesse caldo, em uma rota que parece ensaiar um suspiro não realizado. Suas bordas cravejadas de grãos de areia colidem, suaves, contra as laterais dos círculos, e tudo volta, lento, ao seu lugar.
Desde o início, percebi que não podia ver. Tanto melhor. Não gostaria que soubesse como tenho a pele amarfanhada, quadriculada e espalhada sem critérios pelos contornos de meus ossos. Dos dentes, apenas os lugares vazios. Minha testa alonga-se em estrias de manchas e meus cabelos parecem aço enferrujado e retorcido beirando orelhas pontudas e nodosas, e apenas elas. Mal posso fechar o que um dia chamei de boca, tal a fraqueza de meus músculos. Sei que não me pareço com nada por você distinguível, que sou velha, gasta, usada, passada e repassada. Assusto-me em olhar minhas pernas e braços e perceber que ainda se movem, com as óbvias dificuldades: doem e falham, mas ainda ando e ainda sinto, mesmo empesteada das placas esverdeadas que proliferam. Sou uma ruína, mas enfim você chegou.
Novo, inteiro, perfeito, exceto, como você deve saber, por este braço, já duro e negro como carvão. Não resta sangue nele. Temi tocá-lo e, por descuido impensado, quebrá-lo com meus dedos antigos. Agora está enrolado em gaze. Mas é um belo trófeu este, e me sinto lisongeada com tamanho sacríficio por minha salvação.
As roupas que você carregava eu tirei. Elas estavam encharcadas de suor e da terra lá de cima, e não há o que esconder, do que se envegonhar: está nu. A Arma foi guardada. Ande, vamos lá. Ajudo-lhe a levantar-se. Posso te guiar, bastam menos do que dez passos para sair deste quarto, a levantar-se da cama - ela não se aproxima de nenhuma parede, por segurança. Nada pode por ela subir ou nela se enrolar.
Andemos, caro Messias, e tento de maneira simplificada descrever minha situação, meu trabalho. Uma maneira: sou a Entrada escolhida por Eles. Há mais anos do que poderia imaginar cumpro esse ofício. Conhecia, nos mais perfeitos detalhes, o fardo que carregaria quando aceitei-o. Promoteram-me prazeres que ainda hoje não sei quantificar. Pois é assim: eles não precisam de explicações - da mesma maneira que nunca os vi além do que já chamei de imaginação e sonhos, nunca pude contar o que sabia ser meu pagamento. Era um pacote que sempre esteve à minha frente, de súbito: soube dele e a mim bastou. Tamanho era o presente que posso dizer que não foi de fato uma escolha.
Sim, por aqui, acabamos de sair pela porta e agora estamos na sala. Há apenas uma mesa, comprida, onde seu colega, o gordo, come. Fiz para ele os mais diversos pratos, doces e salgados, e deles ele se ocupa desde que chegaram. Tinha fome, o gordo. Mal abri a porta e jogou-se sobre as compotas e assados e saladas que lhe preparei. Não foi preciso que trocássemos palavra, e ele ainda não provou o vinho.
Esqueça, ele está bem. Devemos chegar rápido ao Observatório, enquanto Eles não vêm. Que diverso é este lugar quando estão por aqui: ventos que me impedem mesmo de abrir a porta do quarto, meus objetos voando em redemoinhos e o silêncio completo que envolve todos os cômodos. Nem sequer meu rangido pode ser ouvido, nada pode Os atrapalhar: exigem serem os únicos. Digo vento pois sabe o que é isso, mas o que ocorre não é exatamente uma grande lufada, tal uma corrente, o que percorre esse lar subterrâneo. Não. A primeira vez achei que fosse uma camada que encobria as paredes, chão e teto, e que levasse tudo a flutuar e alçar vôo - achei que o fator não estava no que parece vazio, mas que ele surgisse do que, até momentos antes, era inerte, como uma carapaça acordada por um aviso para nós imperceptível. Assim, quando Eles chegam, tudo que é material fica pesado, mesmo que flutue, impossível de mover. Como disse: é tudo Deles. Começam pelos objetos, alçando vôo e, sem que para tanto seja preciso uma coreografia, os arranjam no ar: mesas encaixam-se em camas, que deixam-se penetrar por garfos, que conseguem sustentar os móveis mais pesados, que por sua vez pendulam tal relógios. Sabe do que falo pois já viu, no caminho, despropositados similares. E, depois, com esta árvore já desfeita, levantam-me até o topo, onde demoro a me equilibrar mesmo que em nada pise. Como uma estrela, começo a fosforecer enquanto as outras luzes se apagam e já não posso mais fechar os olhos, mover os dedos: paralisada e iluminada, sou despida e por Eles tomada. Reapareço na cama, sob vestes grossas, suada, vinda de um sono rócheo. Sei que Os dei alguma forma, mas já sou culpada pela imperfeição e feiúra de cada peça, por ser uma reprodutora incapaz, ainda que a única. Quando retorno a mim, esta prole, ou o que de mim saiu, levando com eles um pouco mais do meu corpo, já está longe, expandindo-se e fugindo, atarantados e perigosos, confusos e doloridos: assim constroem parte do que viu até aqui, o que eu mesmo desconheço. Têm tantos padrões, imagino, que mesmo que visse um deles não o poderia reconhecer como sendo de minha autoria. E a pena por nunca ter tido nem ao menos um Herdeiro era, até agora, continuar tentando.

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O que a velha chamava de observatório estava vazio, com uma lâmpada que caía até poucos centímetros do solo, ele e a parede e o teto revestidos por um emaranhado de terra, pedras e fios e feno. Ela ainda o ajudou a abaixar-se antes de entrarem pela porta de madeira, baixa e pesada, com ranhuras retilíneas e polidas e três placas enferrujadas, cada uma com quatro parafusos. Quando isolaram-se, você pôde sentir o odor de barro antigo, o de cima, ardente, misturado com um desconhecido, curtido em gordura, carne, metal granulado, cinzas e ar represado. Um tique continuo os envolvia, uma provável goteira, talvez duas ou três delas. E havia desenhos espalhados por todo o lugar, que imitavam pessoas, grandes animais e caçadas, havia torres e pontes e formas que cobriam aquilo deveria ser o céu _por vezes animais sobre homens e torres caídas com o fogo que chegava das beiradas, todos inscritos com a mesma substância, pastosa e cristalizada, que dera o apelido ao Disco Voador. Sobre estas representações, fios tão finos e discretos quanto simétricos, círculos concêntricos de rastros. Quando a lâmpada movia-se, um deles iluminava-se tal uma mira posicionada sobre você ou a velha, já pegos e enredados.
O único espaço incólume era um objeto, possivelmente de louça, talvez de argila queimada, que saía de uma das paredes, aquela que da entrada assemelhava-se à do fundo, ocupando-a quase que por inteiro. Não era possível saber se fora nela pregado ou se por trás se escondia seu restante. Tinha a forma de uma curva preenchida, liso e frio. Como um gordo disco. Abaixo dele, a arma. Você e a velha, calados desde a entrada, caminharam pela completa escuridão que lhes envolvia, cortando o ar.

- Rápido, pegue - e ela estendeu-lhe o cano. Ele era seu. E por isso você o segurou. "Ouça bem. Tome minha mão. Quando as unhas começarem a machucar, aperte o gatilho. Não vacile. Mesmo que eu diga, no último momento, que deve largar a arma e minha mão. Mesmo que lhe chame por diversos nomes, muitos deles, mesmo que eu lhe chame de filho ou pai, conte histórias de como aqui cheguei e outras daquele que me antecedeu - nenhuma delas será de fato a verdadeira e nenhuma delas deve apartar você de sua Missão. Aperte rápido, faça valer ." Você a obedeceu e, apenas em pele, encostou o cano na cabeça da mulher.

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Por um momento, estive de volta. Foi quando o sol cresceu, esticou-se acima e sua luminosidade caiu sobre o que parecia o mesmo descampado tal um pânico instantâneo no ar, no solo e em qualquer partícula existente no que era visível, todas remoendo-se, em loucas rotações estáticas e lindas, violentamente existindo à frente, causando explosões no limiar da imensa lâmina que deixava para trás uma matéria transformada e perplexa, testemunha do apontar no céu que era maior do que a distância desta superfície até seu núcleo _pois a outro núcleo ela pertencia, ainda mais longinquo_ e que mesmo assim não provocou mais do que uma baforada de areia em meus pés, limpos a refletir a fissura amarela- pálida, quase integrada à Abóboda e que fechava-se sem que fosse possível medir tal acontecimento exterior, a digital de outro gigante ou de um deus , em forma de anel fosco a desaparecer do tampo com o resfriamento quase imediato do que há nas alturas: o céu se abriu como se estivesse só e fechou-se envergonhado e pobre, ignorante da própria estranheza, como se fosse vivo e dessa qualidade pudesse usufruir, tal escorpiões revelados na consciência _minha, deles_, usando de uma nuvem e apenas uma nuvem cinza para negar o que havia cometido, a formação a emitir e atrair raios, sem ruído ou calor, longos braços deixando rastros de luz que apagam-se logo que riscam a fumaça que começa a envolver a Passagem e a Entrada torna-se mais e mais escura e seu remendo espraia-se sob o globo em anúncio tempestuoso do fim daquele contato do qual vi apenas alguns resultados, mas que deixava, como que em forma de charada, a sensação de ter sido único e definitivo: o que passou, o que veio, o que ainda não vejo, o que aguarda no que há adiante, neste fim, sim, há um fim do descampado, bordas possíveis deste terreno seco, espinhoso, duro, dependente da possibilidade de ser justamente coisa gráfica em forma de pintura mentirosa, sempre à minha frente, sempre a própria tela em que foram pintados meus atos, mas nunca passível de ser tocado, ultrapassado, esquecido por aqueles que dele dependem como todo homem depende de um limite _e a essa nova revelação segui-se a de que não estava de volta, e sim na iminência da partir: corri, pesado, cada parte de mim pesando mais do que havia pesado em qualquer um dos lugares visitados, de tantas atmosferas e fórmulas e luas, e no meu caminho despedaçava torrões e criava rajadas, sob mim o mundo cedia e quanto mais me deslocava mais afundava sob aquela areia que já não tinha nada que não ela mesma, castigada por uma força que pertencia à minha existência mais do que à grande lufada que tinha nos envolvido há pouco, a todos, e que, sem que eu pudesse evitar, havia retirado do mundo os objetos, todos aqueles que dão ao que há a impressão de que, sim, estamos aqui, eu e os objetos por mim tocados, por mim registrados, que a mim pertecem e não a qualquer outro, não por não poderem, mas por sequer conhecerem tal condição:era apenas uma raiz e um caule que crescia, tenebroso e constante, predador do que ficou para trás, a conhecer o novo em busca do que já foi comido, digerido e expelido:havemos de voltar, eu e e minha sombra, apenas eu, minha sombra, a areia que nos envolve, o ar e o mar à frente.

Além da terra, havia o mar. Matéria pastosa, revolta, alucinada, mordaz, dotada de uma consciência exterminadora, conclusa, faminta, lutando cega e enérgica em cada um de seus membros, horizonte debatendo-se em ondas que eram como pequenas madíbulas borbulhantes ou vagas capazes de levar em seus arrastos premonitórios mundos completos de si mesmas, quantidades deste tamanho e de outros sonhados, a formar Leviatãs em cada um destes movimentos, e cada uma destas já esquecidas formas perfeita urravam de dor e pavor ao cair despedaçando-se em seu restos desconhecidos, _todo ele, nunca separado dele, partes impedidas de descançar, aterrorizadas menos com seu fim do que com que as próprias dimensões_, o que acordava outro mar, de ondas de diferente natureza, mas tão opulento quanto aquele do que derivava: de onde estava, sem que nada sobrasse do solo à frente de mim, de tal maneira que eu era a extensão vertical do que pisava, sua ponta e esperança, pude sentir todo este novo oceano, feito puramente de som, derrubar-me inteiro, e, lambuzado em sua magnitude, posso agora descrevê-lo: elevava-se acima de seu gêmeo e espelho, em diferentes camadas de ar sem cor que vibravam não de maneira que pudesse ver, não de forma que pudesse tocar ou classificar: a música, que deveria renascer logo após a destruição da próxima onda, a mim pareceu como a eclosão do que é novo e apenas novo; não bela, não boa, não correta ou eficiente: apenas invasora, o que havia escapado de meu destino, a trilha que deixou-se surpreender; não má, indolente, preguiçosa ou heróica: apenas elevando-se sobre o Oceano em um longo chamado que, quando alcançou sua nota mais alta, tragou-me.

Caí, e nada senti ao cruzar a barreira entre a queda e o mar, no qual comecei a afundar a ver tudo, sem nada perder, mesmo que aquelas profundezas nada me mostrassem _era apenas um límpido campo, bolhas do tamanho de grandes olhos a subir e estourar na superfície turbulenta, como animais aquáticos que passavam por mim quase a englobar-me e levar-me com eles. Sinto que estou mais próximo ao perceber o que vem em minha direção, fosco tal o fim do que me rodeava, tal a saída. É uma casa, uma enorme casa com rodas que a despeito da equanimidade das forças físicas aqui, rasga o mar como uma carruagem levada por baleias que não posso ver _ e nela, por uma escotilha ou janela, está você. Entendo que agora voltarei para casa.