Enfim fui ver o aclamado Ensaio Sobre a Cegueira. Não sei dizer se gostei do filme. Há coisas interessantes e outras não, são como deslizes que a experiente equipe de Fernando Meirelles não conseguiu ver.
Vamos começar pelo ponto que achei interessante. O filme é fiel à essência daquilo que Saramago procurou demonstrar no livro. Não sei se Saramago quis evocar um apocalipse hobbesniano, isso me soou como oportunismo crítico de plantão, para deixar de lado os deslizes estéticos do filme e focar em teorias sociológicas. Pura preguiça da dita crítica especializada.
Li diversas críticas nas quais os autores pareciam retirar da gaveta empoeirada os anos de estudos de pós-graduação para mostrar uma análise inteligente e filosófica. Mero pedantismo conteudista. Olha, nada contra isso, mas poucos conseguiram falar do básico: analisar como o filme, no seu conjunto de imagens, diálogos, luz, fluidez, sons, constitui-se como obra. É aí que vejo os deslizes.
Alguns críticos insistem em chamar os filmes do Meirelles de "filme de autor". Com Ensaio foi a mesma coisa. Em qual filme dito de autor o símbolo da Volkswagen é esfregado na nossa cara logo na primeira cena? Digo mais, quem leu e acompanhou na imprensa o pré-lançamento do filme, o blog do diretor, sabe que o próprio Meirelles declarou que fez concessões para se entender com os produtores. Meirelles fez sessões teste para ver qual a reação do público, como era para agradar a todos, teve de "suavizar". Opa, vamos continuar insistindo que Ensaio é filme de autor? Para mim, não é, e Meirelles não é esse tipo de cineasta. Ele pode agir assim, ter essa intenção, porque é uma pessoa sensível e institiva, mas entre ter a intenção e realizar há uma leve diferença. No fim ele teve de fazer concessões para apaguizar os "outros realizadores" e não sair da boa fatia do mercado internacional de diretores que ele conquistou. Andrei Tarkovski deve estar se revirando no caixão por essas bobagens.
Vamos lá, deixa eu falar daquilo que interessa. Ensaio é confuso. Não porque uma sociedade que perca a racionalidade tem de ser confusa. O conjunto de imagem não flui com a simplicidade que Meirelles desejou. Após a apresentação em Cannes, o diretor mexeu no filme, tirou, acrescentou cenas, encurtou falas, e declarou “ficou mais simples”. Não tem nada de simples e, em certo ponto, é até pretencioso demais. As cenas fora, na cidade já destruída, são tão perfeitas, preparadas, arrumadas para estetizar o caos que irritam. É um misto de falsa fantasia caótica, cores pálidas e publicidade de automóvel. Faltou passar um NewBeetle e estaria como num comercial.
Há coisas inexplicáveis e fora de contexto no filme, como a câmera que dá o ponto de vista da bengala dos cegos. Ela surge do nada e vai embora do nada. Não há a mínima conexão com a narrativa, não lhe acrescenta nada. É apenas uma grande angular para impressionar. Não faz sentido. Outro exagero que Meirelles percebeu, e também alterou após Cannes, é que a narração de Dany Glover estava explicando demais o filme. Eu, particularmente, fico com pé atrás com filmes que se auto-explicam. Para evitar isso poderia ter investido mais minutos nas cenas fora, do começo, de como o Estado lidou com a situação e entrou ele mesmo num caos. Quando acontece o início das explicações, aparece o Glover ouvindo uma estação de rádio em português? Hã? Era para ter uma mensagem qualquer aí? Saramago, literatura portuguesa? Era isso? Tudo bem, a fotografia tem alguns méritos, mas abusou demais do desfoque. E por outro lado, tinha momentos tão polidos que não fazia sentido com o resto, principalmente quando todas as técnicas e artifícios para causar a sensação de cegueira praticamente somem quando os personagens são libertados. Poderiam continuar, digo, essas cenas de vultos e brancos estourados, que o diretor usa e abusa, poderiam seguir na segunda parte do filme, já na cidade, de alguma forma, para dar continuidade à sensação de caos interno. Sem isso, a fotografia parece não ter conexão de uma parte com a outra, a não ser pela palidez. Meirelles optou pelas representações miméticas. Se o filme tivesse usado uma fotografia mais dura, com mais tensão nos enquadramentos e desfoque nas cenas da cidade talvez teria resultado numa conexão com o caos interno das pessoas, com a parte do manicômio (90% do filme) e o mundo do lado de fora. Mas sua fórmula foi clichê: trânsito e impaciência (na primeira parte), lixo, mortos, gente desorientada andando pelas ruas (na segunda parte).
Na cena de sexo entre o oftalmologista e a prostituta de luxo, que já havia sido anunciada antes numa outra cena – não entendo porque tanta obviedade – Meirelles se repetiu. Meu amigo Rodrigo Dionísio [1] gostou da forma como foi filmada, diga-se de passagem, e concordo. Mas, ele usou a mesma fórmula da cena de sexo usada em O Jardineiro Fiel. Sexo no branco. É poética. Mas, para mim, isso é apostar em fórmulas, um lapso de criatividade. No ato de criação artística, padronizar pode ser um problema.Aliás, tudo parece tantar ser criativo demais, bem sacado demais, usando fórmulas já testadas pelo próprio Meirelles ou pelo cinema. Assim é mais fácil não errar, certo? Na cena de Julianne Moore no mercado, quando ela desce ao depósito e enfim fica cega porque está tudo escuro (uau!!), ela pega um salame e devora-o exageradamente. Desculpem-me se perdi alguma coisa, mas não tinha percebido que eles estavam fisica e mentalmente com fome pelos traços deixados nas suas atuações. A fome, exagerada na cena, não é construída ao longo do filme no comportamento dos personagens, vem apenas pelos diálogos. O exagero dela é reflexo, de como disse um amigo, da mão pesada de Meirelles.
A cena dos cachorros comendo um corpo na rua poderia ser uma grande homenagem ao Zé do Caixão, cineasta deixado no limbo do cinema nacional por anos que ressurgiu recentemente, chocando sempre com seu estilo ímpar, sem concessões. Mas, Meirelles teve de suavizar. E como, nas cenas de rua, o tratamento de cores é carregado e usam esses artifícios que deixam a fotografia com o falso ar de surreal, essas partes ficam mais parecidas com comerciais de produtos sofisticados.
Nada contra tentar criar sensações usando cores pálidas, mas nas cenas de rua de Ensaio, a forma de filmar e a direção de personagens são incoerentes com essa estética. Acho que já vimos muita coisa para cair nessas armadilhas e ficar espalhando por aí que isso é uma sacada genial. Falta alguma ousadia, alguma forma de dirigir os cortes, enquadramentos, que fossem coerentes com a luz e as cores escolhidas. Como ele conseguiu na maioria das cenas internas.
Sobre usar luz estourada, brancura, em fotografia de cinema veja "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes. A história, brevemente falando, fala de um europeu vagando pelo sertão nordestino. Tudo é estourado porque os olhos claros do personagem (sei disso porque minha mulher tem olhos claros e sempre reclama) são sensíveis à luz intensa do sertão. Isso no filme é um fio condutor, o mesmo que Meirelles e seu diretor de fotografia, César Charlone, tentaram fazer, e fizeram bem em algumas partes, mas tenho dúvidas, como disse, se acertaram em outras. Algumas cenas estão escuras demais, como os estupros. Apenas para suavizar e não chocar o público em geral? Quando há o sexo consentido como no caso do doutor e Alice Braga é tudo branco? E quando há o estupro é tudo preto? Soluções fáceis, nada genial como andam dizendo por aí.
Em Irreversível, de Gaspar Noé, o espectador é duramente incomodado desde o começo, por isso a cena do estupro faz sentido, tanto dentro do que representa o persongem que o faz, como na narrativa na qual o filme é fotografado. Mas, claro, isso choca as pessoas e para um filme com pretensão de grandes bilheterias não é nada bom.
Ensaio é, como disseram alguns críticos, "entretenimento popular". Ou eu diria, a suavização e estetização do caos. Então vamos parar com esse discurso de "genialidade", "obra de arte" e "filme de autor". Para quem gosta, compre sua pipoca e vá ver o filme. Vale a diversão. E se se sentir afetado, perca seu tempo discutindo sobre a falta de moral e racionalidade num Estado caótico. Quer mesmo discutir nossa loucura? Veja Os Idiotas, de Lars von Trier. E convenhamos, já não somos caóticos o bastante para discutirmos sobre isso diariamente?
Para mim, conteúdo só funciona com a forma coerente, do começo ao fim. Digam o que quiser de "Tropa de Elite", mas José Padilha filmou de uma maneira muito precisa, com a fotografia fazendo sentido com o conteúdo, em todos os aspectos. Sua luz, sua forma de andar com a câmera entre os personagens são contundentes com todo o conteúdo da história. Quem quiser saber mais sobre isso visite as obras de Lars von Trier, principalmente Dogville, uma obra que mistura com maestria forma e conteúdo. Outra é O Rolo Compressor e o Violinista, de Andrei Tarkovski. Outra? Three Times, de Hou Hsiao Hsien. O resto é bobagem, pretencionismo e puro delírio estético. Ou, como já disse, diversão.
[1] O jornalista Rodrigo Dionísio escreve no blog Haja Saco.
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