Vão tarde. Dois urubus. Chegaram com os aparelhos na mão e rodearam o cadáver por horas. Horas. Duas, cinco. Agora foram embora e restou o cadáver. Pra que vieram? Urubus. Já sem alma, aquilo, no chão. Não se podendo mais dizer que era um homem, ou uma mulher, apenas um cadáver. Enterrem-no logo, é só um resto de matéria sem o benefício da dúvida. Os olhos se arrependem de ver. Os olhos da gente. Os urubus, carniceiros desgraçados, filhos da puta que os pariu não são gente. Nem um pouco de gente. Eles tiraram fotos do cadáver. Eles tiraram foto de uma coisa sem memória, que, veja só, não é mais retratável. Como uma coisa sem memória pode ser retratada? Melhor, uma ex-pessoa. A imagem da pedra que já pensou. Pode? Até se puder, não há necessidade. Já pediram pra tirar fotos da Soledad. Veio um homem, baixinho e barrigudo, carequinha. Milhões iguais lá fora. Pouco surpreendente então que procurasse algum tipo de aproximação mais íntima com a criança. Sujeito descasado. Suspeitou-se de solidão e de traços suicidas. Disse que a menina era linda. Ela é, mas não pode tirar retrato. Não. Fazer um book, tá. Depois estuprá-la e sumir. Não. Mas pelo sujeito que era. Porque Soledad é retratável. Vai crescer e vai ver sua foto. Linda que é, vai sorrir. Imaginar-se na televisão e pensar no próximo retrato e na pose que deve fazer, se vai repetir o sorrisinho e correr para o espelho e treinar o rosto e ser feliz com isso. Crescer pela foto. É retratável. Tem uma lógica, porra. Mas os urubus ficaram quatro horas debruçados sobre um cadáver. De todos os ângulos. Aquela massa roxa e preta. IML. O doutor médico perito especialista criminoso. Assassinato é o caralho! Não é retratável, está na lógica. Máquinas fotográficas não existem para retratar um cadáver, em respeito aos vivos, sim. Amanhã está na capa do Agora. Vai fazer o que? Pedir desculpa? De qualquer forma, não se podia ter feito isso. À nossa imagem devemos nossa contemplação, nosso respeito. É o que Deus nos deu. Nossa foto é mais uma fonte de crescimento íntimo, de nossa individualidade e de sua aparência que vai ecoar na vida toda, até nas outras pessoas. Soledad ia ficar mais bonita depois do retrato, ia iluminar todo mundo, muito se sabe. E aos outros devemos dar um crédito nessa questão pessoal. A opinião é o moto-contínuo. Mas em nossa presença que façam seu julgamento. Porque para o nosso retrato, de papel, de memória, o olho dos outros é insignificante. É. Urubus. Bicaram a carniça e a carniça não tem como se defender. Ninguém aceita isso, é a verdade. Covardia. Quando o intelecto descansa é a primeira a se levantar. Não há saída. Depois de morto, acabou. Pode ser até alguém famoso que acabou no mesmo. Mas então os urubus entram em cena, quatro, cinco horas tirando fotos de algo indefeso e sem memória. Um não retrato estirado, torpe, sem juízo, inteligência, emoção, sem cu e sem nariz e sem olhos pra ver, só átomos aposentados, já parasitários no mundo do petróleo, da remoção urbana e do pouco espaço, da fome, do controle de natalidade. Tantas. E tantas que é o mesmo mundo das fotos de cadáveres. Ser humano é crime contraditório quando, de alguma maneira muito estranha, torna-se divertido abrir o Agora com a foto da nossa filha Soledad morta. Os próprios filhos de Deus. Foto de capa. Assassinato coisa nenhuma, rapá! Não havia mais sexo no corpo roxo e preto, não havia memória. Não foi assassinato de Soledad. Perícia conclusão chega resultado depois quatro cinco horas pai terça-feira indiciamento. Doutor delegado corrupto filho da puta. Dois carniceiros sobre um resto de coisa-nenhuma são os inocentes. Aliás, nem são inocentes, para eles não teve julgamento, são neutros. O meio. É, mas como fica o respeito aos vivos que o cadáver houve de deixar? Assim, de fora, intocado? Desprezo. O respeito foi anulado por lei oral.
Ah, tá, o caralho que fui eu.
Um comentário:
Você consegue imaginar como é sentir (falo aqui do tato) uma faca rasgando um pulmão?
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