Contos, crônicas e novelas.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Meridiano de Sangue – ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste



“Meridiano de Sangue – ou O Crepúsculo Vermelho no Oeste” é um western novel que não ajuda muito quem procura mocinhos infalíveis, donzelas em perigo, índios raivosos, revólveres de munição infinita; muito menos traz anti-heróis eastwoodianos, perspicazes soluções de enredo e atos violentos como únicas soluções morais possíveis. Sim, ele ainda é um romance passado no tal Velho Oeste, portanto lá estão os caubóis, seus chapéus e cavalos; as cidades precárias, suas tabernas e prostitutas; os índios e os mexicanos; as armas e os tiroteios.


Mas Cormac Mccarthy, ao retornar a este conhecido inventário de peças, espana-lhes o pó e as cobre de sangue abundante, propondo que o povoamento do Oeste (e o subseqüente nascimento dos EUA como nação) revela muito sobre o germe apocalíptico que todo movimento histórico civilizador traz embutido – e que isso nada teria de acidental. O que intitulamos barbárie, propõe, é sagrada, amoral e perene; a ordem, mero artificialismo. Ao descer alguns degraus em direção aos porões da civilização, “Meridiano...” nos apresenta um grupo de inumanos guiando-se em um mar de vísceras que parece, estranhamente, inodoro. Como a epígrafe de Jakob Boehme (autor alemão do século XVI, ligado ao gnosticismo) explica, “não se pense que a vida das trevas está mergulhada no desamparo e vergada num eterno pesar. Não há pesar algum. O pesar é algo que a morte extingue, e a morte e o morrer são a própria vida das trevas”

A fuga dos clichês do gênero arrima-se na pesquisa histórica, expediente típico entre escritores norte-americanos, a. A estória narrada é baseada nos diários de certo Samuel Chamberlain, homem que, após andar pela fronteira entre EUA e México do século XIX com uma gangue de caçadores de escalpo chefiada por certo John Glanton e por outro possível personagem real, o juiz Holden, escreveu “My Confessions”, livro no qual conta todas as atrocidades que viu e participou junto ao grupo.

Assim, os termos e as falas dos personagens seguem uma gramática e sintaxe que parecem serem fiéis à época; por vezes, sentimos a necessidade de termos um mapa do Texas do século XIX para nos localizarmos completamente; a descrição do funcionamento das armas rudimentares usa palavras semi-científicas, dignas de um dicionário; os homens (é um livro composto quase que apenas deles) nunca se assemelham aos lustrosos personagens de livros didáticos – pelo contrário, são feios, incultos, donos de desejos simplórios. É como se o livro tivesse sido escrito no exato momento em que todos aqueles horrores se deram, por alguém que de fato os viu – quiçá por alguém que deles também participou –, e não por um homem do século vinte.

Quem conhece outros livros de Mccarthy sabe que essa prestidigitação é comum. Sua linguagem, ao um tempo seca e pontuada de maneirismos (como a indiferença formais entre as falas dos personagens e a do narrador), cria uma originalidade e uma coerência interna de tal monta que temos a impressão de estarmos diante de algo escrito não por alguém inserido no dia-a-dia banal de um homem que lê jornais, vê TV, ouve rádio, diriges carros e vê filmes de western, e sim por um enviado das forças ocultas e superiores – um ser alheio a tendências literárias ou sociológicas, algo como o narrador em terceira pessoal ideal: uma ponte entre o real e o ficcional que só existe por um desses motivos incontornáveis da criação. A todo o momento nos perguntamos se não seria aquilo um excerto bíblico.

De forma geral, a sinopse de “Meridiano...” não é muito diferente da do livro de Chamberlain: um órfão de 16 anos, chamado apenas de rapaz, se junta ao grupo de Glanton, que caça escalpos de índios e mexicanos por encomenda. Tentar resumir a história, cheia de pequenas reviravoltas, seria inútil. Não existe uma longa linha articulada de fatos que se relacionam em chave de causa-conseqüência. Em movimento constante, os cavaleiros vão de cidade em cidade, de massacre em massacre, sempre irremediavelmente sujos, carregando uma indumentária grotesca. Vestem-se com roupas feitas de pele humana, carregam correntes cheias de orelhas, ornam seus cavalos com cabelo e dentes de seus mortos. São repletos de cicatrizes de batalhas anteriores – um não tem as orelhas, o outro tem o rosto desfigurado, dedos extirpados são comuns. Nada de calças jeans apertadas, camisas xadrez e aconchegantes sacos de dormir, muito menos um inglês de sotaque britânico como em filmes de bangue-bangue. Eles são quase mudos, fantasmas afetivos desprovidos de qualquer espectro de de vida interior. Perto deles, o Fabiano de Graciliano Ramos é um verdadeiro Julian Sorel de Stendhal. Naturalmente, parecem terem vindo de lugar nenhum: não se sabe suas origens e isso pouco nos afeta, aceitamos suas existências puras da mesma maneira que aceitamos as de cactos ou rochas.

Brutos, vivem como em uma tribo nômade incapaz de compartilhar de qualquer espírito cooperativo tribal. Matam uns aos outros, não enterram aqueles que ficam pelo caminho – pelo contrário, ficam com suas roupas e armas. Odeiam-se ou se ignoram. São substituídos como peças desprovidas de capacidade de se darem importância, não têm consciência de sis mesmos nem dos que o cercam. O tempo em que vivem é cíclico, e a jornada do grupo, a partir de certo momento, não tem destino que não seu próprio fim. Como não são exatamente humanos que a conduzem, não se trata da organização civilizada do tempo: os homens, bichos-armados, estão submetidos ao extra-humano.

Os únicos personagens que recebem tratamento diferenciado são o rapaz e o juiz Holden. O rapaz, protagonista da linha narrativa de rosto nunca descrito, serve mais como uma lanterna: aonde ele vai, vai também a estória. Ainda que ele também mate, é o único que apresenta sentimentos. Aqui e ali demonstra ser um homem piedoso; é o único que põe em questão as atitudes do bando. Apenas no final guia a ação, mas sempre a testemunha.

Já Holden afigura-se como um personagem pronto para assombrar-nos em nossos piores e mais sofisticados pesadelos. A começar por sua aparência. Mede cerca de 2,25m, não tem pêlo nenhum no corpo e é albino. Parece impossível estimar sua idade. O bando encontrou-o rindo no meio do deserto, parado encostado a uma rocha, sem cavalo ou bagagem, como se tivesse estado ali desde sempre a esperá-los. Dono de uma destreza insuperável com armas, ele as constrói e as usa como ninguém algum dia viu. Leva sempre consigo um caderninho, aonde faz anotações e desenhos sobre a fauna, a flora e seus colegas. É fluente ao menos em inglês, indígena, holandês, francês, latim e grego. Tem conhecimentos avançados sobre geologia, teologia e filosofia. Fala como um erudito e, às vezes, junta o grupo para monólogos quase incompreensíveis. É cortês e dança esplendidamente, com direito a passos de bailarina. À noite, é visto correndo nu pelo acampamento, gritando ou falando sozinho, insone. Como a maldade encarnada, em certo momento salva dois cães filhotes apenas para destruí-los com as próprias mãos. Repete, na última página do livro, que “não vai morrer”. E adora crianças: sempre que o grupo cruza com uma delas, a leva no colo carinhosamente por alguns dias e, semsabermos como, a estupra e mata.

Cristo e Satanás: essa é a oposição que os críticos costumam estabelecer entre os dois. Na verdade, existe mais do que oposição entre os dois – é sim uma relação verdadeira, de curiosidade e de vigilância. Há um momento em que o rapaz pergunta: “E ele é juiz do quê”, não tendo resposta de ninguém. E o narrador deixa claro, em várias passagens, o olhar especial que Holden põe sobre o rapaz. Até por ele ser quase uma criança, estabelecem-se situações de tensão quando ambos estão em cena e nossa desconfiança de que são as duas pontas de uma corda que toda aquela matança carcome – e que as duas, mais cedo ou mais tarde, se encontrarão – é satisfeita pelo final, em que, após a morte ou fuga de todos do bando, o juiz passa a perseguir o rapaz por um motivo não explicitado, como um monstro de sonhos infantis, por entre montes de ossos, através de um deserto de horizonte sem fim. É uma enorme cena, quase que puramente simbólica. Se no início ambos pareciam os únicos homens de carne e osso, se tornam pouco a pouco caricaturas, signos puros do “bem” e do “mal” – destituídos de sua humanidade tal como os cadáveres acumulados durante as páginas do livro foram atirados para longe do imperfeito mundo dos vivos. Um “bem” acovardado e um “mal” sagaz, é verdade, mas ainda em conflito, em interdependência.

Afora os dois, esses cavaleiros do apocalipse não são tratados por Mccarthy como especiais ou predestinados: cumprem à risca o papel de homens comuns da história, ao mesmo tempo que agem com a mais pura selvageria – mesmo os indígenas são mostrados como seres afetuosos e minimamente piedosos. Não estão muito distantes dos cavalos canibais, dos abutres onipresentes ou dos porcos comedores de carcaças humanas. Pelas cidades que passam, alastram o horror, estuprando as mulheres, embebedando-se até a inconsciência, matando os nativos com a mesma gratuidade com que se mata insetos. Estes povoados, que contratam os serviços de proteção do grupo, estão apinhados de uma gente infecta e miserável que vive em precárias casas de barro. Por vezes, um desses cidadãos quaisquer é recrutado pra o grupo de assasinos. Sem maiores indagações, passa de vítima a agressor.

Quando anoitece, somos transportados para tabernas às escuras, habitadas por seres que vivem nas sombras, ou para fogueiras rodeadas de rostos cadavéricos e mudos. As cenas de batalhas, narradas com uma objetividade nauseante, são dignas do inferno de Hieronymous Bosch. A verdade histórica é tratada com tal rigor que dobras-se sobre si mesma: não é preciso muito para que se pareça com a mais gótica ficção.

Essa subversão estrutural da verdade é uma constante no livro. Tudo o que se refere à passagem humana é tratada com enorme despojo poético: conta-se nos dedos as metáforas usadas para descrever os massacres, as cidades, os rostos. É uma narrativa sempre muito objetiva e detalhada, num esforço cinematográfico de verossimilhança. Coerentemente a esse artifício, não existe julgamento moral algum. Estabelece-se então uma confusão, pois não parece crível que todo esse horror absoluto – tratado como tão verdadeiro – seja impune, que seja livre de pesar, que os homens sejam de tal maneira despojados de sentimentos, que gozem de uma normalidade diabolicamente niilista. Parece mentira.

De fato, “Meridiano...” é uma ode ao apocalipse da idéia civilizada de verdade: ela não está na ciência, na retórica, na moral ou no afeto, uma vez que nada disso existe nos personagens do livro. Eles, protótipos do homem comum, nada sabem, pouco falam, nunca sentem. Não há Estado, não Deus, não há Ordem. Como Holden diz, “a Guerra é deus”: a verdade só existe como não-verdade, na medida que a própria verdade é uma invenção humana; ela só é possível na selvageria, no não-humano, que dela não se ressente pois a ela não busca. Uma honestidade verdadeira e universal, pois não conhece o falso, essa dicotomia inventada.

Assim, os momentos mais belos do livro são reservados para as descrições do mundo que cerca os homens. É aí que Mccarthy concentra sua escrita deslumbrante, é quando mostra-se digno das insistentes comparações com Faulkner. As descrições das montanhas, de longínquas tempestades elétricas, do clima com todas as variações possíveis e das monstruosas nuvens de poeira ganham trato poético refinado e poderoso. O meio ao qual os semi-homens devem deferência e maternidade é mostrado como a terra de deuses ausentes, paraíso auto-suficiente e imemorial. Ele é justo e injusto, certo e errado; ele é absoluto, unívoco; ele nunca esteve vivo.

A banalização da vida tem aqui um sentido não fútil, mas de reforçar o que existe de perene, de não-civilizacional. O homem é passageiro de um trem – o real – do qual ele apenas fantasia ter controle: acredita que transformá-lo é recriá-lo. Quando o apocalipse se der e não mais puder ser nomeado, quando todos os caubóis, todos os índios e mexicanos, quando a própria história (como reconstrução necessariamente ilusória) e a própria literatura não mais existirem, ainda estarão ali as pedras e a poeira; as tempestades elétricas a iluminar montanhas de matéria bruta – como “gigantescos monstros marinhos adormecidos”; ainda existirão as imagens e a sua beleza.

E é à Morte, por sua vez, que esse mundo remete. Não a morte religiosa, continuação fantasiosa da vida, mas a Morte como idéia pura, fonte metafísica primária e intocada, como tudo aquilo não conhecido. Inexorável – é a única constante na errática jornada do grupo de Glanton –, ela trará para si tudo o que é belo, tudo que apodrece: como fim, baú da memória e das imagens e da própria existência. Ela é maior do que a vida como o oceano é superior aos incontáveis rios e seus afluentes que o alimentam; como um disco de Newton é superior a todas as cores nele inscritas; capaz de comportar o incomensurável por que é nela que pensamos quando criamos esse tipo de definição incompatível com nossas capacidades de apreensão.

O que Mccarthy faz, com sua pilha de mortos, é criar um mundo limite, obviamente fabular e exagerado, justamente para estabelecer uma baliza. O desenvolvimento do que conhecemos como civilização – e sua hipérbole, a modernidade – tem como valor primário a vida, seu aperfeiçoamento, melhoramento, sua eternização. Costumamos entender ela como a Verdade a ser perseguida e defendida. E isso, por frustrante que seja, não será verdadeiro enquanto não for confrontada com o absoluto de seu oposto. Eis o paradoxo eterno que Mccarthy traz à tona: o culto à morte é o primeiro indício que um grupo humano é civilizado; se não a observamos em todos seus detalhes, se não nos paralisarmos perante a sua beleza inescrutável, somos ainda animais primevos.

Holden é assim o protagonista do sentido do livro, pois guarda em si as ambivalências desse paradoxo. Quando, anos depois das aventuras junto ao grupo, o rapaz (já velho) o encontra exatamente com o mesmo rosto que tinha décadas atrás e o juiz o empala em um banheiro fétido do fundo de uma taberna, a morte prevalece. Como gostamos de pensar sobre a Justiça, tarda, mas não falha. Afinal, ele é o juiz de sua espécie, ser eterno, como que vindo à carne para a ela destruir, que conhece a tudo, pois é a esse cosmomundo que está ligado, de onde provém e para onde parece querer levar tudo o que o cerca. Em seu nunca lido caderninho, tenta se apossar da vida em assassínio simbólico, levando desenhos de homens e de animais dentro do bolso. Quando tudo passar, ainda dançará, belo e frágil. Ainda será o homem que o homem perseguiu ser durante toda sua história: imortal e magicamente sábio, desvendando também que, por dentro de sua busca desesperada pela existência, existe a dialética necessidade de autodestruição. O prazer que tem em destruir os germes humanos (crianças) das formas mais violentas conhecidas é a resposta inversamente proporcional à arrogância humana – e o faz sexualmente, como uma reprodução estéril. A fina ironia de um monstro.

Trata-se de um ato de estranha honradez e humildade perante a próprio destino a que estão condenadas no exato momento em nascem. Forte é o homem que compreende o poder da morte e do mal, não aquele que se ilude com a transitoriedade de bem. Como ele diz em sua última frase ao rapaz: “Há ursos que dançam e ursos que não dançam”. Ele dança.