Contos, crônicas e novelas.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

O Acidente

Ela havia se plantado na minha vida logo embaixo do meu carro, se materializado como um bebê cinematográfico vestido de branco, os cabelos lisinhos, cortados chanel, grudados na boca e expulsos de lá a cada urro, a pele plástica cristalizada em algo quente e vivo e absoluto, avermelhando-se.

Eu ainda não ouvia nada na verdade – os pistões e seus asseclas harmonizavam-se com cada um que povoava as calçadas e faixas e petróleo endurecido da avenida; guiavam suas bolhas de calor e seus dois periscópios ainda embutidos mas já em funcionamento a cada passo com estardalhaço profundo, cego-surdo-mudo e eficiente: todas as incríveis conversas nos celulares e as arrumações cortantes das roupas, os isqueiros trincando e os jornais se abrindo e o ar que eles mesmo moviam com os braços e pernas e troncos e cabeças era jogado de um lado a outro, meio que uma piscina pública e invisível sem bordas à vista ou regulamentação prevista em constituição alguma e era estranho pensar isso, porque alguns olhavam para cima como esperando que o céu tremeluzente azul-claro fosse a superfície e que as nuvens cinza e azul-claras os borrões de pais preocupados com um mergulho demorado demais para filhos tão jovens e ainda com os pulmões em fase de amadurecimento celular. Das janelas das torres, salva-vidas assistiam. E outros talvez imaginassem que até suas sombras faziam algum tipo de barulho porque olhavam para elas curiosos e outros simplesmente estavam parados, inflamando em ondas de calor que poucos aparelhos manufaturados pelo homem até hoje são capazes de visualizar – e mesmo sem ter ninguém para vê-los eles queimavam sozinhos e viravam os pescoços em penitência solitária, imaginando se, quem sabe por um dom fisiológico desses que figuram em livros de medicina datados da época em que ainda se acreditava que não se sabia tudo sobre as capacidades extra-humanas dos humanos, não encontravam os futuros membros de um grupo de ajuda muito específico ainda a ser criado.

Eles pareciam em uma procissão laica. Eles logo estariam em todos os lugares. Um me olhava, quase no fim do horizonte - ele estava na ilha da avenida e de onde eu estava não se via feição, sexo ou preferências de moda, mal se via o vão entre as pernas ou se diferenciava a cabeça do pescoço. Por fim, não era tão maluco imaginar que não havia espaço imaginável que algum dos olhos abertos e fechados não cobria. Ou que existia algum deles que não estava sendo – naquele momento em que vi a menina de cabelos chanel entre o retrovisor esquerdo e a porta do carro-, observado por alguém – ou que qualquer um deles não estava a observar algum outro.

E eles faziam isso tudo em silêncio, como doppelgangers das próprias almas.

Pois essa galera, toda a rapeize, toda ela, era o pano de fundo de um ruído maior. Um ruído ouvido quando algum esticava com os dedos as rugas e olhava no espelho como seria se sorrisse o sorriso que sorria há dez anos, um ruído ouvido quando dormiam flutuando nos céus avermelhadas da cidade e encontravam-se sob estrelas foscas e nenhum reconhecia os rostos fantasmagóricos um dos outros, um ruído que muitos confessaram a padres, irmãos, pastores, psicólogos, psiquiatras, melhores amigos, pais e mães e amantes e maridos e esposas (até a filhos!) ser estilhaçado em diferentes pequenos barulhos que ouviam quando dirigiam ou quando viam a TV ou quando se debruçavam em janelas, um grito ou uma risada ou apenas um bater de bolas de metal gigantescas (isso quando elas não rolavam pela rua), cuja origem, juravam, nenhuma equipe de prêmios nobel no mundo seria capaz de identificar. Alguns mais suspeitos diziam que duvidavam da existência de uma real origem dos barulhos. Da minha parte, sempre os ouvi e sempre achei que, se fossem condensados em algum lugar, esse lugar bem que poderia ser o frágil muro que se estendia por boa parte daquela avenida – ele corria paralelo dos dois lados, e terminava em pequenas casas enegrecidas, quase idênticas, ruínas de uma cidade esquecida ali - onde eu estava com o meu carro parado sobre uma mulher. Seria um grafite animado, com cores delirantes, parecidas com as usadas na pintura desses carros customizados. Ele brilharia mesmo que se abatesse sobre a cidade a absoluta escuridão (precisaria de algum tipo de fonte enérgica independente) e, dependendo dos artifícios tecnológicos, poderia também emitir holografias, imagens em 25 dimensões, a coisa toda – existe o problema adicional de ser necessário proteger os aparelhos geradores da coisa toda de gente muito empolgada com a idéia de levar um pedacinho deles mesmos pra casa, talvez um pequeno posto policial em forma de choupana fosse construído ali e, bem, não duvido se os policiais mesmos se tornassem uma diversão a mais, com os óculos escuros que usariam nas guardas noturnas, surfistas armados e admirados pela bovinice que olham os transeuntes: “essas caras são confiáveis”. E nesse muro, nesse grafite, nessa intervenção urbana pensada por um administrador público maluco não haveria um milionésimo de centímetro sequer livre. Haveria muita gente, gente esgotando os verbos do dicionário, gente que se você fosse contar demoraria 3 gerações e meia. Ele deveria evoluir segundo a mão da rua, de forma que quem fosse passando com o carro poderia ver a impossível evolução de todas essas pessoas fazendo tudo aquilo: pilhas de corpos mortos, como arranha-céus de carne e molho, pisoteados e esmagados (e transportados de mão em mão por sobre cabeças baixas, com sangue grudando nos cabelos dos outros) deveriam se formar nas esquinas de tinta, como monumentos instantâneos e instantaneamente apodrecidos (um pouco de efeito sinestésico cairia bem) em memória da própria multidão; e provavelmente demoraria alguns anos para que algum dos desenhos conseguisse chegar aonde deveria e havia até a suspeita muda e generalizada (entre os rabiscos) de que não haveria oxigênio ou energia ou gente mesmo para todos; quando sonhavam (essa parte era essencial) sobre sua volta por ruas vazias repletas desses sinais visuais ininterruptos de que se está voltando, veriam que seus lares teriam dado lugar a alguma abandonada praça com o nome de seu bisneto morto há séculos – a placa reluzente sob a sombra aracnídea de árvores não podadas e crescidas demais. Ter-se-ia a impressão, ao terminar o trajeto do mural, que todos haviam combinado de sair à rua àquele horário específico, irresponsavelmente, deixando esposas e maridos e mães e pais e vós e vôs e tios e tias e a parentada toda que não viam desde há tempo suficiente para não saber dizer quanto: em casa estavam todos aflitos. E haveria os filhos ignóbeis brincando com a TV e os cachorros e gatos e iguanas e peixinhos-de-aquário roendo ossos e pernas de sofá e toda a comunidade de insetos domésticos que precisava ser alimentada pelas montanhas de restos que aqueles pais e mães de família pagavam com o suor de seus aprendizados rastejaria pelas bordas do mural criando um cinturão como que feito de gás fluorescente - mas apenas de perto se poderia identificar a espécie de cada uma das pequenas manadas, contando, claro, as patas. Esse mural não produziria som algum, mas aposto que nasceriam lendas sobre desenhos que saíram andando dali, desenhos que criam vida e que comentam, para quem suporta vê-los se desfazendo em poças de óleo, sobre o ruído de metal esfregando-se em metal que todos ouvem lá e que todos se perguntam, lá, se não é justamente daqui que ele provém. Nasceriam muitas lendas sobre esse mural. Nenhuma delas faria as pessoas ficarem em casa.

Todas elas – as de carne – agrupavam-se com estranhos, com “coadjuvantes de sonhos”, nessa dança coreografada por sinais de trânsito, leis newtonianas e compromissos, não há dúvida, inadiáveis. Era essa dança repleta, esse coletivo de massas de coisas móveis sobre outras tantas imóveis (essas já pareciam a mesma coisa, a mesma terra e as mesmas pedras que estavam ali antes mesmo de serem moldadas em enormes línguas utilitárias e antes de se equilibrarem como totens sem povo, como dobraduras de gigantes) que me obrigava – que me obrigava a também seguir meu papel – que me obrigava a lembrar das aulas de leitura labial assistida em algum telecurso passado numa tarde, suando sobre um sofá de couro falso, e a olhar pelos vidros do meu carro, para as pessoas que haviam sido retiradas por uma maquinal pata de metal retrátil da dança (era o dever, o dever de se blindar contra o dia em que eles mesmos seriam a vítima assistida) e que agora tratavam de trazer do mangue das lembranças (um interlúdio, não mais do que isso) sua lições básicas de cidadania e acudiam aquele inseto de quatro batas e busto suculento, quase saltando do seu decote “pro trabalho”, que se prostrava sob meu carro como se o apocalipse ainda não houvesse chegado.

Tentei rememorar: ok, o sinal abriu, eu engatei a primeira, eu pisei nos pedais do meu Ford (“alternadamente, isso eu sei”), girei minha direção hidráulica com a ponta dos dedos, olhei para os lados (“nada”) e senti o pneu passar por cima de algo macio. Oh!, então é ali que ela entrava. Por pouco achei que fosse um gatinho, quem sabe alguma criança. Mas a moça já calada, encolhida no canto esquerdo da minha visão, soltando lágrimas visíveis pela incidência obliqua do sol – moedinhas de um país infantil no rosto daquela princesinha de contos infantis-, e as pessoas batendo em meu vidros com os punhos fechados e as sobrancelhas arqueadas em desespero e outras ali na esquina, parando para queimarem sozinhas um pouco, prostradas não exatamente pela moça sob o monte de ferro e plástico sujo de um monte de coisas do meu carro, mas por todos os outros que podiam ver entre a multidão, que por um momento se apartaram dela, por todos os outros que simplesmente estavam ali perto e viram a coisa acontecer, que viram o que aconteceu comigo mas que nem eu tinha visto, por todos que sabiam mais que eles e mais do que eu próprio, pelo magnetismo que a pata de metal retrátil – que era por si uma peça da coreografia, mas que fazia apenas aparições especiais – especiais, sacou? – exercia sobre eles – um magnetismo amoral, gravitacional. As pessoas que olhavam as pessoas me olhando e gritando não tinham idéia do que olhavam, mas sabiam tanto porque faziam aquilo como os comediantes sabem por que falam tal frase em tal contexto em algum dos vários programas humorísticos da TV a cabo nos quais são pagos para improvisar. E nisso passou um carro de polícia pela rua e o policial estava sério, como se tivesse brigado com o motorista, e eles olharam aquela aglomeração e o carona jogou uma bituca de cigarro que ricocheteou na borda da calçada e que quase caiu na água que corria como um rio negro em miniatura – mas que ficou fumaçando o filtro a não mais do que 2 centímetros do fluxo – e o que jogou a bituca com a ponta dos dedos olhou para frente e fez sinal para que o outro seguisse e eles seguiram até uns 20 metros adiante, porque o sinal estava fechado e, putz, quando o sinal está fechado e tem carros na sua frente nem um poderoso giroflex de laser parafusado no teto da sua viatura é capaz de fazer isso desaparecer. Ainda olharam pelo retrovisor as pessoas que batiam nos meus vidros, mas um deles tirou o boné e coçou a cabeça e quando eu olhei de novo não havia carro algum parado no farol. Batiam fortemente nos meus vidros, eram um 57, acho – ou apenas 3, ou 15, algo na casa da segunda dezena...é, era isso: 21 pessoas – e acho que batiam muito forte porque eu nunca tinha ouvido esse tipo de barulho dentro do meu carro, era um barulho desses que se ouve quando se está dentro de uma piscina e alguém pula com os joelhos grudados no peito mas era mais que isso porque era um bombardeio de fetos animados num domingo a tarde de uma piscina privada ou eram as pancadas de tacos de beisebol dadas por mafiosos em um homem dentro de um saco cego ou era uma chuva de granizo ouvida sob um teto de zinco forrado de algodão. Cutucaram-me em sonhos e fizeram que o homem preto sob o muro branco de minha infância e minhas fantasias de não-pertencimento caíssem como um véu ancestral, nublado, desnudando uma frase quase que escrita no pára-brisa: “O que está acontecendo?”(CONTINUA)

2 comentários:

Anônimo disse...

aonde voce vai?

Anônimo disse...

É, adonde?