Contos, crônicas e novelas.
segunda-feira, setembro 17, 2007
Trecho salvo de escombros
Espere até ver quando eu estiver com a minha pasta azul-brilhante sob os braços, como as coisas vão começar a fazer mais sentido. O dia, essa incógnita instituição da nossa vida ativa, vai se tornar um imenso depósito vazio e arejado, no qual os meus gritos retornam ecos compostos, em resposta, com uma mesa diminuta enquadrada na parede final. Uma secretária de cabelos crespos e roupa cáqui, telefone, fax, impressora, computador e clipes de papel. Muitos clipes de papel coloridos. Me aproximo do endereço que eles me deram, espero uns minutos até entrar. Analiso o movimento. Acho que já estive por aqui, aqueles carros, os faróis, o jeito que se alternam. Tenho amigos na área? Não sei. Estão todos ocupados, provavelmente. Entro e o porteiro me pede o RG. Apenas sei que é isso que ele me pede, não ouço ele pedindo. Me proponho um desafio: recito os números sem tirar os fones de ouvido (estou com fones de ouvido). Isso nos causa uma confusão agradável. Ele me olha de viés, meio sem se importar, mas tenho certeza de que estamos falando a mesma língua, temos o mesmo senso de humor. Uma coisa fina. Vejo sua caligrafia depravada entrar com meu registro geral para a história daquele prédio. Estamos conversados. Pego um elevador solitário, forrado de almofadas. Me apresso a pegar as chaves de casa. Na altura do quinto andar já estou rabiscando alguma bobagem ao lado do número três. Ah, bobagem não, meu nome, pra garantir. A porra apita. Cheguei. Mal a porta se abre já estou procurando o conjunto 98. Centenas de portas me aguardam impacientes no corredor gigantesco desse prédio que agora tem meu registro escrito e arquivado em suas três principais eternidades, a de concreto, a de papel e a de metal. Passo a tropa em revista, ouço alguma esculhambação na 92. Há vida inteligente. Percebo o capacho sujo da 95, faltam extintores de incêndio –pó e água– na 97. Ou seria na 98. Não importa. Me apresento a ela, digo quem sou, de onde venho, por que. Tento disfarçar minha frustração, pois esperava que fosse me impressionar com sua robustez. Nada, uma verdadeira portinhola, como as outras da tropa. Desligo o player e bato na porta, com firmeza. Ouço alguém vindo em direção à porta; saltos, passos divididos por ancas inteligentes, rebolantes. Ela. Abre a porta, me pergunta a que venho. Ora, venho pelos papéis, penso, mas digo outra coisa, parecida: eu vou levar a papelada do patrão pra carimbar em algum lugar. Há uma sintonia entre a gente que não consigo explicar. Ela se retira por uns instantes e volta com a pasta azul-brilhante na mão. Coversamos sobre o trabalho. Um momento de compreensão. Estamos juntos na ante-sala dos sonhos. Concordo com tudo que ela me diz com os lábios vermelhos e então me apodero dos documentos. Me despeço. Acomodo a pasta sobre meus braços –glória-, ajeito o fone nos ouvidos, playo. Quando passo pelo porteiro lhe comunico o sucesso da empreitada economizando palavras. Novamente sem desligar, ou mesmo abaixar o som, dirijo-lhe a palavra, em tom de confidência: estaremos aqui para sempre. Ele repete o olhar anterior (que era um olhar de compaixão de apreço, de humildade); me entendeu. Eu sabia que agora as coisas iam começar a fazer mais sentido.
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