Contos, crônicas e novelas.

domingo, dezembro 14, 2008

Gomorra, Periferia e Sardela


places, originally uploaded by giancarlo rado.

 Este ensaio não nasceu ensaio: nasceu trabalho acadêmico. Este conteúdo não é o mesmo apresentado: foi alterado. E esta epígrafe portant não nasceu epígrafe: nasceu paráfrase. 


     Desde criança me sinto atraído por filmes sobre gangster e máfia. Um em particular marcou minha adolescência, Era uma vez na América, de Sergio Leone. Daria ainda para listar outros: Scarface, de Brian de Palma; Os Bons Companheiros, do Scorsese. Dele tenho uma admiração por Taxi Driver, um filme especialmente louco.

     Recentemente assisti algo diferente, que mudou minha noção sobre máfia e afins. Confesso que pouco sei sobre como as coisas andam por lá, na Itália, ou como tudo começou. Quando penso sobre isso, sou – e acredito que a maioria de nós – sempre influenciado pelos blockbusters hollywoodianos.

     O filme começa num salão de beleza. Onde todos são aparentemente grandes amigos. Corpos se bronzeando, unhas sendo cuidadas. A vaidade é interrompida com tiros secos, sem silenciador, ainda com o sorriso no rosto. Pow! Pow! Pow! e os corpos já estão no chão. A música, um pop dançante que nós brazucas chamamos de brega, é de um cantor nascido em Nápoles, terra que tem outra filha ilustre, a Camorra.

     Já tinha ouvido falar sobre a Camorra, mas nunca tinha me interessado em saber sobre ela. O filme de Matteo Garrone, por mais que seja um drama ficcional, foi roteirizado com base num livro de raízes jornalísticas e tem atores não profissionais da própria região, como Fernando Meirelles fez em Cidade de Deus, por isso tem um tom quase documental. Um pormenor pessoal é que o filme colocou por água abaixo a glamorização imagética dos mafiosos da minha adolescência.

     Gomorra é um retrato realista e anti-herói da Camorra, cujo os tentátulos espalham-se pela sociedade italiana em um misto de atividades suspeitas e ilegais. Mostra a estruturação da organização e seus sustentáculos de familiares que mantém negócios lícitos, como o dono de uma fábrica de alta-costura que é financiado pelos criminosos, e ilícitos, como o controle do tráfico de drogas e aterros de lixo industrial. Foi baseado no livro de Roberto Saviano, um jovem jornalista e escritor, também de Nápoles, que anda com escolta armada desde 2006 por causa das ameaças de morte.

     Não foi o exótico que me atraiu no filme, nem o glamour. Porque não há romantização. Aquilo que me atraiu foram as possíveis aproximações e diferenças com a realidade que conhecemos no Brasil. Aliás, nunca tinha visto um filme de máfia que ficasse ecoando nossos próprios problemas tupiniquins.

     Os badaladíssimos Cidade de Deus e Tropa de Elite são da mesma linhagem: ficções baseadas em livros que retratam histórias de comunidades que convivem com criminosos e autores que foram parte integrante da realidade da qual escrevem. Saviano é jornalista, da região, então dá para dizer que ele meio que está falando da sua própria casa. Li que ele infiltrou-se por anos na Camorra e fez bem o dever de casa do jornalismo investigativo.

     Se permitem-me fazer uma comparação – e podem discordar se quiserem – na periferia de Nápoles, em Gomorra, assim como no Rio de Janeiro, as crianças ficam maravilhadas com a força que os integrantes de grupos criminosos têm na comunidade. São detentores de um prestígio, mantido na base do medo, e controlam a região em família. Claro que, em qualquer lugar do mundo onde há a ausência de poder público, facções criminosas surgem para preencher esse vazio deixado pelo Estado. Ou elas tornam-se parte do próprio Estado, como o Hamas. Isso deveria ser mais desenvolvido, eu sei, porque o Hamas tem originalmente raízes na resistência Palestina. Seria uma grande cruzada me aventurar nessa comparação. Mas, não agora.

     Apesar de nas favelas cariocas, ou em qualquer favela brasileira, o crime não ser exatamente controlado por famílias durante anos e anos, as relações sociais que eles mantêm são baseadas na união e irmandade, onde o respeito hierárquico é similar como na máfia napolitana. Claro que em guardadas proporções. Acho que Cidade de Deus, apesar de propagandístico, mostrou um pouco isso.

     Gomorra tem uma fotografia bem crua. Precisa e direta algumas vezes, como no contra-luz do diálogo entre Ciro e a mãe de um garoto que mudou de lado e sente-se ameaçada. Filmado em closepróximo à janela de um dos cômodos desses apartamentos populares, que conhecemos bem. Tem a dramaticidade que a situação pede. Outras vezes é bem aberta e areja o olhar com uma beleza geométrica e plástica. Com sequências de pans e pontos de vista passeamos de carro, moto ou a pé pelo vasto cenário de abandono e vazio da província napolitana. Com certeza, sem a estética de fotografia de turismo, nem de clip MTV, que seria um caminho fácil para agradar a massa de jovens espectadores que passam os fins de semanas nos Shopping Centers.

     Garrone passeia com a câmera tensa e realista na nuca dos personagens. Não é nada novo, mas foi bem aplicada. Finalmente um filme sobre máfia sem charutos, chapéus e gelo seco saindo pelas bocas de lobo. Os chefões andam sem camisa, de bermudas e chinelos. Usam anéis e correntes pesadas. Alguns têm tatuagens de prisão, daquelas tipo Amy Winehouse. Empunham armas. São sórdidos como qualquer criminoso. Alguma semelhança com os criminosos que controlam as periferias brasileiras é mera coincidência.

     Na Camorra, os mafiosos que controlam os aterro de lixo industrial estão lidando diretamente com normas e leis estipuladas pela União Europeia, assim fica subentendido, e isso é que é assustador, a profundidade das influências na esfera política, seja pela ameaça ou pela corrupção. Isso também acontece no Rio, onde as comunidades transformam-se, muitas vezes, em currais eleitorais, nos quais os traficantes forçam a eleição de determinados candidatos para dar continuidade às relações estreitas que mantêm com o poder público. Isso já se conhece e como disse ironicamente o mestre Geraldo Pereira: “carne de vaca no açougue é mato”. Na última eleição tivemos até teatrinho militar para garantir a segurança e o voto limpo. Será?

     Há cerca de dois meses li que a Camorra declarou “guerra contra Itália”, segundo o Ministro do Interior italiano, Roberto Maroni. Seus integrantes estão eliminando qualquer tipo de oposição ao poder que exercem nas comunidades que controlam. Para dizer que não é brincadeira, assassinaram juízes e integrantes de facções de imigrantes, em sua maioria provenientes de países africanos. O governo italiano já demonstrou que está tentando atuar mais fortemente no controle da região, mas nenhuma força policial parece resolver quando o problema é uma cultura de anos e anos na forma de fazer negócios, de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico. Novamente, qualquer semelhança com nossa realidade brazuca é mera coincidência.

     Em relação aos mais jovens, nos morros do Rio parece falar mais alto a completa falta de opção que o meio em que vivem pode oferecer, por isso fazer parte de grupos criminosos significa ter mais visibilidade, prestígio e o dinheiro que a civilização do capitalismo moderno não consegue oferecer-lhes. Coisas que os Racionais já falaram bastante.

     Mas, na Camorra não é somente isso. É também ser parte de uma família, um determinado clã, um grupo social, onde o sobrenome tem o peso determinante. Os personagens parecem estar a procura do seu espaço ou fazem de tudo para garantir e ampliar o espaço já conquistado. Somente desta forma sentem-se parte de algo grande, algo que oferece-lhes uma identidade, principalmente.

     Há uma passagem interessante no filme que mostra o oposto disso. O funcionário de um mafioso não consegue aceitar fazer parte dos negócios ilícitos e sente-se moralmente afetado. Pede para sair. Ele não é parte da família, é uma pessoa na qual o mafioso via um futuro profissional e deu-lhe um emprego. Para ele, sem relação familiar, sem o peso cultural diretamente relacionado, não houve uma identificação. Nesta cena há um simbolismo da relação do fruto com a terra muito interessante. Com esses pormenores que o filme ganha seus contornos subjetivos. Quem já viu sabe do que estou falando.

     A cultura italiana está muito embutida na nossa cultura. Quem já não foi obrigado a ler Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara Machado? Lá ele escreve: "Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo". Em Gomorra tive a sensação de que Garrone estava repetindo isso a cada cena, a cada inter-relação das histórias que filma. O problema do filme é a difícil tarefa de retratar mais de 300 páginas do livro de Saviano. E claro, a síntese cinematográfica, em termos de conteúdo, não ajuda. A narrativa das histórias, que vão se correspondendo, parece dispersa e fica às vezes confusa com muita informação. Mas não deixa o filme difícil.

     Em termos metafóricos, de quem conviveu com descendentes italianos no cruzamento do Bom Retiro com a Barra Funda e perdeu a conta das vezes que enfrentou as filas da Festa da Achiropita para comer sardela, fogazza e polenta frita, fica a impressão, ao terminar o filme, de ter cruzado com uma Ferrari sem motor, com estofamento rasgado, com a pintura vermelha desbotada, com as rodas roubadas, abandonada num terreno qualquer da Brasilândia. Rodeada de mato e lixo. Sabemos que é uma Ferrari, mas não é como estamos habituados a ver.

     Gomorra é um recorte muito preciso, com uma mão que sabe onde pressionar. Sem dramas psicológicos profundos. Um drama sem as estilizações de Cidade de Deus. Sem heróis. Sem histórias de amor. Ok, tem o amor de mãe, mas sutil, sem catarses e choramingos. Uma Itália, por exemplo, diferente da filmada por Silvio Soldini, no saboroso Pão e Tulipas. Um outro ponto de vista, talvez mais próximo daquilo que afeta os italianos no dia-a-dia, nos noticiários locais. Social, economica e culturalmente. 

     Soube que o filme passou pelo Brasil na 32ª Mostra Internacional de Cinema, em Outubro, e que deve estrear por aí até meados de Dezembro. Aqui no Porto, estreou há poucas semanas, mas já saiu de cartaz. E acreditem, não é nada fácil achar uma cantina italiana por aqui, não como as do Bexiga. Então, qualquer tentativa de insinuar que a máfia pode estar envolvida é mera teoria da conspiração.


Por Keiny Andrade

Um comentário:

Stela Guimarães disse...

keiny, querido.
além de um puta fotógrafo, você é craque na arte da escrita.
belo texto, que veio ao encontro do que ando estudando por aqui: violência no cinema brasileiro.
:)
beijos e saudade, dude.
Stela