Um homem acompanhava um amigo que trabalhava em uma distribuidora de galões de água na cidade de São Paulo. Vagando pelos corredores da firma enquanto o amigo buscava documentos que dizia precisar levar para casa, viu atrás de uma pequena janela de acrílico um homem que conhecera através de uma amiga da irmã há não mais que duas semanas em um evento social banal - bar, apartamento ou restaurante? Bateu na janelinha da porta e o outro, sem olhar quem era, fez sinal para que entrasse. Cumprimentaram-se com apertos de mãos e sorrisos e as frases costumeiras trocadas entre conhecidos, cada um se esforçando para se lembrar dos detalhes do primeiro encontro e para que essa lembrança ficasse nítida aos olhos do outro. O que bateu na porta pensou que talvez não devesse ter batido e o outro que talvez devesse ter fingido não ouvir as batidas, mas esses pensamentos foram substituídos pela necessidade de arranjarem assunto. O visitante olhou o estranho escritório – que tinha apenas uma cadeira de madeira, uma mesa, uma lata com canetas bic azuis e diversas fotos do próprio conhecido. Dezenas de três por quatro com ele de gravata, grudadas no tampo, outras menores emolduradas em madeira e uma muito grande, de frente para o conhecido, em uma moldura de metal fosco. Nesta ele estava apoiado na frente de uma outra mesa – como se a usasse para se levantar -, com outra cadeira e novas prateleiras cheias de livros ao fundo. Era uma foto em preto e branco e o conhecido levantava acintosamente a sobrancelha direita. Usava uma camiseta curta que grudava em seu corpo mostrando uma pequena barriga. Seu cabelo liso, com a franja na altura dos olhos, estava jogado de lado. Os braços pareciam menores que o normal e os olhos eram quase imperceptíveis.
- Bela foto.... que enquadramento! Quem tirou? Stephen Hawking, he he?, disse o visitante.
Stephen Hawking? Por que ele teria tirado aquela foto, oras? Quem é Stephen Hawkins mesmo? O conhecido olhou para os olhos do visitante com a boca aberta.
- É uma foto do meu book. Vou ser modelo de uma marca de roupa para homens medianos e tímidos.
Riram em uníssono risadas muito parecidas, com uma espécie de sopro no final de cada uma delas. Pararam no mesmo instante.
- É sério, repetiu o conhecido, seriamente.
- Verdade, concordou o visitante, essa foto vem depois daquela em que você está com uma camiseta do Big Johnson e uma ceroula verde-oliva....
Não riram muito, apenas sopraram. Talvez o outro não se lembrasse de Big Johnson, um personagem de camisetas que fizera sucesso na infância do visitante. De fato, não sabia quantos anos o outro tinha. Talvez não tivessem nada a compartilhar sobre suas infâncias. O conhecido olhou de novo a foto.
-Você não acha que tou passando bem a mensagem?
- Sim, quase exageradamente.
-O pessoal da agência está pensando em criar um slogan assim:"o homem mediano e tímido também tem intimidade"... Riram de novo. O conhecido olhou de novo para a foto.
-Uma das coisas mais legais dessa foto é a cadeira e os livros atrás. Tô no meu escritório: aquele é o meu lugar.
- Ha ha, sim. Você foi pego tipo de surpresa, estava revendo uns holerites..... e, bum!, veio o paparazzo.
O conhecido levantou a sobrancelha, como que imitando a foto. Falou seriamente:
- É, isso mesmo, estava vendo uns holerites, falando com o contador. Balançou a cabeça e passou a língua rapidamente pelos lábios e disse: “foi de repente... quando chamaram minha atenção, juro que nem vi que ele tinha uma câmera, ha ha”.
O visitante olhou para as paredes e para a camiseta branca de seu interlocutor e notou que pareciam sozinhos na prédio, apenas o som de máquinas ligadas em tomadas, tremendo, suando vapor quente, emitindo um gemido que partia zique-zagueando no ar como moscas saídas de um relógio. E devia haver algo na frente da porta, porque a janelinha de acrílico estava escurecida. Mas não havia sombra pelo vão entre o solo e a porta. Lá fora, dez andares de distância, um homem gritava e gritava e ria muito depois. O visitante riu muito também, sem sopro no final – era mais um gritinho agudo, uma voz adolescente saindo de dentro dele.
- Desse filme essa foi a última foto sua...ha ha. Depois ele tirou uma com a secretária fazendo sexo oral no contínuo, lá no almoxarifado.
O conhecido bateu com a mão no peito e arregalou os olhos e riu muito.
- "Barbárie Comportamental na Firma 3", ha ha.
- Com o Jão Bilau e com a Paty Lambuzada.... adoro aquela parte em que o porteiro enfia uma camera de circuito interno dentro do ânus da atriz coadjuvante pra vigiar o movimento suspeito da malandragem...
- E ela faz a pegadinha do peido com a faxineira?
- Isso... a faxineira... Cleyde, acho. Casada com o bandido que assalta a firma e come a mulher do patrão. Porra, o cara tem uns 28 centímetros de pica!
O conhecido levou as mãos aos braços da cadeira, como se fosse se levantar. Riu, como o outro, mas depois pegou a foto e virou-a para diferentes lados, como se aquele ângulo não fosse o certo para vê-la, ou como se houvesse algo escondido além da moldura de metal fosco.
- Cleyde... nunca vi mulher mais alegre na vida. Era só dar um pedaço de pau com um pouco de pano na ponta, um balde cheio de água ensaboada e uma privada encardida que a mulher sai cantando pelos corredores de piso frio! "lá lá lá lá, o amooor lá lá lá lá bate como uma estalactite na coração lá lá lá lá"
O visitante apenas esboçou um sorriso. O outro não ria.
- Tão cômica, a pobre! A câmera só não pegava a parte em que o marido, em casa, dava umas chicotadas com o cinto na boca dela. Depois ela me dizia que ele ficava gritando: "tô comendo quem? Quem que eu to comendo, sua puta? Nunca te traí na vida, mal-agradecida!". Sempre imaginei que depois ela cantarolava aquela música enquanto limpava o sangue com papel higiênico e colocava o cobertor sobre o marido adormecido. Mas... beleza. Quem é que quer ver essa estalactite?
O visitante não sabia bem o que dizer. Falou sobre a vez que se conheceram, sobre o bar – sim, tinha sido em um bar, “logo ali, lembra?” – sobre a própria irmã e sobre o cunhado que jogava “muita bola”. O outro concordava com a cabeça, mas ainda olhava a foto. Irrompeu:
- Oh! Quanta vida num simples prédio! Oh! Quantos mistérios uma pequena comunidade de humanos unidos sei-lá-por-que encerra!, enquanto jogava os braços para cima, teatralmente.
- Esses caminhos da vida, né? Que coisa doida..., falou o visitante, na ânsia de fechar os olhos do conhecido, ou quem sabe ser ouvido pelo amigo que parecia sequer ter entrado com ele, tal era a sensação que ele nunca voltaria.
O conhecido olhava para as unhas dos dedos das mãos, que estavam esticadas na frente das vistas.
- Rios, afluentes de influência imprevisíveis, picadas engendradas por motivações do Desconhecido: os caminhos da vidas, disse, e ainda fazia volteios mais extravagantes com as mãos, seguindo com os olhos o curso errático das unhas da mão direita. Voltou então a segurar a foto grande, mas juntou também algumas outras pequenas sobre o vidro anti-reflexo dela e era como estivesse vendo a própria memória naqueles papéis. Existiam vários deles ali, de barba rala ou pele lisinha, cabelos raspados ou aparados. Mas sempre de gravata, sempre os mesmas pupilas se espalhando pelo branco dos olhos. No escritório, uma máquina fez um barulho abafado, tossindo uma tosse há muito guardada. O conhecido pegara uma caneta e rabiscava a mão. Parecia fazer círculos. Então falou baixinho, abaixando a cabeça, quase a colocando sob a mesa, como que procurando algo.
- Outra coisa que nunca me sai da cabeça: como a gente, por mais que odeie toda a mesquinhez que as artimanhas para ser alguém exigem, nunca, nunca, nunca, nunca, consegue tirar da cabeça que eu tem que ser alguém? Me sinto...
O visitante esperou por bons dez segundos a resposta, mas ela não veio mesmo. De súbito, o conhecido virou o rosto e perguntou mansamente para o visitante se ele sabia como afinal ele se sentia.
- Ah, sei lá...Acho meio inevitável se revoltar com isso enquanto a gente tenta desesperadamente negar isso... quer dizer... a sua revolta é o seu esforço para ser alguém: alguém revoltado...
- Contamina cada ação minha. E a cada ação eu penso: isso é mediocre, seja puro puro puro puro.
- Você está preso." É fim, seu único amigo...", saca?
Eles riram. Talvez tivessem enfim algo para falar, algo que não estivesse apenas ali dentro.
- Mas o complicado é exatamente quando se pensa o que você pensa que a gente não tem razão. Dai é que vira um labirinto completo, completou o conhecido, imediatamente depois do fim das risadas. Ele não olhava para seu interlocutor."Porque você faz as artimanhas, se culpa por fazê-las, se culpa por não fazê-las certo - uma vez que você não acredita nelas -, se culpa por culpar os outros por fazer - e fica pensando se não é por pura inveja. Por fim, existe a culpa por não saber qual é afinal é o caminho e se sente, claro, culpado por ficar no meio dele.
- Nossa, isso é verdade. Só dessa tenho uns doze quilotons aqui nas costas.
- É...o maior milagre é que com tudo isso a gente ainda consiga andar meio equilibrado, nojentamente equilibrado - criticando qualquer um dos lados quando isso nos faz sentir melhor, fazendo o jogo quando bate o desespero e desdenhando dele quando não conseguimos nos adaptar a ele. O conhecido ainda estava com a cabeça abaixada, e agora dava tapinhas nas laterais da mesa. O visitante achava aquilo muito estranho e falou alto algo que o fizesse olhar para ele.
- Cara, essas são ideias paralelas. O mais louco, eu acho, é só conseguir exercer absolutamente esse papelzinho de revoltado sem rumo quando estamos absolutamente sozinhos. A gente só consegue falar disso quando estamos, não sei...aqui, saca? A gente conhece a porra do mundo via cartão postal... Quer dizer, você viaja, conhece in loco os lugares, mas, no fim das contas, seu comprometimento com aquilo é quase nulo...
-Hm...nisso você tem razão, disse o conhecido, levantando-se. "Quer ver, dá uma olhada nisso aqui", e abriu uma gaveta e tirou um livrinho novo em folha, sem indicação alguma na capa preta - ilustração, nome da editora ou autor. Era uma história em quadrinhos de traços infantis, algo parecido com uma ficção científica.De um homezinho de formas redondas, com neons percorrendo um uniforme feito de algo metálico saía um balão grande que ocupava metade da página, com diversas palavras riscadas a caneta. No final, o resultado que se lia era:"Eu quero pular de para-quedas(...) mas, veja bem, tenho medo de montanha russa (...) No final das contas eu fico dizendo a todo mundo (...) Vou pular de para-quedas... vou... vou... (...) mas, afinal, eu não pulo (...) meu lugar é entre o para-quedas e a montanha russa".
- Hm....seu esse gibi aí?
- Não. É a história de um desbravador de planetas. Ou era quando eu li. Faz um tempo, já.
- Bonito. Quem desenhou?
-Não sei. Quem sabe alguém da maldita classe-média intelectualizada? Esses caras tão por aí, desenhando, pintando, escrevendo, fazendo o caralho. Esses caras sabem o que fazem!
- É..., disse o visitante, ainda que não soubesse com absoluta clareza o que significasse ser alguém da classe-média intelectualizada e desconfiasse que, por tudo o que o conhecido havia dito até então, ele também não entendera muito o que dissera. Dos corredores até então silensiosos, um pequeno terremoto de passos punha-se em funcionamento. Ainda sim, não ouviam nenhuma voz. Eram apenas pessoas andando pesada e lentamente. De súbito, surgiram três gritos idênticos dados pelos responsáveis pelos passos, um som único parecido com uma claque:
- Tem que ter uma causa pra minha impotência! Tem que ter uma causa pra minha impotência! Tem que ter uma causa pra minha impotência!
Depois, nada. Nem vozes nem passos. Conhecido e visitante se mantiveram em silêncio. Olharam um para o outro assustados.
- Péssima frase, soltou o conhecido.
- É, eu ia fazer uma piada sobre isso, mas achei que não fosse muito oportuno...
-A gente sabe ser cordial quando quer, né?
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