Como poderia uma mulher ser mais vadia que Letícia? Como poderia uma mulher, mesmo que existindo apenas como imagem encarnada (você simplesmente concorda que ela é feita de carne, você nunca tocou nela) em um cenário urbano qualquer – mesmo que vista apenas por alguns segundos em um posto de gasolina, na madrugada, andando apressada: não parece estar se divertindo: ela é a responsável, tem suor nos cabelos pintados irregularmente de amarelo que caberiam num tufo apenas e olhos de mãe apartada da cria, de forma alguma escolhida e ainda assim responsável por cuidar de todos que riem e de todos que olham os que riem querendo também rir e de todos os que ainda sairão de trás das cortinas para encostar e entrar em carros empoeirados e foscos (muito usados), para participar desse filme B de diversão adolescente que estourou o orçamento a ponto de não poder sequer pagar as passagens que levariam os atores de volta para casa (ainda sobrou algo para a cerveja e os cigarros cenográficos), de forma que eles parecem estar congelados em algum momento panorâmico do roteiro, em que os papéis de mocinho, mocinha e palhaço, de vilão e de vilã e de palhaço negro, estão turvos – quem visse os rolos perdidos dessa produção poderia muito bem perguntar se afinal alguma dessas representações existiu em algum momento: havia algo de real para ser encenado, todos se movimentando como gravadores donos de membros e articulações, repetindo falas decoradas não pela leitura do texto, mas pela incessante tentativa de falá-las corretamente, resultando em diálogos que, coerentemente, ninguém escreveu? Você concorda que eles não falavam, de fato, nada; que os sons que ouvia podiam muito bem sair das caixas de som penduradas do lado de fora da loja de conveniência. Pois bem, como poderia essa diretora involuntária de um elenco nunca avisado sobre os próprios encargos, ao ir buscar algo a alguém cuja feição e voz você nunca verá (alguém que está sentado no asfalto do canto do posto de gasolina, alguém que parece precisar de ajuda), ao andar apressada pelo cimento cheio de chicletes cuspidos e transformados e confundidos com gotas de óleo, com o amarelo da pele transformando-se com o branco que cai vertical dos tubos de luz pregados atrás das placas de plástico, criando linhas cinza em torno da boca e sombras por um momento monstruosas sob as orelhas – como poderia essa mulher encarnar melhor a idéia loucamente maleável de “vadia”?
Os indícios estão na blusinha branca de alça que lhe parece encardida (a etiqueta para fora), na calça jeans rajada de vermelho, na sandália tão “tropical” de borracha, nos dedos magros, no peito afundado e na bunda enfiada, na cara de gente usada por tantas outras gentes. Mas o que são indícios? Você não sabe explicar o que lhe dá a impressão de uso. Você fica triste quando olha para ela (você sabe o que é tristeza, oras), você sente que nunca precisou viver o que ela viveu – sim, esse tipo de alegria traz tristeza. Você é superior a ela, foi mais vezes feliz do que ela. Você sente que, das poucas vezes que foi acentuadamente carente – todas as vezes que precisou de alguém para sentir que ainda existia, para ser dono de alguém ou ter um dono, para tocar algo – tinha plena consciência de sua situação e que, por isso, nunca se tornaria um cafajeste, um espancador-de-mulheres-e-filhos, uma vadia. Dessa doença você não corre risco nenhum de se infectar. Tem o anticorpo da consciência. E você é tão sabido a seu respeito que até vislumbra que isso é mentira – você lê jornais cheios de entrevistas e livros de psiquiatras e pensadores; você não tem certeza, mas se pudesse arriscar (numa aposta, digamos, com deus), diria que existe sim um lugar em seu corpo mental onde você mesmo, por motivos que desconhece (ainda que estes motivos já estejam catalogados pelos mais discutíveis padrões), esconde memórias de fato e memórias inventadas e cria padrões e relações tão alienígenas a você quanto qualquer uma das incontáveis ciências que existem ou já existiram. Você pensa se esses fatos, invenções e padrões e relações são geridos por uma lógica que fica fora desse lugar (que forma ele teria?) ou se esta lógica vive lá mesmo – até se ela é mesmo uma lógica você já pensou, já que, bem... “É possível organizar aquilo que sequer sabemos a existência?”. Esse tipo de pensamento é que sempre te deixou algum resto de dúvida sobre o inconsciente. E você é tão ponderado que até aceita que a idéia de julgar as pessoas assim (como se tivesse poderes para-psicológicos, de forma abrupta e cruel) é um pequeno defeito a que todo ser humano tem direito, desde que não levada a suas últimas conseqüências.
Mas que tipo de últimas conseqüências podem ocorrer entre você e Letícia? No começo, você nem sabia ao certo se ela era de carne. Agora, ela está lá, de cócoras, passando a mão na cabeça do rapaz de boné. Ele não tem rosto, o dela fica com os olhos pressionados sob as sobrancelhas quando ela alisa o cabelo dele e oferece a garrafa de cerveja que havia ido buscar. Deus, como ela é uma vadia com aquela roupinha e aquela cara de menina pobre cheia de problemas em casa, você pensa. Então aquele escudo baseada na idéia de que “todos os seres humanos têm direito a seus próprios pequenos julgamentos arbitrários internos e mudos” vai perdendo escamas: não apenas porque as espadadas são cada vez mais fortes (as espadadas de uma certeza que é, mesmo analisada por qualquer uma das idéias auto-julgadoras que você julga possuir, cada vez mais nítida), mas também porque, por mais que você conheça a si mesmo e os possíveis mecanismos que regem o modo como você percebe o mundo, você não entende porque escolheu ela. Os outros que ela em um momento pareceu comandar (sim, pois ela era a Vadia, a única que você tinha certeza de carregar uma marca indelével de corrupção e, portanto, não poderia ser outra a pessoa responsável por aquele bando de pessoas amorfas tão diferentes de você, tão responsáveis por tudo aquilo do que você quis se manter longe por ter se mantido tanto tempo tão perto sem nunca se sentir parte integrante (ou nunca ter sido aceito como parte integrante?)) não mais são, (como é que você pensou?), “atores” – ela não dirige mais filme algum. Eles começaram a criar um tipo de vida, eles são pessoas felizes, orgulhosas, com milhares de pequenas realizações, honestas, com toneladas de honra a serem carregadas e esmigalhadas e recriadas, eles tornam outras pessoas felizes, se apaixonam e se decepcionam: eles acordam cedo e se esforçam para alcançar pequenas realizações honestas – os tipos de passos capazes de suprir essa necessidade enorme de honra que cada um deles tem, e para isso se apaixonam e apaixonam outras pessoas, mesmo sabendo que tudo terminará
O escudo perde escamas pois a única conseqüência que pode derivar da relação entre você e Letícia se derivará não de Letícia (aquela feita quase de carne), mas justamente de sua idéia sobre a Letícia e, se você quiser manter seus dedos longe da vileza, da crueldade e da inconsciência sobre o valor moral de cada ato seu, é melhor começar a se sentir mal consigo mesmo (nessa altura você largou o escudo e pegou algum tipo de chicote conhecido): nada como uma boa dose de incontrolável e justa culpa. Você sabe que isso vai lhe fazer bem, que essa auto-flagelação vai servir como purgação para esse emaranhado de sentimentos que agora te agitam. A dor pacifica. Mas existe um problema, porque quão mais perto você está dessas pessoas e mais você vê Letícia, mais elas parecem como você e mais você quer se ver livre delas porque você detesta – sempre detestou, se sentiu mesmo fisicamente mal –entender quem você é: julgar com olhos que se pretendem imparciais sua colocação na imensidão da terra (segue longo blablablá mental com influências que você acredita serem orientais sobre a importância de um grão de areia no deserto) suas origens (de uma banalidade de almanaque) e seus pensamentos (aí é gerado um pequeno paradoxo: como é possível ser tão risível como você acredita ser se você entende muito bem quão risível você é?) era o que mais doloroso existia em sua vida mental. E o problema que se coloca então não é mais o da culpa pela maneira como você julga os outros – Letícia, a Vadia, e seus asseclas – mas sentir culpa por julgar de maneira tão sacana, perversa e desumana a si mesmo.
E quanto mais você conhece Letícia – porque, ah, você se conhece muito bem –, uma dessas meninas que perdeu a virgindade com 18 anos, tem vergonha de falar de sexo e nunca fez anal (mas que ajudou e aconselhou muitas amigas nesse quesito), mais lhe parece que ela foi estuprada pelo dono do mercado (pode ser também o pai, o tio, o irmão, desde que seja mais velho, sujo e um psicótico adormecido), que ela adorava a se masturbar durante infância na frente de pais estarrecidos, que transou com todos os meninos da rua antes mesmo que eles tivessem a idéia de organizar um calendário de revezamento, que já fez 7 abortos desde os 18 anos, que sofreu apenas por um homem (cabem aqui outras possibilidades de traumas incestuosos). Mais ela lhe parece uma mulher que irá lhe prender num cercadinho de látex, te dar mordidas ocasionais no pênis - das mais dolorosas possíveis – e lhe aplicar castigos físicos que arrepiam a espinha mesmo antes de se concretizarem como idéia. Quanto mais você pensa sobre essa menina doce ajudando um amigo ou namorado em um momento difícil – sendo verdadeiramente boa - mais você a imagina vestindo sua camisa larga, dizendo que o ama e, logo depois, em sua imaginação, chupando o pênis de seu melhor amigo em sua própria cama.
Você se pergunta, por fim, porque a chamou de Letícia desde o começo. Depois, se é possível qualquer coisa ser de forma absoluta aquilo que parece.
Talvez devêssemos nos perguntar o que faríamos se o mundo fosse exatamente o que acreditamos que ele é.
2 comentários:
Quem é você, afinal, JC?
Letícia é imensa. pelo amor de deus, como é verdade isso...
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