Contos, crônicas e novelas.

domingo, maio 06, 2007

Um visitante

A água cai sobre sua nuca e estilhaça-se, macia, nas paredes do box, somando ruídos à máquinaria do chuveiro: ele lança para baixo fogos de artíficio de trajetória ininterrupta e brilho translúcido, que permite ao branco dos azulejos e a suas juntas verdes-claras uma visibilidade fragmentada e mutável a cada pingo que escorre, explode, desliza e esquenta, simultaneamente, esta caixa que tem até o ar molhado e uterino; você fecha os olhos e vê os os milhares de cristais esvoaçantes em outra casa, em outro banho _quando, como agora, sua vida ia muito bem, obrigado, já que o segundo semestre havia terminado, roupas lisas pousavam sobre uma cama e o quintal esperava, repleto de sons e terra, por seu ócio, tempo a ser compartilhado com outros: alienariam-se em uma cápsula de amizade, excitação e descoberta que, de maneira inevitável, rasgaria-se com ódios descabidos e juras de arrependimento e traição: a apaixonante convulsão, relacionada ao medo, que inicia todo término e desnuda o fio de uma próxima meada _eram tantas, ainda não era possível imaginar um futuro sem elas, não havia ponto com nó, e sim rios e rios de seda desfiada.

Flutuando sobre a lâmina de água e com todo o corpo já por ela tomado, lambido e escaldado, um pouco mais novo e também mais velho a cada camada de si mesmo que escorre pelo ralo, você esparrama as mãos sobre os cabelos, não tão vastos, sorri e decide esperar mais uma boa memória, uma vez que, neste momento, submerso e desensibilizado pelo afago onipresente destes fios, não há nada que não as outras vidas: era como quando estava no quintal, cercado de selvageria, mas em outro sentido, pois o que há lá fora não são mais as consangüinedades: o que o espera são móveis, papéis, paredes, pastas, frases e personagens, muitos deles, todos únicos de sua lavra, esculpidos com um cinzel cuja forma você ainda não sabe por qual outra ferramenta foi feita _e este é um mistério agradável a ser ruminado ali.

Resolve juntar em linha alguns elementos desta lufada que corre no escuro: no banho de um dia repleto de trabalho; após o jantar plástico e solitário na cozinha empoeirada de silêncio; com tantas discussões a serem planejadas e doloridas cifras passando pelos olhos fechados; nu e, ainda assim, livre; com os dedos cheios de sabão e as outras tantas vidas indo e vindo por seu corpo, ensaboadas e molhadas, sente a garganta fechar-se e abri-se, em um átimo, no primeiro contato daqueles seios com suas costas.Encosta-se mais, permite compatilhar suas pequenas termas com ela, amalgamando-se _e a história corre, corre sem se cansar, enquanto você termina de limpar as orelhas e por fim desliga o chuveiro, rasgando a superfície da viagem.

Vê os últimos grãos daqueles castelos serem levados pelo vento soprado da janela que esqueceu de fechar, pega as toalhas, enrola-se. Antes de começar a abrir os olhos, são duas mãos, de matéria áspera e fria, que fecham-se sobre eles.

-Amor?

-Não, responde a voz segredada dos cascalhos internos de uma gárgula.