Contos, crônicas e novelas.

segunda-feira, outubro 08, 2007

A Viúva Vermelha de Matheus

Nua, sobre o bidê, Irene chora. O frasco do esmalte derramado pelo chão.Vermelho denso espalhado. O cheiro de acetona lhe inunda as narinas. Irene tonteia, ameaça desmaio.
-A vaidade que não me abandone!
Frios pontiagudos na barriga todas as vezes que se depara com eles: os malditos fios de cabelos brancos na fronte. Dessa vez vieram aos pares. Irene nem sabe quanto foi gasto em tintas e retoques desde os primeiros a surgir. Inútil. Menos esperar, eles voltam. Noite passada, Irene não dormiu. Em claro. Sonhou, de tarde, ser debutante. Mais uma vez. Muito tempo, foi-se nos 70. Os ares são outros. Dirceu não mais. Lembrou dele e vestiu-se a caráter - nas costas, o vestido branco do baile por pouco não se rompe. O laço nas bolas de pérolas formou-se em arco, esparso. Irene não dançaria de noite, só fitava a alma. Tateava o passado, as mãos roçando o próprio corpo - irreconhecível.Saudades de tudo o que não viveu. Frente ao espelho, os cabelos soltos perdem força e vigor. Mal pode se notar. Todas as vezes, uma vontade de voltar a fita, mas o aparelho de som, empoeirado, não permitia. A agulha por um fio. Tem outra: que fazer com as fitas de vídeo, se não consertavam mais videocassete? Hoje tudo gravado, eletrônico. Escolhem-se as faixas. Irene jura não ver charme em regravações, discos compactos. Lê "som remasterizado" no selo, passa reto na prateleira. A casa está vazia, as luzes não são acesas há muito. Dentro de instantes amanhece. A luz começa no vitral da sala, espalha-se pelo recinto. O último reduto da resistência é o banheiro. Lá, ângulo alto do retângulo, o espelho ilumina um rosto côncavo. A última e primeira luz. Ajeita o cabelo pra trás. Lembra-se da foto tirada, de menina.
-Faz a pose. Agora sorria, Irene, sorria! Quero um sorriso bem grande pra colocar no seu álbum.
Hoje, só um quadro na parede, as dobras esbranquiçadas. O sorriso está lá, estampado. Véspera de aniversário. Aguardava afoita, mal podendo respirar. Chegava o dia, mal dormia. Como hoje. Dia de seus anos. Quantos? Só os olhares - não os olhos - revelavam. Uma dor do tamanho do mundo, as olheiras profundas. Formavam uma linha, uma imensa bacia para as lágrimas. Finalizava-se logo abaixo, num traço na face que lhe cobria a boca, seca. Um bom pó de arroz, ninguém notava. Um corpo estende-se no corredor, vê-se pelas portas abertas. O sol deu sinal. Afora, uma pequena névoa. O vestido de debutante mais uma vez no armário - dessa vez, por pouco não se rompe. Casto em demasia. Aos quinze, não ousava ousar. Agora, quem lhe impede? Olha para o armário. A coletânea. Dia de sol, agora frio. Mais tarde, um calor que poucos agüentam. Escolhe o vestido negro, sem estampa. A abertura larga nas costas, um decote discreto. Costumava arrematar olhares com ele. Infalível. Saiu. Perto do ponto, os pedreiros ainda bocejam o começo do dia. Têm o dom de assoviar. Irene joga para trás os cabelos, molha a ponta dos lábios com saliva. Pisa em linha reta. Pezinho na frente, torso ereto. Passa, fechada a expressão. Passa, só esperando o assovio. Que não vem. Noutros tempos, pediria passagem. Se não, chamava a policia. Contidos, eles faziam bico - sopravam pra dentro. Punham no ar a indecência.
-Levava pra casa, chupava todinha!
Agora, só suspiros. Irene solta o ar com as bochechas ardidas.Inconsolável. Anda. No ponto, põe a mão na cintura. Saca da bolsa uma revista - de casa e decoração -, faz pose de conteúdo. Um negrinho lhe põe os olhos. De soslaio, percebe o acaso. Balança os pés. Deixasse, tirava a roupa dele ali mesmo. Ameaça se alegrar, mas desiste: nota a idade do menino - o brasão da escola fundamental bordado no peito. Envergonhou-se, ao lembrar do filho mais novo. Reparou: o menino bem que lembrava seu pequeno de pequeno. Por sorte, poucos notaram seus pensamentos - salvo a senhora, de guarda, à espera da mesma condução. Mas é porque sabia do que se tratava. Parque Continental, está escrito no alto, vibrante. Entra nesse desta vez. Sem rumo, bem verdade. O motorista atento demais na freada. O cobrador tinha com que se distrair, uma magricela lhe punha os olhos e não desgrudava. Irene a observa: toda modelinho. Os ombros finos, mal dava pra acreditar como não quebravam ao vento. A barriguinha de fora, pezinhos pequenos e finos, sem esmalte. Um olhar que brilhava. Inundava. A bola da vez. Irene olha feio para ela, teve vontade de lhe sentar a mão. Menina! Que sabe da vida?, consolou-se. Sentou-se no corredor, livre, lado direito. Veio-lhe a idéia. Pensou apenas, mas logo se inibiu. Voltou a matutar. Uma idéia fixa. Censurou. Fez, devagar. Que papel! Reprimiu mais uma vez. Olhou para o lado. Ninguém reparava. O ônibus pára novamente. Os estudantes forram a condução.-Dane-se! Apoiou a perna direita no aro do banco da frente. Assim: levantada, a saia erguida. Que a vissem. Tudo à mostra. Que a desejassem! Que lhe rompessem a alma! Mas que a notassem, pelo amor de Deus!O loirinho percebeu. Olha bem para ele - os olhos azuis azuis. Trejeitos de sem-vergonhice. Deve aprontar algumas, pensou. Na fronte, os cabelos loiros tocavam as sobrancelhas. Algumas espinhas em volta do rosto. Falava com a amiga, segurava para ela os cadernos. Irene desiste da revista. Colou o olhar no menino. Ergueu a perna. Diverte-se: agora o menino está todo corado, mal se notam as espinhas. De imediato, ela procura alguma protuberância em suas calças. Sim - está. Será? Malditas calças jeans. O que ele faz? Cochicha com a menina. Gargalham. Ela nota. Pouco antes de descerem, fingem não saber de nada. Passam por ela, olham de soslaio, última vez. Sufocam o riso - Irene percebe. O tempo de colocarem os pés na calçada, e o disfarce de Irene se apaga num melaço de lápis, choro em pó. Não dissimula. Os desejos murcharam. Primeiro, ela. Seca. Último homem, um fracasso. A todo instante deveria umedecer. Até que os lábios secaram. O contato tornou-se atrito. Doíam. E já lhe iam alguns anos, desde a última vez. Um tédio mordaz. O calor. Abanava-se com freqüência. E cuspia ao mundo toda a mágoa do esquecimento. Os dedos dos pés vermelhos, perfeitamente modelados. Quem ficaria louco era Dirceu. Condenou a vida toda: não aos decotes, não aos sapatos de salto, não aos vestidos pretos, não aos cabelos soltos, não ao pescoço à mostra. Esmalte vermelho, nem em sonho! Sequer cogitava. Quando morreu, o pobre, Irene chorou. Dia seguinte, forrou a casa de perfume. Coloriu-a. Com decotes, sapatos de salto, vestidos pretos, cabelos soltos, pescoços à mostra. Tinta, muita tinta vermelha - nos cabelos, no corpo, nos pés e nas mãos. Homens de vermelho, sobretudo. Ódio, somente dos anos. Corriam na sua frente, deixavam-lhe alguns cabelos brancos. Nua sobre o bidê, Irene passou a pensar sozinha em seus dias de glórias vermelhas. Nos dias de seus dias.Não lhe divertia a fricção e os dedos. A única solução era chorar: o choro sim lhe umedecia os lábios. Escorre. Corre todo o corpo, os braços dotados de pregas e aridez. Encontra-se nas unhas, vermelhas. Por ora, sangravam.Nua, sobre o bidê, veio-lhe a idéia. A tarde toda a passear.Na volta, ainda claro, desce perto da Consolação. Ali, imenso cemitério,está hasteada a impressão:
Dirceu Gomes Conceição + (1958-1982)]
Carrancudo até na foto. Ódio até para morrer. Na eternidade do retrato em preto e branco.-Desgraçado! Irene se agacha. Fita bem os olhos do marido. Os joelhos enormes, transpirando. Separados até que o homem na foto, morto de tantos desejos, deixe de fitá-la.