Contos, crônicas e novelas.

domingo, agosto 10, 2008

Lixo


Sabe, filho, em 2007 eu tinha a sua idade e dois conjuntos de roupas memoráveis. O primeiro era o uniforme escolar, a calça com duas tarjas brancas correndo por fora das minha coxas pré-adolescentes e uma camiseta de um número maior do que o que eu usava à época, com o símbolo do colégio estampado atrás, seu silk-screem borrado e mal composto. Esse conjunto de roupas eu detestava e por isso não era raro que eu o rabiscasse, dilapidasse e até mesmo, em acessos de tédio, queimasse suas pontas ou bordas com fósforos ainda em brasa na cozinha do apartamento onde morava com minha mãe, hoje sua avó. O outro conjunto, que lembro muito vagamente como composto apenas de meu jeans velho e do agasalho de náilon todo preto, era o que eu usava para andar pelas ruas asfálticas com o Pedro e visitar os terrenos esquecidos que proliferavam pela cidade como os loucos que todos os mundos deixam crescer cegamente para poder neles se espelhar.

Lá vinha eu, nos idos de setembro de 2007, andrajoso com meus cabelos levantados pelo vento, magrelo, voltando de alguma aula em que a professora de longos cabelos castanho-lisos havia nos obrigado a juntar palavras que ela julgava importante conhecermos, eu e os outros coitados cuja paciência estava além de qualquer limite, sim, lá vinha seu pai, então um meninão como você, carregando essa roupa de fábrica incrivelmente ruim que esquentava no verão e paralisava no inverno, que te fazia suar, mas não absorvia sequer uma gota de seu suor, talvez também com uma mochila de plástico cinza irremediavelmente manchada de sabe-se lá que tipo de fuligem duradoura, andando pela rua, voltando para casa e pensando: "preciso alimentar os peixes".

Seguia pela Xavier, uma viela assustadora e repleta de maloqueiros que restavam nas marquises conversando por meio de gritos, passava pela Augusto Pestana, a grande avenida que saía de um túnel vermelho-azulado e entrava em um outro vermelho-esverdeado, seus carros inofensivos à distância, caía em um emaranhado de vias que terminavam rápidas umas na outras e continuava reto então na rua que eu mais gostava, a Magno de Carvalho, onde não havia nada que não o lixo industrial de uma velha fábrica e alguns deteriorados móveis que ficavam lá por meses, estragando provavelmente durante à noite, quando não podiam ser vistos, numa solidão muito triste que só era consolada, imaginava, pela maneira como eu e as outras pessoas que passavam por lá nos afeiçoávamos a cada um deles, inscrevendo-os em nosso itinerário diário, sonhando por vezes com alguns e, no meu caso, sempre lembrando, ainda agora, dos que mais tempo esperaram ali _o armário sem portas mas com curtas pernas torneadas, o outro armário inteiro branco de três portas intactas, a mesinha com um tampo de vidro estilhaçado que servia de cemitério a alguns insetos que caíam já mortos de uma árvore pintada de cal.

Andava por essas ruas e por fim descia até o pequeno viaduto ao fim do qual estava o prédio onde alugávamos um apartamento. Antes de chegar, acho, olhava sozinho sem muita expressão o eterno congestionamento que havia na avenida abaixo, uma do século XIX, desfigurada por placas publicitárias pequenas e de cores berrantes pregadas aos muros sujos que a ladeavam como deprimentes bandeiras nacionais; costumava ser o final da manhã, talvez detivesse meu olhar em alguma das insectas manchas que haviam crescido nos de fato incontáveis prédios que havia por todos os lados, manchas de sujeira ou de água infiltrada que nunca significaram nada de objetivo para mim e que mesmo assim ainda estão claras em minha memória, e depois de alguns segundos continuava em frente. Abria a porta do apê com minha chave colorida e, puxa vida, eu me lembro bem desse momento, os horrorosos barulhos do mundo estavam lá como se fossem minha família. Enrolados nas cortinas. Usando o chuveiro. Pregados nas paredes. Correndo ou se arrastando pelo corredor. Não só as máquinas, mas essencialmente o burburinho daqueles milhões de moradores, com tantos problemas para resolver e apenas a voz para intermediar suas resoluções. Era uma espécie de tremor que chegava ao meu peito, uma vibração de poder desproporcional que dava uma grande vontade de chorar e de escrever um bilhete de adeus à minha mãe e àquele lugar.

Em meu quarto estavam os quatro ou cinco aquários que eu mantinha espalhados pelas prateleiras, disputando o espaço ou se escondendo ou mesmo compondo cenários inusitados com os cones, canetas, tubos de PVC, velhos pára-lamas, porta-retratos vazios, seringas manchadas de sangue, roupas, lápis, pedras brilhantes, garfos, chaveiros, pequenas caixas de papel, impressos com frases pela metade, fotos, tênis e imagine quantos objetos mais quiser que eu trazia de minhas andanças por terrenos abandonados com o Pedro e largava no chão. Havia os pequenos e redondos e grandes e quadrados aquários, ou pelo menos assim imagino hoje, cada um com uma quantidade fixa de peixes, mas nem sempre com os mesmos peixes. Eu gostava de misturá-los, formar diferentes equipes, ver como um se relacionava com o outro e observá-los interagir nessa interação característica e meditativa que é a interação dos peixes. Você pode achá-los animais retardados, filho, mas eu tinha cerca de vinte deles, e, se bem me lembro, ao menos um foi diferente dos demais. Dei o nome de Verde para este. Verde parecia um animal à frente de sua espécie. Nas minhas noites iluminadas apenas pelas lâmpadas brancas subaquáticas de cada um desses potes de vidro e pelos reflexos difusos que chegavam de longe pela janela, deitado na cama e tendo ao fundo o ruído da televisão ligada de sua avó, pude perceber que ele raramente estava acompanhado, que seus colegas costumavam se isolar dele e, se começava uma de suas longuíssimas voltas ovais pelo cárcere, era comum que os outros ficassem aglomerados em um canto, no lado oposto ao da sua trajetória, como se precisassem manter dela a distância mais segura possível. Quando ele voltava-se para o grupo _posso até hoje lembrar de seus olhos enraivecidos, bastava prestar verdadeira atenção e se percebia que ele de fato possuía olhos enraivecidos_, todos se dispersavam movendo-se atabalhoados para todos os lados _e posso também lembrar que havia, sim, alguma expressão corporal de vergonha nesses outros, provavelmente as barbatanas abaixadas ou o nado rápido em curtos círculos, disfarçando-se de animais muito ocupados para perceber o próprio vexame. Talvez fosse um medo primitivo do corpo de Verde, que era um pouco menor do que a média dos peixes que costumamos ter em casa e tinha a coluna em uma inclinação horrenda, em "S", possível resultado de uma violência brutal sofrida durante sua vida selvagem, da qual ele nunca se recuperou por completo, ainda que tivesse, de maneira difícil de acreditar, sobrevivido para chegar até mim. Havia ali uma clara deformação, filho, faltava algo ao corpo de Verde, e esse algo tinha sido retirado dele à força, digo. É por isso, acho, que ele começava a fazer parafusos e mesmo a dar com tudo no vidro durante algumas de suas travessias tranqüilas, descontrolado e rápido, tal não soubesse que havia aquele limite ali, pobre, ou não pudesse controlar seu corpo fuseforme da maneira que os outros faziam. Hoje tenho uma espécie de delírio na cabeça, que é o de que Verde tinha completa noção dessa sua deformidade, e que isso, esse sentimento de diferença e de incompletude o tornavam um peixe atormentado, algo não realizado como animal, e que se era comum, nessas noites em que eu passava solitário com meus aquários, vê-lo se bater contra o vidro a ponto de fazer um engraçado barulho oco rondar meu quarto, era porque havia uma clara vontade de suicídio ou de liberdade em Verde, algo que ele deveria simplesmente deixar ir, sair dele por inteiro. Aquele peixinho, hoje deliro, tinha uma vontade (cuja natureza não é possível a mim descrever) de terminar o serviço começado por quem o mutilou.

Achei-o na JC Vieira, aquela rua que sai da Têxtil Wilson Costalarga e termina no Largo da 25 de Dezembro, na qual havia uma quadra só com lojas de animais de estimação e rações ou utensílios para eles, onde algumas galinhas perdidas ou independentes de seus donos ciscavam bitucas e cacos de lâmpada ao redor de grossas árvores retorcidas pela fumaça e agressividade do meio urbano. O impacto dele sobre os outros _que eu me refiro aqui como um grupo de velhos companheiros, mas que a mim são hoje variações de um mesmo tema, um tema também já perdido _foi imediato. Desajustado mesmo dentro do saquinho com água suja. Isolado, febril, debatendo-se. E havia a maneira como ele agia quando alguém aproximava-se: postava-se frente à uma das parede dos aquário e nadava lentamente, balançando as barbatanas em câmara lenta ou em extremo esforço, seguindo não meu dedo ou o próprio reflexo, e sim meus olhos, mesmo quando eu já tinha me esquecido disso, e, acho, mesmo quando eu dormia. Sob a luz branca, enquanto os outros singravam aqueles pequenos oceanos artificiais tal zumbis, Verde estava lá, desperto, esperando resolver, com sua movimentação incessante, algo ou angústia que nenhum peixe que já conheci pareceu carregar. Pedindo ajuda, hoje penso.

Acredito que, seja lá o que fosse esse sentimento, essa diferença (podemos dizer isso, essa diferença, essa curiosa diferença) o carregou consigo no dia em que se passa esta história, pois entrei para alimentar os peixes de cada um dos meus quatro ou cinco aquários e Verde estava morto. Tinha vivido a misteriosa morte dos animais domésticos. Agora, os outros haviam se aproximado dele, um corpo não flutuando, mas caído próximo da ponte levadiça do castelo em miniatura, e davam voltas em torno de seu cadáver, criando um ínfimo torvelinho e levantando infimamente o morto, o que parecia ressuscitá-lo e matá-lo de novo e de novo. Tive uma imediata ojeriza desses covardes, gozando coletivamente do indivíduo que não poderia mais se defender, daquele que nunca entenderam e que agora havia, no mundo dos peixes, perdido a única batalha que eles podiam qualquer dia lutar _mas, que, para ele, nunca foi a que de fato importava, penso. Enfiei a mão ainda quente do dia de fora, o enlacei entre os dedos, tirei o que restava de Verde (então um minúsculo peixe, apenas feio e morto), coloquei-o num saquinho plástico com água, dei um nó e guardei-o em um bolso do casaco preto, que, tal a calça jeans, já estava sobre mim como um manto. Desci então à casa de Pedro, dois andares abaixo da minha, pela escada escura grudada de poeira velha, imaginando que ele poderia saber o que fazer.

Antes, devo dizer, filho, que naquela época, eu passava a maior parte do meu dia _ou do meu tempo, de fato da minha vida mental_ à procura dos tais terrenos abandonados. Minha área de atuação era limitada pela capacidade então não muito prodigiosa de andar e por uma ainda poderosa dependência familiar, de minha mãe, que costumava se dizer "muitíssimo preocupada", essas eram sempre suas únicas palavras, com minhas andanças. Hoje vejo como nada se perde em uma relação entre pais e filhos, filho, nada se perde nunca, pois, em um ritmo radicalmente diferente do meu, sua avó também tinha um gosto particular por migrações: de pequeno comércio para pequeno comércio, de lojas de conveniência em postos de gasolina para caixas de mercados de bairro, com algum dinheiro para o ônibus e pernas ainda longe desse emaranhado azul de fios fibrosos que os médicos intitulam "um caso grave de varizes", sempre brigando com os patrões em noites de silêncio e sempre comemorando comigo e um bolo de chocolate industrializado os novos uniformes das novas empresas, normalmente pequenas franquias ou multinacionais do segundo setor da economia. Eram comemorações sombreadas de artificialidade, e durante elas, em um átimo de consciência, tinha certa vontade de também me dizer preocupado com os rumos de sua vida.

Pois, bem. Eu gastava quase toda minha vida exterior a andar pelo centro dessa cidade. Mesmo em dias quentes, vestia minha calça e meu agasalho e com esse uniforme de peregrinação procurava locais que, embora dentro da violência do movimento da cidade, continham silêncio, terra, mato, restos do conhecimento, povoamento e construção, detritos que eram os elementos característicos daqueles relativos vácuos urbanos, que existiam apenas enquanto eram ignorados. Uma espécie de umbigo e de ânus de todo os prédios, barracos, casas, viadutos, parques e congêneres que haviam, de maneiras que eu preferia fantasiar, sido paridos pela raça humana ali vivente. Era um local de paralisados, injustiçados, expatriados e malditos. Quando saía, buscava me esquecer das direções, me esforçava por apagar o mapa daquele centro, ainda que, naturalmente, restassem as imagens de outdoors e de cadeiras de plástico espalhadas por certas ruas, das roupas usadas pelas pessoas que andavam em um ou em outro lugar, a lembrança de vazio olfativo em que por toda a minha infância essa região esteve envolta. Eram só imagens e sons, como no cinema. Nas vezes em que tive pleno sucesso, em que consegui andar tal forasteiro em minha própria cidade, fui incapaz de ajudar qualquer um que se julgasse perdido, já que eu, mesmo estando a poucas quadras de casa, não raro tive de me reportar a outros passantes para conseguir estar de volta antes das 19h, o meu auto-imposto toque de recolher. Simplesmente andava, nessas oportunidades, cego, virando aleatoriamente para a esquerda e para a direita, seguindo reto, sem planos, contando apenas com o acaso, pois me envergonhava, uma vez terminada a jornada, perceber que já conhecia onde estivera, que por lá havia passado tantas vezes e olhado para o terreno com o idêntico desencanto de todo o mundo.

Nunca me lembraria desses momentos de minha pré-adolescência se não tivesse sido acompanhado na maioria das vezes por esse vizinho que se chamava Pedro e que posso dizer que foi, dentre todos os meus grandes amigos, aquele com quem por menos tempo convivi. O Pedro, até onde sabia, havia sido gerado e vindo ao mundo real naquele apartamento para onde me dirigia neste dia. Ele e sua casa eram elementos idissociáveis, digo, um estava atrelado ao outro como membros de um mesmo corpo. Na sala havia um grande tocador de CD preto, ultrapassado e tomado pela poeira que voava casa adentro sem nunca parar, todo quadrado e com pequenos buracos no tecido de suas caixas de som, ladeado de uma torre de vinis protegidos com sacos plásticos arranhados e embaçados. Penso naquelas peças e lembro de uma capa, que, repassando como era a realidade daquela época, reunia, mesmo que de maneira oblíqua e insondável, as características de meu amigo com perfeição _ou assim isso se afigura hoje. Era um senhor bigodudo, vestido de terno justo azul-claro e camisa quadriculada vermelha-e-branca, sentado em uma cadeira impossível de ser vista a não ser por seus pés de metal modulado, com os cotovelos apoiados em uma mesa de tampo branco, os antebraços peludos ligados a mãos que seguravam o queixo, a cena fotografada em uma cozinha ou banheiro cujos azulejos me lembro serem apenas esverdeados. Ele sorria, tinha as pálpebras quase fechadas e uma expressão malévola em seu rosto anguloso e envelhecido de caubói, a pele amarelada e homogênea como a de um desenho animado recobrindo um crânio opaco; sorria e olhava para cima, onde havia a frase "Vamos pegar a estrada?", possível nome do álbum de algum cantor (ele?) hoje desaparecido.

Era comum essa minha trajetória que ora narro: chegava da escola, descia pela escada e com Pedro passava um bom tempo naquela sala onde ficava o som e suas caixas, uma sala que imagino que você já tenha percebido o quão acanhada era, um pé direito de não mais do que dois metros e meio, dando a impressão de que eu e meu então melhor amigo éramos maiores do em realidade éramos naquele momento de brutal transição corporal. Dentro daquela salinha, com os joelhos dobrados acima do assento do sofá forrado de plástico, os cotovelos a tocar as paredes frágeis e sujas, dobrados e encurvados como aranhas mortas, nossas peles tinham o aspecto artificial que precede o sebo adolescente, e de nossos buços iluminados pela luz da janelinha alguns pêlos irrompiam.

Nunca, durante o tempo que durou minha amizade com Pedro, conversamos sobre qualquer assunto que não futebol e terrenos abandonados, e isso sempre nos bastou. Gostávamos de times rivais, e tínhamos portanto sobre o que discutir, magoar, vingar-se e, por fim, buscar algum tipo de reconciliação. Digamos que eu torcesse por X e, ele, por Y, X era sempre inferior a Y em minha memória, pois, naquele mundo, quando eu existia daquela maneira (muito diferente da atual) e ele existia de sua própria maneira, seu time, o do Pedro, era muito melhor do que o meu. Mais rico, mais jovem, mais tradicional, com uniformes mais brilhantes, melhor cortados; seus jogadores tinham nomes duplos, seus técnicos usavam roupas mais adequadas, seus torcedores eram mais numerosos, mais fortes e, ainda assim (ou mesmo por isso) mais civilizados que os da minha torcida. O time pelo qual o Pedro torcia dava a ele uma eterna vantagem, com a qual me acostumei sem nunca contestá-la de maneira sincera, em parte porque a escolha de um time ou de outro fora natural a nós dois, e não o produto da intervenção de familiares ou da pressões de jornais, revistas ou televisão. Seguimos apenas nossas vontades puras e intuições pueris, e nada mais. Não havia desculpa ou justificativa externa para o fato de eu torcer pelo time ruim e ele, pelo bom. Essas escolhas, achava, eram como que o resultado natural de quem era ele e o resultado natural de quem eu era e, assim, falavam sobre nós mais do que poderíamos articular. Durante o todo o tempo que fui seu amigo interpretei o papel de satélite natural, digo,
admirando-o e seguindo-o e concordando com suas decisões. Não como se eu e ele estivéssemos disputando uma corrida e eu (seu pai) sempre chegasse por último, ou como se ele fosse o senhor e eu seu servo, não isso, nunca isso, e sim como se ele tivesse a razão, e com essa razão, inerente a ele e indiferente à vontade dele, eu concordasse e dela fosse incapaz de discordar, como se ele tivesse a razão que era minha, mas que em mim eu não encontrasse e que por isso dele eu a precisasse extrair.

Por que nos tornamos amigos de certas pessoas, filho? Eu e ele, Pedro, tínhamos apenas mãe, não um pai. Humanas solitárias e esmagadas pelo rótulo da normalidade. Ainda que não comprendesse quais eram as conseqüências desta questão e como a suposta existência dela nos fazia parecidos, sempre achei que a simples congruência de situações familiares nos aproximava, nos colocava no mesmo vagão, o que em parte justificava nossas andanças, dava mais sentido a elas, purgava ligeiramente a vergonha por ter esse desejo de ver e explorar terrenos abandonados, tocar em suas peças e levar algumas para casa, objetos que um dia significaram, no limite, algo para alguém e que nós, Pedro e eu, nós dois juntos, como uma equipe, dávamos outra vida, resgatávamos do completo ocaso, tirávamos da condição de refugos industriais desimportantes do mundo e trazíamos, solidariamente, de volta à existência, à nossa existência. Compartilhávamos um tipo de poder: se apropriar da memória alheia e, assim, poder fantasiar sobre como tudo aquilo tinha sido usado e deixado de lado, semelhantemente a um amor passado. Não adorávamos o lixo, como pode parecer. Nós detestávamos o lixo, tínhamos horror aos sacos plásticos de supermercados recostados em postes e supurando chorume, e por isso fazíamos o possível para que eles, os detritos, voltassem a receber um pouco de atenção e deixassem, portanto, de serem simplesmente lixo. Da mesma maneira que diversas pessoas acolhem animais, amigos e bebês para ouvirem e participarem de suas histórias, para junto a eles serem importantes e aumentar, assim, a própria importância, juntávamos objetos pois tínhamos essa idéia muito clara, que não deve ser confundida com um mero espírito ecológico, da responsabilidade de nós, homens, para com eles _podíamos tentar nos enganar, mas cada lata de alumínio tinha em seu DNA existencial a força, a dedicação e o tempo humano, não muito estranho, formalmente, a qualquer filho; eu não seria o primeiro a olhar uma fornalha siderúrgica, prateada e vomitando fagulhas, e ver nela um útero industrial.

As mães não se sentiam muito à vontade com aquelas peças sujas a forrar nossos aposentos classe média baixa, como se diz. Não que houvesse briga ou discussão, mas apenas uma frase, largada em uma tarde de domingo ou após o escovar de dentes de manhã, pronunciada quando entravam ali. Se bem me lembro, a genitora de Pedro era a mais persistente nesse quesito. Sabe, filho, é natural para mim hoje pensar nela e ter a certeza que já está morta, ainda que não tenha ido a seu enterro. Seu rosto, desde quando era ainda uma mulher que mal havia chego à meia idade, tinha as bochechas estriadas e encovadas, seios inexistentes e todo o corpo recoberto por uma pele excessiva, cinza e curiosamente pendurada nos músculos dos braços e do queixo, sempre balançando-se levemente, talvez intencionalmente tentando se despregar de uma hospedeira pouco promissora. Trabalhava como organizadora assistente de eventos de uma empresa que beneficiava algodão, e não raro levava para casa os restos de sua jornada _copos de papelão, crachás de proeminentes pessoas do setor algodoeiro, facas, garfos e pratos de plástico, grandes cartazes povoados pelas assustadoras imagens do mascote da Golden Cotton, sua empresa, uma nuvem ou floco de algodão de olhos enormes, pernas azuis e sapatos parecidos com feijões. Normalmente ao lado dessas ilustrações havia um balão com falas sobre um encontro do setor algodoeiro, ou o slogan da companhia, que já não me recordo qual era, em uma tentativa gráfica de nos dizer que o mascote não apenas existia como era capaz de se comunicar e, ainda mais aterrador, que ele gostaria de se comunicar comigo sobre um assunto que não era do meu interesse, o que sempre me levava a pensar que ele estava de fato escondendo algum outro objetivo mais escuso e perverso, que ele tinha comigo intenções não declaradas e, também por isso, necessariamente repugnantes. Seu nome era Jerônimo, tenho certeza, pois um dia a mãe do Pedro o pronunciou com incontido orgulho durante um jantar, enquanto comíamos algo congelado, após alguma tarde de andanças. Ela estava confidenciando um segredo industrial, uma palavra-código ou termo sagrado, algo que não deveria sair daquela cozinha por motivo nenhum, ou que, se saísse, nós dois estaríamos sujeitos a um castigo que nem ela tinha coragem de pronunciar. Lembro de ter olhado por alguns segundos para Pedro, buscando uma confirmação daquilo, mas ele tinha imergido na lasanha degelada, seu prato preferido.


Não posso reconstruir a cronologia daquelas tardes com precisão, mas o que restou em mim afirma, categoricamente, que, por mais que gostássemos de futebol, este esporte e seus problemas técnicos, táticos e mesmo morais eram apenas o prólogo para nossa grande conversa, aquela mais curta, repleta de poucas lembranças de tardes anteriores e que definiria para onde iríamos. Era assim: depois que nos sentíamos de alguma maneira apaziguados com as ligeiras ofensas mútuas, havia um momento de silêncio. Aquele vazio anterior ao que realmente interessa, voce sabe do que falo, filho, quando os barulhos que se dão em grandes cidades apresentam-se em seu mais profundo absurdo, a flutuar em nossas direções vindos de um entorno complexo, repleto de detalhes, os montes deles acontecendo ao mesmo tempo, nunca repetidos com exatidão, mas ainda assim a acontecer repetidamente, de maneira decisiva, longe de nosso olhar ou conhecimento completo, a nos lembrar que estamos perdendo muito, que algo deve ser feito. Então eu, sentado no sofá, dizia "E aí?" e Pedro retrucava "Massa..." e se levantava. Ele sempre se levantava, sem muito para onde ir, batia uma mão na outra, fazia que entraria na miúda cozinha, mas voltava e arqueava com força as sobrancelhas finas antes de comunicar nosso destino.

E, neste episódio que conto, quando cheguei carregando o saco com Verde dentro da jaqueta de náilon, Pedro olhou para o peixe deformado e naufragado no saco e soltou uma frase, uma conjunção de palavras banais das quais ainda hoje não posso me esquecer. "Vamos sair à noite." E eu tive a súbita certeza que nós iríamos enterrar Verde em um lugar abandonado e que era isso o que Pedro queria dizer, ainda que não houvesse dito, e que seria desnecessário para mim confirmar o que significavam as palavras, pois se eu perguntasse a ele porque afinal sairíamos à noite, o estaria repetindo como os malucos repetem frases sem sentido.

A imagem que me vem à cabeça quando penso em Pedro foi forjada nessa tarde de junho de 2007, na sala de seu apartamento, ele de pé com o saquinho plástico nas mãos pequenas e alongadas que tinha, partes de uma criança muito pouco crescida para a sua idade, menor do que eu ou do que você hoje, cabelos grossos levemente encaracolados caídos nos ombros e uma expressão anormalmente séria em seu rosto oval ainda infantil; o dono de uma boca que assemelhava-se a um rasgo, de um nariz quase imperceptível, de um corpo frágil e esbranquiçado como o de uma pequena lagartixa, com olhos circulares e negros. Ele estava parado ao lado do som e dos vinis, mirando o saco, apertando-o, sentindo seu peso ou sua textura plástica, como se fosse capaz de extrair prazer disso.

-A gente pode sair agora e esperar chegar a noite e daí ir até lá, sem sua mãe saber.

-Mas ir aonde?, perguntei.

-Ah, tá... hm, tava pensando em sair pela Cônego, entrar no metrô, descer lá na Joana d'Arc e andar até chegar àquele supermercado, aquele grandão mesmo, que deixaram pela metade, que não terminaram de construir. Nem sei como é o nome do bairro...

-O Blaster? _perguntei, pronunciando a palavra "Blaster" como uma criança pronuncia qualquer palavra em língua estrangeira, quero dizer, sem nenhum acento diferente do que haveria se a palavra fosse escrita e dita em nossa própria língua, tal um mal
entendido desimportante.

-Isso, mano, o Blaster_ele dizia, apertando mais e mais o plástico, puxando seus bicos, testando sua elasticidade, quase fazendo a água derramar. "Sim, cara, é isso mesmo", disse. "Esse lugar é longe, né? Porque tem que ser muito longe, a gente tem que levar ele o mais longe possível, mas tem que ser num lugar que não é só longe, sabe? Tem que ser num lugar muito longe e muito grande, um lugarzão que a gente possa se perder lá dentro, coisa do tipo... Um lugar em que a gente desaparece de tão grande que ele é, sabe?, porque... Tipo, você não acha que ele merece isso, desaparecer?"

O peixe não era um assunto nosso. Pedro o conhecia das vezes em que esteve em nossa casa, dos momentos em que passou observando meus aquários, quando eu ia até a sala falar algo com minha mãe, talvez quando eu estivesse no banheiro. Embora nunca o tivesse visto percebendo Verde como eu o percebia, tinha essa fantasia de que Pedro também o entendesse, escondido, tal um segredo conhecido por ambos mas nunca desvelado por nenhum dos lados. Após uma noite muito agitada do animal, não pude mais suportar e relatei minhas opiniões sobre Verde a ele, dei a entender essa teoria que já lhe expliquei, esperando que ele, Pedro, me contivesse a qualquer momento para dar sua própria explicação, como era comum que fizesse. Mas Pedro não me interrompeu. Ele continuou a ouvir, tal não tivesse opinião nenhuma e precisasse de mim para compreender melhor o que era aquele peixe. "Nada mais nada menos do que um peixe muito estranho", eu lembro ter dito a ele, e enquanto me ouvia falar, seus os olhos se fechavam, não da mesma maneira que alguém com sono faz, mas da mesma maneira que alguém muito interessado faz, tal quisesse enxergar melhor o que eu dizia, como se captar melhor o que alguém pensa fosse um ato visual. Ele ficou parado e foi escondendo seus olhos, apenas me ouvindo e quando terminei, possivelmente no momento em que dizia que Verde era um animal muito solitário, onde minha teoria pôde parar, de onde nunca evoluí por toda a minha adolescência, Pedro esperou um momento, um momento muito pequeno mesmo, estávamos no estacionamento subterrâneo do prédio, sob uma luz azulada, posso lembrar, umas partículas ridículas flutando por todo o ar, provindas possivelmente de alguma das infindáveis obras nunca acabadas daquele lugar, negras e brilhando mesmo assim, e ele me disse, quando terminei, com uma mão em meu ombro: "Isso é muito legal". Ele usava um tom de voz solene que remetia a filmes de cavaleiros e de cavalos, eu lembro que ouvi o que Pedro estava dizendo e pude vislumbrar nós dois num campo de grama, com nossos cavalos todos paramentados ou vestidos de dourado e verde escuro, e ele, meu mestre, reconhecendo em mim seu justo herdeiro. Começamos a andar intuitivamente e em silêncio pelo estacionamento, cada um com as mãos entrelaçadas nas costas e de cabeças baixas, dando voltas como as que eu relatei que Verde dava pelo aquário, cercados por paredes trovejadas de canos de descarga e gás domiciliar. Nesse silêncio, pensei que que a história de meus pensamentos sobre Verde tinha-no de fato instigado, e que isso nunca havia ocorrido antes, e era por ser um ato inédito, por nunca ter visto isso acontecer, que não entendi por completo o que havia ocorrido de súbito, como quando testemunhamos pela primeira vez um grande acidente, um capotamento inacreditável, no qual o carro voa metro acima do solo e, ao cair, produz ruídos dos quais é possível distinguir com perfeição os barulhos horrorosos do aço e do concreto se batendo, e imaginamos que aquilo seja encenado, pois muito mais fantástico do que qualquer filme. E quando Pedro afirmou depois que Verde merecia desaparecer, simplesmente deixar de estar aqui, com a voz ridícula que toda pessoa tem aos 11 ou 12 anos, foi uma espécie de continuação do filme que vimos e no qual atuamos naquela tarde no estacionamento subterrâneo. Pedro falava como eu tantas vezes falei a ele.


-Sim, Pedro. Ele merece desaparecer, disse devagar, a voz quase falhando.

-Vamos fazer assim, então. Esperamos as mães dormirem, pegamos as chaves e saímos. Mas você tem que ter cuidado, não pode assustar ela, não pode fazer barulho. Sabe como fazer isso, sair sem fazer barulho?


Aquela tarde e o início daquela noite foram banidas de minha memória quase que por completo, não fosse essa foto, essa fotografia mental que tenho de eu, seu pai, sentado no chão e remexendo no entulho que havia em meu quarto, tirando tesouras, garrafas pet de dois litros e jornais velhos de cima de um cartaz amarelado anunciando o lançamento do Blaster. Havíamos encontrado aquilo em um dos terrenos visitados e nos surpreendemos com o ano do lançamento malfadado, coloquemos assim. O Blaster, "o maior supermercado de todo o mundo", deveria ter começado a funcionar em 1984, e era obra de uma construtora chamada G.M.A.P, ou só GMAP, um barulho estranho quando dito em voz alta, cujo logo era uma coruja piscando no "P" de GMAP. As letras estavam formatadas como uma coruja, esse animal que nunca vi em lugar algum, e essa coruja, a Coruja GMAP, era alongada, suas penas estavam desenhadas em locais improváveis, com traços toscos, seus olhos lúgubres colocavam-se em letras diferentes. Era tremendamente feia. Não só o lançamento tinha sido um fracasso, como o seu plano de mídia também, pensei, e me parecia francamente impossível que aquele símbolo levasse quem o olhasse a uma sensação de segurança, grandeza ou vontade de consumo, pelo contrário, tudo levava a crer que os autores de tal obscenidade eram despreparados e desatentos aos detalhes, e a Coruja GMAP, o arauto do vergonhoso fracasso em que tudo aquilo terminou. Nessa fotografia mental olho por muito tempo esse cartaz, com as pernas cruzadas sobre o assoalho de pedra fria de meu quarto, e tento com força adivinhar sua mensagem, por assim dizer, o mistério que o retângulo de papel plastificado encerrava. Havia a palavra Blaster centralizada, como o logotipo de uma nave espacial, suas letras prateadas, arredondadas e estufadas, ligeiramente caída para a esquerda ou subindo tal um foguete para a direita, deixando um rastro de traços que queriam nos dizer que estava em alta velocidade. Abaixo dela, uma ilustração em três dimensões, feita à mão, da fachada do supermercado, de como ele deveria ser se tivesse sido terminado e trazido consigo, à área onde estava, todo o crescimento e prosperidade econômica que a própria imagem prometia. Nela, havia uma grande caixa prateada com outras pequenas caixas saindo dessa principal, toda perfurada por vidraças em forma de semi-círculos, e ao lado direito um estacionamento infindável, cujos limites não estavam claros. Por toda parte, andavam homens e mulheres padrões, vestindo ternos, gravatas e tailleurs, e também crianças, acompanhadas por homens de bonés e por mulheres e cachorros, formando famílias padrões. Todos como fantasmas aprisionados. Afastei o cartaz de meus olhos, olhei de novo para a corujinha GMAP, lembrei-me de Jerônimo e imaginei se ambos não pertenciam ao mesmo plano de existência, tão específico e tão triste.

Por volta da onze horas, pude perceber que nenhum ruído surgia do quarto de mamãe. Com Verde no saquinho, já paramentado, esgueirei-me até a cozinha, mexi ligeiro em sua bolsa e abri a porta, com o cuidado de deixar as chaves do lado de dentro. Pedro me esperava fora da prédio, fitando o viaduto de onde nossa apertada rua saía, distraído. Cumprimentamo-nos com um meneio de cabeça, silenciosos, e partimos. Andava rápido, o saquinho balançando ruidosamente na mão, um pré-adolescente caminhando na noite paulistana, deixando para trás não apenas sua casa e proibições, mas também um mudo e profundo medo de repentinamente se perder, de ficar preso a um mundo novo, falso e atraente. Era essa a sensação, filho, e até hoje me maravilho, desconfiado com a capacidade de pequenos momentos concentrarem tantos significados, de uma simples caminhada na rua possuir tão poderosos resultados. Era isso possível ou essas encruzilhadas, nascidas nas mais despropositadas situações, são criadas posteriormente, apenas para que possamos justificar, organizar e dar significado lógico às veredas que por fim acabamos trilhando, para que de nossos destinos não tenhamos o mais absoluto horror? Teríamos essa compulsão de tornar o que chamamos de "estar vivo" sempre uma narrativa? Com personagens principais e secundários, pontos de tensão e relaxamento, viradas calculadas, causas e consequências? Ou essa nomeação incessante é o único caminho e a sua negação uma espécie de explosão desapaixonada e vazia? Perguntas antigas. Sei, ou hoje imagino, que eu me sentia naquela noite navegando uma das principais "causas" que já tinha conhecido, talvez a primeira e a única, de fato andando sobre essa causa, materializando-a nas calçadas, em meus passos pesados, no suor escorrendo pelas minhas costas, nas luzes borradas, nos barulhos mecânicos amortizados pelas distâncias. Não era uma idéia, uma palavra. Era meu corpo e os objetos, o mundo que surgia conforme caminhávamos, subitamente destituído de sua função comum. Podia sentir de maneira anormal como meus músculos se retesavam, os latidos sofridos de um cão que não via, olhava com assombro qualquer construção tal elas fossem esfinges. O ar que eu rasgava e a força que utilizava, minha respiração e esse algo indefinível que é a visão em movimento, cada um desses elementos estava carregado de uma pequena fração causal, posso dizer, de gatilhos invisíveis que me impulsionavam à frente no exato momento em que os tocava. E a soma de todas essas irupções, ocorridas no escuro da minha mente e, mais importante, no escuro do que me guiava, era a própria Causa, cujos efeitos começariam a ser vigentes quando estivéssemos de volta para casa. Disso tinha consciência.

Seguia Pedro, ombro a ombro, sem olhar em seus olhos, seguia o caminho que meu duplo abria à frente. Saímos do viaduto, subimos pela Cônego até o antigo Teatro Municipal, hoje já demolido, cruzamos sua praça, caímos nas pequenas ruas que chamávamos de Teatro Baixo, todas em leve descida rumo à Estação Bolaños, e durante esse trajeto não cruzamos com ninguém. Apenas eu, Pedro e o peixe morto, uma coisa irreal, uma peça absurda. Conforme eu andava e não encontrava nem sequer uma sombra ao longe, mesmo um carro ronronando, aumentava minha angústia sobre a importância de nossa caminhada. É algo encenado, pensei, todos abrem caminho para nossa caminhada, pensei, quão dispendioso foi tornar isso possível, e apenas para enterrarmos Verde, para que possam observar-nos de dentro de suas casas, ver com ansiedade os resultados de nossas passadas.

A Bolaños era uma das mais bonitas à época, ainda não haviam construído o horrível Quadrado do Comércio à sua volta, cujos usuários alguns anos depois acabaram por englobar e emporcalhar a entrada modernista da estação, que imitava um longo canudo secccionado, riscado por espirais vermelhas e brancas, feito de concreto e vidro, projetando-se de dentro da terra e convidando os passantes a escorregar dezenas de metros em direção ao subsolo, sob o ruído confortável de sua vertiginosa escada rolante. No vale onde estava, ladeada de edifícios grossos e respeitáveis, o sol não chegava. Era só durante a noite que a arte de seu criador mostrava-se plena, quando os canhões de luz que já haviam substituído as luminárias do centro apontavam para ela e seus veios vermelhos e brancos criavam vida e projetavam sobre as paredes internas ecos coloridos de luz, impregnando o ambiente com suas espirais e jogando as pessoas em uma sensação de alarme e estranho amparo, tornando-as seguras de bombardeios fantasiosos e de suas sirenes visuais. Era estupendo. Uma vez dentro da Bolaños noturna, convidativa e uterina, pensava-se no tempo em que populações inteiras corriam para debaixo da terra buscando algum tipo de mísera proteção do mundo externo e da história. De repente, estávamos no caleidoscópio da Bolaños, aliviados, separados por alguns degraus, Pedro abaixo e sem me dirigir o olhar. Ainda antes de pegar o trem, com o corpo cortado por faixas vermelhas e brancas, em aparente situação de perigo, de expressão tão calma, ele pediu o saco, sem nada falar, apenas estendendo as mãos.

Foi uma transação rápida até nossa chegada à Estação Joana d'Arc, uma viagem desperta, na qual me limitei a olhar pela janela parte de meu reflexo e parte do muro da escavação por onde passávamos. Me lembro de como meus olhos eram atravessados pelo que havia além do vidro. A imagem de mim mesmo amalgamando-se com os tubos de fios elétricos, as manchas e os buracos imcompreensíveis que apareciam e deixavam-me em poucos segundos. Eu parte daquilo e aquilo parte de mim; uma mesclagem de coisas. O estrépito tímido das rodas raspando o metal e o sacolejar seco da fibra de vidro. Vozes eletrificadas pelas caixas de som e destino. Estávamos em banco separados e continuamos calados, como costumávamos ficar em nossas andanças diurnas. Pedro tinha uma alegria contida. Sorria e mirava o chão com olhos absortos e vazados. Lembro de ter pensado que estava tudo bem.

Descemos na Joana d'Arc e rapidamente estavamos na superfície de novo. Paramos, olhei em volta e me dei conta de que não sabia onde estava, que nunca havia estado naquele lugar. Era como a cidade que eu conhecia, saturada de sinais, mas obliterada. Havia um céu metalizado, entre o azul e o vermelho, quase roxo, com falhas descomunais escurecidas diluindo-se em direção ao norte. Os prédios de poucos andares com longas janelas de madeira estavam ainda mais sujos que os do centro, cheios de uma sujeira tão velha quanto eles, e as placas publicitárias, apagadas durante aquela noite, pareciam em branco ou repletas de letras intraduzíveis, dirigindo-se a consumidores inexistentes. As construções, casas de comércio misturadas com as habitadas por televisores ligados, espremiam-se a menos de um metro da rua. Juntas, assemelhavam-se a um retângulo, um bolo construído e dividido em partes igualmente apertadas, entortando conforme a rua se curvava e desaparecia do olhar. Em algumas delas, havia um carro novo e caro que mal cabia na garagem descoberta. Estávamos num largo cimentado e por ele pessoas se espalhavam, paralisadas. Um pipoqueiro logo à frente debruçava-se com lentidão doentia ao vidro de seu carrinho, turvo pela luz amarela do lampião pendurado. Um homem e uma mulher sentavam-se em bancos à volta de uma mesa de concreto na qual um tabuleiro quadriculado havia sido pintado. Uma criança, em um balanço, gritava à alguém. E um homem, de barba crescida e com uma coroa de cabelos na cabeça, estava encostado na única árvore que podíamos ver. Manipulava um livro muito grande, uma lista telefônica. Afora o grito do menino, não se ouvia nada que não o ruminar longínquo de uma máquina difícil de identificar, que parecia criar um sopro mecânico, um chiado de ar correndo entre nós e os objetos, interrompido por vezes como que por um enguiço de engrenagem. Respirei fundo e não havia cheiro algum. Minhã mãe já tinha dado pelo meu sumiço?

-Você está ouvindo o vento?, disse.

-Vento?

-É, tem um vento... tipo de um ventilador, um bem grande.

-Sei lá, não tô ouvindo nada. Acho que não tem vento nenhum.

-Não?

-Não, ele respondeu, e houve uma pausa.

-E é aqui?, continuei. Pra onde a gente vai?

-Não tenho certeza. Cadê o endereço?

Vasculhei o bolso do jeans em busca de qualquer coisa parecida com um papel amassado. "Rua Sebastião de Melo, 1982", disse. Ele me olhou e inclinou o rosto levemente, como se não tivesse entendido. Repeti o nome da rua.

-Não, eu entendi, ele disse.

-O que é então?

-Nada...

-Ah...

-É... acho que esse era o nome do meu pai, mano. Sebastião de Melo.

-Você sabe o nome do seu pai?

-Não é que eu sei, tipo... sabe, sei lá... eu às vezes mexo nas coisas lá em casa.

-Ah...

-É... _e percebi imediatamente que estava tocando em um assunto que era estranho a nós dois, como dupla, como equipe. Mesmo as crianças sabem muito bem dissimular pensamentos, filho, mesmo elas. Acredito que por toda nossa amizade, eu e Pedro sempre pensamos em quem era o pai do outro, e como isso havia acontecido _nosso abandono. Pois não éramos filhos de mães divorciadas, éramos filhos de mães abandonadas. Mas em nenhum momento tínhamos falado disso. Não posso dizer que era um tabu, aliás eu nem saberia lhe explicar qual a diferença entre um tabu e um assunto que nos envergonha, simplesmente. Só que desse segredo não nos era permitido dizer nada, tal era sua extensão, como a morte é para crianças muito pequenas.

-Mas _continou ele_, ah... então... é... isso nem quer dizer nada. Tá, é o mesmo nome do cara que é meu pai. Mas e daí? Não quer dizer nada. Qualquer rua pode ter qualquer nome, o do meu pai até, quer dizer, sei lá se o meu pai tem esse nome mesmo, não tem nada a ver com esse Sebastião aí, meu pai era um cara fodido pra caralho na vida, mano.


Observava-o, mas me retraía. Pedro pôs-se a andar, de repente ele sabia a direção, e continou falando. Uma barreira de segurança havia se rompido, uma lembrança e uma permissividade tinham vindo à tona com aquele nome, Sebastião Melo, duas palavras, elementos que de súbito passaram a existir e a criar em Pedro uma vontade de confissão, filho. Ele gesticulava e aumentava o tom de sua voz, sem me olhar. Seguindo o bolo recortado pelas casas e comércios, andávamos pela calçada e observei um pássaro empoleirado sobre o muro, um papagaio que nos acompanhava com apenas um dos olhos conforme íamos descendo a ruela maltrada e repleta de postes e de fios, onde caudas das pipas retalhadas tremulavam com o que parecia a chegada de uma chuva fina distante.

-Meu pai era um cara foda, mano, minha mãe dizia que ele era um maluco, que ele pirou total quando eu nasci. Ninguém pira assim com nada, saca?, tipo, as pessoas são sempre malucas e só ficam mais malucas com o tempo. Hoje tem uns remédios, né? Mas meu pai era pobre, mais pobre que minha mãe, ele mexia com borracharia, parece que até teve uma borracharia uma época, quando conheceu a minha mãe. Ela dizia que... sei lá, que ele adorava ficar no lugar lá, sujão, cheio de graxa, acho que era na Duque a parada, que ele tinha uma coisa muito forte com os pneus que ele colocava numa banheira velha pra ver se estavam furados. Que um dia ela chegou lá, grávida, tá ligado?, e todos os pneus estavam dentro da banheira com a água suja, sujona. E ele ficou dizendo que estava afogando os pneus, hahaha. Você acha, cara, afogar pneus? Sei lá... Acho que gostaria de ter conhecido ele, porque a gente também tem essas manias, né? Tipo, eu e você. Mas acho que mais eu do que você. Porra, não to dizendo que eu gosto de afogar pneus, haha, mas é que às vezes... eu olhos pras coisas, tipo qualquer coisa, mas tem que ser coisas, coisas mesmo, e fico pensando sobre elas. Acho que é isso o mais legal de quando a gente vai pra esses lugares, tipo esse aqui, eu lembro de que... não sei, nada está morto, manja? Tem que ter alguma parada nessas coisas, tipo um sentimento mesmo, não sei. Por que elas tão na nossa vida, tem muito mais coisas do que pessoas no mundo, e o mundo é tudo, não é? E nesses terrenos só tem coisas, e as coisas estão juntas, e elas tão lá, estão juntas, sabe, e ao mesmo tempo sozinhas. Como tem gente que fica assim. Tudo o que existe é tipo vivo, mano, é isso que não sai da minha cabeça. Tipo aqueles filmes em que os máquinas da casa ficam doidas, saem andando sozinhas. Eu não tenho medo, nenhum. Porque a gente tem que entender essas coisas. Elas ficam o tempo todo dormindo, eu acho, elas só ficam dormindo, de boa, tá ligado? Só que a gente não consegue entender isso, a gente acha que porque a gente comprou elas, a gente entende elas, e, tipo... não entende nada. Daí, quando elas acordam, a gente morre de medo. Mas elas só tão acordando! Então, mas o meu pai, esse Tião, o Sebastião, minha mãe disse que ele começou a ter umas nóias quando me viu, que ele já era bem maluco quando minha mãe engravidou dele, mas ela dizia que isso era legal, que ele enchia a cabeça dela com umas frases estranhas, ela me disse que eles tavam vendo televisão e ele ficava dizendo que, tipo, o cara da TV não era quem ele era, que ele era uma outra pessoa, que ele estava usando uma fantasia, umas máscaras, sei lá, e que na verdade quem tava na TV era, tipo, a mãe dele, o pai dele, que a família dele vivia dentro da TV, mas fingindo que eram esses apresentadores e pans, só pra atormentar ele, enganar ele. Ela me disse que isso era super-engraçado, que vivia dando risada dessas paradas que ele dizia e que só depois de um tempo começou a ficar estranha a coisa, porque era de verdade, cara. O Tião, o meu pai, ele tinha várias merdas desse tipo na cabeça. Olhava pra uma coisa e achava que era outra. Mas não é que ele só achava, ele tinha certeza, haha. Então, mas daí eu nasci, sei lá, estranho dizer isso. E ele tava no hospital e tal e ele me viu e ele disse que eu não era filho dele, ele só ficava dizendo "Esse não é o meu filho, isso nao é o meu filho, essa coisa não é o meu filho". Daí já viu. Minha mãe pirou junto, começou a chorar, saiu direto do hospital pra casa da minha vó, tipo novela. Só que ele no começo não dizia porque ele achava que eu não era o filho dele, ele só dizia "Isso não é meu filho", tipo, ele não dizia "Ele não é meu filho" ou "Esse não é meu filho", ele começou a dizer "Isso não é meu filho, essa coisa não é meu filho". E meio que sumiu no mundo. Minha mãe dizia, tá ligado, que nunca tinha transado com nenhum outro homem, que o Tião tinha sido o primeiro dela, sei lá se isso é verdade, mas é que ficava parecendo que ela tinha chifrado ele com um outro, pelo o que ele dizia, que meu pai era outro cara, e isso não era verdade. Foi o que doía mais pra ela. Daí um dia, eu já devia ter uns dois meses, e meu pai apareceu na casa da minha vó, porcão, fedendo a pinga, o cabelo todo encarapitado da sujeira da rua. Tipo um mendigo, ta ligado?, esses caras que ficam na rua enchendo a cara o dia inteiro e batendo punheta na frente de todo mundo, xingando quem passa, sei lá também. E daí ele começou a dizer que queria ver minha mãe, mó situação, tá ligado?, e minha vó dizendo que não, que não, mas minha mãe apareceu comigo no braço e ele explicou que eu não era uma criança, haha, mas que eu era um objeto, saca? Que eu era uma coisa. E minha mãe disse pra mim que a cara dele tava nojenta mesmo, toda inchada, que não parecia ele, que era outra pessoa, mas com as mesmas idéias, tá ligado? E ele disse pra ela que ela tinha parido uma coisa morta, um pedaço de plástico, que quem tinha engravidado ela não era um homem, ou vários homens, que ela tinha engravidado da cidade inteira, e ele tava dizendo isso, tipo, não como se fossem todos os homens da cidade, mas como se a cidade fosse um homem, haha, e esse homem, a cidade,é que tinha trepado com a minha mãe e engravidado ela, mas de um objeto, eu, sabe?, uma coisa que ia crescer mas que seria sempre um objeto, uma coisa. Foi isso que o Tião, meu pai, falou pra ela. E depois ele sumiu, foi por aí, morreu, sei lá.

-Tô ligado, repliquei. Em nenhum momento trocamos olhares enquanto ele falava, como se ouvíssemos uma voz alheia a nós dois. A história toda me fascinou, e o que mais me lembro até hoje é das risadas que ele soltava no meio de sua fala, como elas eram verdadeiras, começos de gargalhadas não realizadas. Senti que não era meu direito comentar.

Quando por fim ele e eu nos calamos, nos vimos na mesma rua, que por todo o tempo estivera apenas a descer e a fazer uma longuíssima curva, um caracol que não entendíamos por completo. Procurei por uma placa, mas meu amigo insistia que estávamos na rua certa, mesmo sem conseguir me explicar porque estávamos na rua certa, já que há pouco ele mesmo não sabia como chegar ao Blaster. Estávamos parados, cercados de casas de luzes apagadas, já devia passar da uma da manhã daquela terça-feira de junho de 2007. Olhamos ao redor e o segui por um corredor entre dois muros altos, cheio de mato e latas de tinta amassadas, mal cabia uma pessoa. Ao fim dele, o terreno e a ruína de uma construção nos esperavam, sombras gigantescas à distância, iluminadas pelo o que havia fora dali. Caminhamos lentamente, sem saber no que pisávamos, esperando nossos olhos se acostumarem com a escuridão. Entendi que estávamos no estacionamento, ainda com as marcas das vagas no chão cheio de rachaduras, entre as quais fortes plantas com flores, se bem me lembro, cresciam já altas. Ao longe, uma longa e extensa parede, filho, com as mesmas janelas semi-circulares que vi no cartaz, mas sem mulheres, homens, crianças, cachorros e famílias. Delas, um tênue ar amarelo refulgia, e me pareceu então, caminhando silencioso com Pedro pelo maior terreno abandonado que já havíamos conhecido, que não havia teto para aquele muro. Ele está erguido, mas não há sentido pra isso, pensei, ele não protege, suporta ou arquiteta nada. Demoramos ao menos dez minutos para atravessar o plano aberto, parte de uma ilha que havia sido tomada e englobada, mas não digerida, pelo crescimento do que havia em volta. Passamos por um carro velho, cheio de terra esparramada por uma porta aberta; pelo esqueleto do que parecia um caixa-eletrônico; por postes de luz amassados ou caídos; por manequins deitados, caixas-de-papelão da altura de pessoas, um trator antigo, orelhões esverdeados, lâminas de madeira empilhadas e encimadas por uma privada e por uma quantidade considerável de lixo doméstico. Tudo delimitado por muros, com entradas semelhantes à que usamos. Imaginei quem os havia construído, se a G.M.A.P ou a prefeitura ou os moradores, quem queria se isolar de quem. No chão, pequenos objetos eram esmagados por nossos pés. Chegando à parede, ambos a tocamos quase simultaneamente, tateando para melhor compreender o que havíamos visto de longe. Sua pintura, descascada, dava lugar a um cimento ainda quente, depositório do calor do dia. Nos esgueiramos por ela, em direção à entrada, tropecei no que reconheci serem os restos mortais de algum animal e me apressei a pisar onde Pedro, que tinha Verde em mãos, pisava, a literalmente seguir seus passos com todo o cuidado possível, tendo certeza de que só assim estaria seguro.

No que parecia a frente do lugar, por onde espalhavam-se o que eu achava serem roupas infantis e embalagens plásticas indefiníveis, a iluminação exterior, quem sabe do luar e das ruas vizinhas, chegava plenamente e se espelhava em uma placa de metal sobre a qual caberiam dezenas de carros enfileirados, supostamente caída do pórtico. Sobre seu pó acreditei ver desenhada uma versão manual da terrível imagem da Coruja Gmap, ou assim entendi então. Havia também as marcas e furos dos desaparecidos parafusos que seguravam as desaparecidas letras de alumínio, provavelmente as que diziam "Blaster - O Maior Supermercado de Todo o Mundo", mas era impossível saber com certeza se era isso o que antes estava dito, mesmo se aquilo havia caído do pórtico ou sido levada até ali. Possivelmente haviam sido roubadas, as letras, assim como os parafusos, carregadas por descobridores anteriores a nós. Pedro subiu sobre essa placa, e, parecendo ainda mais pequeno, balançou levemente, jogando seu peso para baixo e produzindo um ruído de duas coisas duras raspando, e esse ruído viajou e voltou na forma do eco de algo vivo. Atrás dele, podia ver a entrada da ruína, sem telhado, apenas quatro paredes altíssimas, esburacadas, expostas, nuas, miseráveis, dignas de piedade, que se estendiam em direção à escuridão total. Ele pulou da placa e entrou. Caminhamos no início por um corredor com lojas de vidraças despedaças, os cacos se misturando com objetos enegrecidos no chão. Em uma delas, uma larga estante com caixinhas apoiava-se desesperada sobre o vidro intacto, tal tivesse tentado por anos fugir dali, sem sucesso. Ao chegar no galpão, percebemos, eu e Pedro, ao mesmo tempo, que o lugar não era tão grande quanto gostaríamos que fosse. Um supermercado é apenas um galpão grande, filho, e era aquilo que víamos ou acreditávamos ver, com a luz que a noite proporcionava. Intermináveis pilastras grossas e lisas, sem qualquer tipo de adornos, saím do chão e não alcançavam nada, longas filas delas, mais pedaços de papelão e de isopor. O vento artificial que ouvira antes ali corria com toda a força, soprando uma poeira sobre nossos rostos. Mais do que memórias desimportantes ou coisas a serem colecionadas e revividas, recebíamos essa poeira, inodora, que se colava em nossas pupilas. Apenas ela. Lembro de ter pensado que, se aquilo um dia fora o projeto do maior supermercado já construído, em 1984 o mundo era muito menor do que em 2007.

-Espera aqui, Pedro disse, quando a luz já rareava ali dentro.

-Por que?

-Espera aí que eu te chamo se tiver alguma coisa, disse, e me deu o saco com Verde.

Ele desapareceu à minha frente, e a partir da quinta ou sexta fila de colunas pude apenas ouvir seus passos calmos chocando-se contra alguma poça de chuva que não havia percebido existir. Vi-me sozinho, cercado pelos sons das televisões, de onde pessoas grunhiam ruídos elétricos e plasmados, não identificáveis, e pelo vento, como que canalizado por uma grande estrutura que eu não podia ver, miraculosamente ainda funcionando depois de tantos anos de abandono. Uma imagem plantou-se em mim: Pedro caminhava sozinho e cego rumo ao grande ventilador, às suas pás afiadas e submersas na falta de luz. Era uma espécie de armadilha ocasional. Ele estaria caminhando e o barulho aumentaria gradativamente e, sem que meu amigo fosse sequer capaz de imaginar o que tivesse ocorrido, uma dessas pás o feriria gravemente, e logo depois, ainda sem entender o que saído do escuro o atingiu, sangrando e provavelmente já amputado no chão sujo há decadas, em milésimos de segundos outra pá o encontraria, dessa vez de maneira mortal, e mesmo morto, seu cadáver continuaria a ser cortado em fatias cada vez menores por essas lâminas grandes como armas de gigantes, tornando-se por fim um emaranhado de carnes e vísceras que escorregariam lentamente até o motor invísivel da engrenagem, paralisando-o por fim, após tanta energia gasta sem motivo algum, juntando-se às ruínas. E quando algum barulho estranho irrompesse no galpão onde eu esperava por Pedro, um engasgo talvez, e o ar sujo parasse de ser empurrado em minha direção, então eu estaria de fato sozinho. E gritaria por Pedro por horas, ouvindo a minha própria voz e as programações televisivas da madrugada, sinais de vida próxima, mas inalcançável.

Pedro parou, percebi depois de alguns minutos, e uma luz fraca e difusa acendeu-se muitos metros além, sem iluminar nada reconhecível. Ouvi sua voz, mas não era a mim que ela se dirigia. Falava baixo, e havia também outra voz, em uma conversação tão incompreensível quanto as saídas das TVs da vizinhança. Não consegui distinguir se eram cumprimentos, reconhecimentos ou uma discussão. Só algo que defini como vozes humanas surgindo de maneira intercalada. Achei ter ouvido meu nome duas vezes, e quase comecei a caminhar, mas me mantive parado, esperando o terceiro chamado que só veio após um silêncio. Era Pedro que dizia meu nome? Como podia ter certeza de ter ouvido meu nome? Ou como poderia saber que aquilo era produzido por pessoas?, perguntava-me enquanto caminhava na escuridão, com os braços estendidos à frente, tateando as pilastras. A luz vinha de um cômodo nos fundos do galpão, notei, e o que agora era visível estava completamente vazio. "Pedro?", disse, muito baixo, e depois de novo, "Pedro?", me esforçando para gritar, sem conseguir. "Aqui", ele disse, também com a voz muito baixa, e pude suspirar. Fui até a porta entreaberta, tão grossa como a de um freezer, e dentro dali Pedro, de pé, observava minha chegada, todo o facho de luz concentrado sobre sua cabeça esbranquiçada, que flutuava na escuridão e parecia separada de sua pessoa. Demorou algum tempo até eu perceber que a luz vinha de uma lanterna, manejada pelo o que se assemelhava a um homem deitado a seus pés.

-Ele mora aqui, mano, afirmou Pedro, e, tal uma encenação, o pequeno holofote foi parar no rosto do homem. Havia olhos, uma boca, um nariz, mas nunca mais, meu filho, fui capaz de me lembrar de algum traço característico dele. O que via à minha frente era uma máscara deformada por suas sombras, outra cabeça pendurada no nada, com uma peruca de cabelos tão pretos e encaracolados como os de Pedro.

-Quem é você?, disse a máscara, jogando a luz contra o meu rosto.

-Eu sou amigo dele.

-Que tipo de amigo?

-A gente veio enterrer meu peixe.

-Que peixe?

-Esse aqui, e exibi o saco invisível.

-Não tou vendo peixe.

-Esse aqui, e levei o saco até meu rosto, criando reflexos estranhos.

-Tem um peixe aí?

-Tem.

-Deixa eu ver, dá pra mim.

E antes que eu pudesse falar algo, Pedro veio em minha defesa.

-Calma, cara, a gente só veio enterrar ele. O nome dele é Verde. Aqui não é aquele lugar, o Blaster? Então...

-Não!, o homem gritou, aqui não é o Blaster não! Blaster? Isso aqui não é blaster nenhum.

-É sim, um super...

-Esse lugar é a minha casa, ele continuava gritando, eu construí esse lugar. Cada tijolo desse lugar fui eu quem construí, eu quem botei. O que vocês estão fazendo na minha casa?, afirmou, em um tom mais baixo, como se fosse uma pergunta verdadeira, e a lanterna saiu do rosto de Pedro e ficou largada no colo do homem deitado e percebi que ele vestia um terno colorido, vermelho ou rosa, e por toda a parte ele estava pontilhado por sujeira, talvez marcas de cigarro, e no bolso desse terno havia um lenço azul escuro e não pude deixar de fitar o lenço azul de seda, irretocável. "Essa é a minha casa, e vocês estraram na minha casa, essa é a casa do Tião, do Sebastião", voltou a gritar.

Ao dizer que ele se chamava Tião, Sebastião, olhei para onde achava que Pedro estava, sem saber se ele estava ali, sem poder observar a reação de seu rosto ao ouvir o nome de seu suposto pai enlouquecido e abandonado à própria sorte no mundo, com a mão direita tremendo, não de medo, ainda não tinha medo, Pedro estava ali, comigo, e não havia o que temer enquanto ele estivesse comigo, mas de excitação, de uma pavorosa excitação. Ah, meu filho, eu era tão novo. Acreditei que o que estava à minha frente era a confirmação de minha fantasia, sua transmutação em verdade: aquela era de fato nossa peregrinação mais importante, e aqueles meus passos logo que saí de casa tinham sido definitivos, e eles só foram possíveis pois um dia resolvemos andar por aí e visitar terrenos abandonados, hábito que agora tinha seu sentido final revelado, e eu era o dono daquela frase dita pelo homem, percebe, meu filho, é isso que entendi no momento, que a minha capacidade mental de pensar em uma história, de concatenar o mundo exterior em uma narrativa própria, foi o que a tornou possível. A vontade de fazer continuar o que eu mesmo havia criado me obrigou a perguntar, em voz clara e alta, confiante, séria:

-É o seu pai, Pedro?

-Pai? Que pai? Eu não sou pai de ninguém, o homem me interrompeu, voltando aos gritos, tão mais altos ali, no quase total silêncio, do que em qualquer outro lugar.

-Quê? Pirou, mano?, concordou Pedro, da escuridão. Meu pai, tá maluco? Meu pai...

E a luz voltou a ele, e Pedro endureceu como se o facho o machucasse. Sua expressão estava fechada, preparada para algo pior. E a luz rondou todo o meu amigo, voltou para seu rosto, tornou aos braços e pernas, finos e frágeis, o corpo de uma criança.

-Não... não... eu me enganei, afirmou o homem, quase rindo. Você é meu filho, sim. É, você é o meu filho. Que fugiu de casa. O meu filho.

-Cala a boca, tiozinho maluco. Não sou seu filho, não.

-É sim.

-Não! Eu não sou seu filho, tá ligado?!

-Você é o meu herdeiro, e veio se juntar ao pai. O homem falava e quase gargalhava, felicidade ou humor, impossível saber.

-Cala a boca!, disse Pedro, e ele falava duro como um homem fala com um animal, não havia nada de aterrador em seus olhos, apenas confiança e raiva. Pedro pôs-se então entre mim e o homem. Apertou minha mão e disse: "A gente acha outro lugar pro enterro", mas antes que pudéssemos sair, o homem segurou a perna de Pedro e a puxou para si e Pedro caiu e o homem jogou a lanterna sobre seu rosto e alisou seu cabelo. Meu amigo debatia-se, mas não conseguia se soltar do carinho daquele que se dizia seu pai.

Que estranho fim minha fantasia teve. Me virei e corri, filho, abandonando Pedro, batendo-me em pilastras, escorregando nas poças, saindo daquele bairro onde havíamos parado em nossa fantasia. Corria, e quando me cansava andava, mas não parei. Por todo o tempo estive a sonhar, em uma realidade abstrata, descolada da cidade que revia, de olhos abertos, claro, mas por inteiro atrelado à sensação de responsabilidade universal que sobre mim se abateu. Eu havia pensado em tudo, filho, era o criador involuntário da totalidade de coisas, pessoas e fatos. Isso explodia em mim, desapaixonadamente, e continuei correndo. Tinha sido o pai de Pedro, do homem, das ruínas; havia tornado possível aquele abraço horrendo do qual meu melhor amigo foi vítima. Acreditei entender que o único medo possível era o medo dessa minha propriedade, dos resultados monstruosos que a minha existência anterior trazia a ela. E cada um de nós carrega isso, não é?, o botão de fuga, a possibilidade de se evadir da própria história que construiu _ou será isso o que há de mais aterrador?

Cheguei em casa ao final da madrugada, imundo, machucado, meu conjunto de roupas preferido lavado em suor, imprestável, e não disse nada à minha mãe, que ainda dormia, nem à mãe de Pedro, dois andares abaixo. Coloquei Verde, morto, de volta em seu aquário e deixei-o ali o tempo necessário para que um dia se confundisse com os objetos submersos, e fosse esquecido. Houve um inquérito, creio, mais um menino desaparecido nesta cidade, sem presos ou suspeitos. Sumido como as coisas acumuladas em meu quarto que, no dia seguinte, joguei fora. Deixo as pessoas para trás, isso é um dado do meu caráter, filho. Pedro foi apenas o primeiro a criar em mim o temor absoluto daqueles que, mesmo sendo minha propriedade, mostram-me aquilo com o que não posso lidar, relembram a mim que há uma matéria escura flutuando, e que para ela escorregarei. Não chamo o que houve depois de mudança, não tenho certeza de haver um ponto inicial de onde saímos e para onde podemos voltar; não há plataforma de lançamento, apenas um fluxo contínuo. Eu não era de um jeito antes desse episódio e hoje sou de outro, apenas descobri alguns limites desse fluxo na noite em que o apaguei de minha narrativa. Quando receber essa carta, meu filho, e eu já não estiver aqui, não se esqueça de fazer isso comigo também.